As redes sociais, sites e jornais todos, atualmente, exibem uma escalada do autoritarismo e de ideias conservadoras no cenário mundial, principalmente nos países da América Latina. Discursos de ódio, racismo, a defesa de uma pretensa família nuclear e o combate ao comunismo são as pautas centrais na maioria das discussões políticas. Esse cenário parece o replay de um filme que já conhecemos e se mostra muito mais forte em países que não puderam, e/ou puderam muito pouco, haver-se com a própria história de opressão e tortura durante as ditaduras militares.
Voltemos um pouco no tempo, mais especificamente ao período da Guerra Fria, no qual um amplo grupo de países latino-americanos vivenciaram processos de endurecimento e autoritarismo em relação à sociedade civil. Com total apoio norte-americano, as ditaduras frearam processos que colocavam no horizonte um conjunto de reformas sociais, econômicas e políticas.
No Chile, Salvador Allende, eleito presidente pela Unidade Popular, defendeu como principal agenda uma política nacionalista de esquerda em que as reivindicações e anseios das classes populares estavam na ordem do dia. Porém, não demorou para que movimentos conservadores de oposição ao governo viessem à tona na tentativa de derrubá-lo.
Em setembro de 1973, Allende é derrubado pelos militares e o golpe se concretiza. A partir daí, com o general Augusto Pinochet no comando do Chile, instaura-se a primeira experiência neoliberal na América Latina, assim como toda uma série de sequestros, mortes e torturas. Por 17 anos a DINA (Direção de Inteligência Nacional), sob o comando de Manuel Contreras, deixou mais de três mil mortos e desaparecidos. Somente nos anos 1990, a Justiça pôde dar início ao processo de condenações pelos crimes de Estado e seus autores, dentre eles, Contreras e o próprio Augusto Pinochet.
O documentário “O Pacto de Adriana”, dirigido por Lissette Orozco, toca nestes percursos históricos sob um prisma que se inicia dentro de casa, a partir de sua relação com a querida tia Chany, ou Adriana Rivas, torturadora famosa do regime de Pinochet.
Através de registros audiovisuais cotidianos, Lissette percebe formar-se um quebra-cabeça sobre o chão da história familiar e de seu país. A narrativa se constitui a partir desses cacos históricos, íntimos e públicos.
Tia Chany é acusada pelo Estado chileno de seqüestro e assassinato, junto a outras 70 pessoas, no período da ditadura de Pinochet. Como é possível que isso seja verdade? Chany é amorosa e companheira, uma mulher sensível. Lissette então começa a vasculhar as palavras não ditas e realiza em seguida uma contundente decisão política e ideológica para atingir o interior da verdade em seu conceito social, baseando-se no ato verificativo. Um gesto de lealdade à história chilena e à memória dos milhares de mortos, desaparecidos e torturados da ditadura militar.
O Pacto de Adriana” desenha um percurso narrativo que nos torna, além de espectadores, parceiros de Lissette, ombro a ombro, no exercício da descoberta de quem é a tia e de como a partir desse processo se configura uma imbricada relação entre verdade, mentira e afeto. Lissette torna-se narradora comprometida com os estados críticos de sua obra, situando-se como protagonista e antagonista ao mesmo tempo. Revela-nos sóbria e terna os crimes cometidos por Adriana Rivas, a amada Chany, sem negar a si mesma o processo de transformação possibilitado pela imensa pesquisa do passado histórico, suas demandas e complexidades.
Lissette, você poderia nos falar um pouco sobre o seu percurso e chegada ao documentário “O Pacto de Adriana”?
Lissette Orozco: Estudei comunicação audiovisual na escola de arte, ciência e comunicação de Santiago. Fiz uma especialização como roteirista de cinema e televisão, depois fiz um mestrado em documentários. Quando comecei com “O Pacto de Adriana”, não achei que iria fazer um filme. Comecei a compilar tudo o que saía da minha tia, caso algo acontecesse com ela amanhã, eu teria provas de tudo o que se passava, mas quando terminei de fazer o mestrado em documentários, percebi que tinha todos os recursos para construir um filme e foi aí que minha jornada começou. Levei cinco anos para montá-lo e, dentro de todo esse processo de produção, também pensei em mergulhar na literatura sobre a polícia secreta de Pinochet, em livros onde minha tia apareceu ou em livros que serviram de inspiração. Também busquei referências em autores como Hannah Arendt, A Banalidade do Mal, e de referências filmícas. Fui às primeiras grandes referências dos chilenos que falam de ditadura e memória histórica, como Patricio Guzmán, que tem uma larga trajetória. Em todo seu trabalho, pode-se notar a relação com a ditadura chilena e com memória histórica. Guzmán serviu como uma primeira referência inspiradora, mas também vi vários documentários que usei, por exemplo, para trabalhar em primeira pessoa. Acho que a maioria dos documentários que trabalhavam desde a autobiografia a ou a política, os trabalhos de memória central, sempre foram minhas inspirações, mas também uma forma de me desapegar delas. Por exemplo, decidi que em “O Pacto de Adriana” nunca usaria a imagem da casa do presidente [Allende] sendo bombardeada, sei como ela existe na maioria dos documentários da memória política chilena, por isso também me serviu como uma grande referência para me desapegar, para criar uma identidade própria.
Como é ser documentarista no Chile? Vocês, como artistas, têm acesso a políticas públicas de cultura?
L.O: Ser artista no Chile é muito difícil, como em muitas partes do mundo é. Muitos artistas chilenos talvez tenham mais conquistas e coisas no exterior do que no próprio país, mas isso é um clássico, pois ninguém é profeta em sua própria terra. No entanto, posso falar do lugar do cinema: temos cerca de três fundos públicos que não são muito dinheiro e não há tantos prêmios, então a disputa é muito grande e alguns quase sempre ganham porque têm mais experiência, por isso custa muito fazer cinema no Chile e, de fato, “O Pacto de Adriana” acabou sendo feito com verba estrangeira e não com verba chilena. Na verdade, o fundo chileno nunca me contemplou, no entanto, acho que o positivo que temos no Chile é que a indústria de documentários está muito bem consolidada, temos uma indústria. Chama-se Chiledoc. Como uma entidade pública, acredito que, embora ser artista no Chile seja difícil, acho que o cinema documental pode dar mais alguns passos à frente de outros países da América Latina e acho que, graças a isso, também o filme fez uma tour super interessante de festivais quando estava sendo realizado e mais tarde em sua distribuição. Sei que algo foi semeado através do filme quando tivemos a oportunidade de viajar falando sobre história em diferentes partes do mundo.
Como você vê o cineasta latino-americano contemporâneo? Qual é a importância de se posicionar politicamente como cineasta?
L.O: Há coisas que somos a favor em relação à forma como o cinema era pensado antes, mas agora estamos muito mais avançados. Porém, dependendo do país, há pouco acesso a esse setor ou há pouco acesso à visibilidade. Sinto que o cineasta latino, nós, cineastas latino-americanos, não percebemos o grande valor que temos em nossa história e em nosso trabalho, porque quando estamos aqui, comentando um filme, não nos interessa muito saber o que estão fazendo no país do lado, o que estão fazendo na Argentina, o que estão fazendo no Uruguai, no Brasil, é tão lamentável que entre os latino-americanos não conheçamos nosso cinema. Quando fui à Europa para mostrar “O Pacto de Adriana” me dei conta que, para ver os filmes latino-americanos, havia filas, filas, filas de pessoas que querem assistir ao nosso cinema e adoram nosso cinema, e percebo que temos uma qualidade, uma realidade, e uma cultura muito rica, que não sei se nós não a valorizamos tanto porque não nos vemos, mas percebi que na Europa ou nos Estados Unidos os filmes latinos são os mais apetecíveis para todo mundo. Acho que falta esse exercício de nos ver entre nós, acho que poderíamos nos potencializar, nos ajudar muito mais entre os latinos
Para complementar esta questão, acho que há cada vez mais coragem para trazer à luz coisas em nossos países com relação à política da memória histórica, então fazemos cinema, mas também existem grupos, por exemplo, histórias desobedientes, há pessoas que fazem livros sobre parentes, filhos ou sobrinhos dos genocidas de nossas ditaduras, então eu acho que através da arte, através dos filmes pode haver uma transformação política e social.
O Chile tem muitos bons documentaristas. Como sua geração colabora com a tradição documental do cinema chileno?
L.O: Felizmente, eu pertenço a uma geração de cineastas muito combativos, especialmente as mulheres cineastas. Sobretudo, porque viemos de um extrato social onde todos os cineastas estavam na rua gravando o que estava acontecendo, então acho que pertenço a uma geração que é ferida por sua história e que é ciente de sua história. Estamos cientes de que, como um país, nós temos realizado um trabalho de memória, de justiça, pois sabemos que vivemos em constante impunidade, sinto que somos uma geração muito forte e que nossa arma é a câmera. Existem vários grupos de cineastas que trabalham desde a ficção ao documentário, por meio dessas linguagens justiça está sendo feita, uma justiça que nunca existiu no fundo, mas, com base em histórias e problemáticas nacionais, fazemos justiça através de nossa arte.
Como você vê a cena do cinema político documental no Brasil e na América Latina?
L.O: Bem, no que diz respeito ao cinema político latino-americano, há vários filmes relacionados ao cinema político e à memória. No Chile, por exemplo, foi lançado um documentário chamado “Chicago Boys” que são os economistas que criaram o sistema neoliberal chileno, é um filme muito forte, porque daí entendemos por que o Chile é tão desigual. Há vários filmes como esse, há muita denúncia. Há um documentário chamado “El Mercurio Miente” que é sobre do jornal de Agustín Edwards, um milionário chileno que é dono do jornal e que estava vinculado à ditadura de Pinochet para deturpar a realidade da época. Portanto, existem muitos documentários biográficos, políticos e sociais que basicamente nos entregam um vislumbre da realidade para que as pessoas saibam o que está acontecendo em nosso país. Com relação ao cinema político latino-americano, acredito que a América Latina se caracteriza por seu forte cinema político e, sobre o cinema brasileiro, sinto uma grande lástima pelos filmes brasileiros, eles permanecem no Brasil e os que saem são apenas alguns. Lamento não poder conhecer muito mais o cinema brasileiro, mas tenho um filme que trabalha na memória e na política de uma grande amiga chamada Beth Formaggini: um documentário chamado “Pastor Claudio”. É um documentário sobre um pastor cristão que, na época da ditadura brasileira, era militar, então é muito interessante, muito psicológico, muito social, o que é uma tremenda contribuição para o Brasil. Eu conheço documentários que são sobre atletas ou com outro tipo de tema, “O Processo” [dir.: Maria Augusta Ramos] sobre o impeachment de Dilma, por exemplo, que é como um documentário político que eu conheço, mas nesse sentido, honestamente, sei muito pouco sobre o cinema brasileiro e sinto muito, porque estamos tão perto na América Latina e faz falta que nos vejamos. Acho que existe um boom do cinema político latino-americano, mas não somos tão conscientes disso.