Na última quarta (23/10), houve o caso de assistirmos ao espetáculo de Irene Ravache, dirigido por Elias Andreato, ‘A Alma Despejada’, no Teatro Porto Seguro. Os ingressos oferecidos a minha companheira, professora da rede pública, por uma espécie de acordo entre prefeitura e Teatro Porto Seguro, me parecem o primeiro paradoxo de toda a experiência.
O teatro estava lotado, todas as pessoas muito bem arrumadas, de modo que não havia chance de mudarmos de lugar para nos aproximarmos do palco, ficamos praticamente na última fileira do balcão, essa estrutura que à luz da História do Teatro Ocidental denota, no edifício teatral moderno, a hierarquização do público. Porque, sim, tentamos sentar em lugares que não eram os nossos, frisas, cadeiras mais próximas, nada. Os bilheteiros a todo instante pediam para que respeitássemos as regras da casa e é evidente que nós os escutamos, ainda que parecesse muito estranho os ingressos da prefeitura serem os dos piores lugares no espaço.
No final das contas, a posição até nos ajudou a ver a peça como uma grande maquete e a visualidade foi bastante preservada. A atriz no meio da cena conta sua história do ponto de vista memorial. Ela é morta, chama-se Teresa e tem 70 anos. O cenário grandiloquente mescla um tom realista de mudança de casa a estímulos visuais mais simbólicos, como por exemplo palavras projetadas no chão, essas que segundo a trama são adoradas por Teresa, leitora ávida desde a infância.
FORTALEÇA O JORNALISMO INDEPENDENTE: ASSINE OPERA MUNDI
Não fosse suficiente a enxurrada de piadas preconceituosas contra pessoas gordas, homossexuais (inclusive agitando uma parte do público, homofóbica, a reagir com sonoras ironias no meio da fala da atriz) e visivelmente irrigadas daquela falsa moral que envolve a “classe média esclarecida” sobre sua relação com empregadas domésticas – Ravache imita uma antiga funcionária que não tinha dentes e falava errado, era tonta, mas ainda assim foi uma das poucas pessoas que sentiu falta da patroa depois que ela passou -, na segunda parte do espetáculo uma espécie de crise do drama contemporâneo se anuncia quando a personagem começa a falar que o marido, afundado em depressão, declara ter participado de esquemas profundos de corrupção. Daí para frente, o texto se torna uma agonia em se tratando de estética textual e discurso teatral.
NULL
NULL
A tendência dramática de resolver as questões postas em cena pela palavra subjetivada, ou seja, a partir da visão de um herói individualizado e privado, esfacela o caráter público do tema político. Irene, como uma personagem da novela das 8 (uma chave que talvez não seja mais possível de desligar, nessa altura da carreira), despeja sobre nós lições e mais lições sobre ética e comprometimento com o bem estar social a partir de uma visão aristocrática, conciliatória, psicologizada e, como não?, remissiva a todo e qualquer movimento de mulheres-brancas-sinhás previstas na História do Brasil e seus desdobramentos simbólicos – a boa branca que trata bem o porteiro, que diz que a empregada, “apesar de preta, é boa”.
Dito isso, duas questões de antemão me ocorrem.
I – Fui procurar críticas sobre o espetáculo e achei uma da Veja, de Dirceu Jr. incapaz de pronunciar os pormenores do movimento político dentro da peça e de como ela funciona como propaganda ideológica (rasteiramente porque soa como opinião pessoal), cumprindo inclusive o papel de ruído estético não intencional, porque quebra a verossimilhança estabelecida até então pela narrativa da personagem, uma mãe de família fantasma que sente falta dos seus. Nesse sentido, onde estão os critérios do ensaio crítico? Onde eles tocam de fato o teatro e sua relação com a sociedade? Ou de verdade aceitaremos o exercício da crítica como um grande puxa-saquismo ou uma divulgação pseudo-articulada intelectualmente de uma obra que por si mesma não teria força temática e de argumentos?
II – Combatemos Roberto Alvim, atual diretor da pasta de Artes Cênicas da Funarte, e seu séquito de artistas conservadores, mas historicamente ainda vigoram centenas e milhares de teatrões elitistas, fetichistas, de propósito político fantasiado de obra arte neutra, pretensamente superior aos debates que se têm travado nas arenas cênicas do dito “Teatro Político”.
Reacionarismo também produz arte engajada, alicerçada nas estruturas mais perigosas, porque silentes, que as tecnologias do fascismo já puderam engendrar.