Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, em 13 de julho de 2003. Título original: “Os conservadores do modernismo”.
Ao gosto do freguês: esse é o título do texto que abre Nacional estrangeiro, do professor de sociologia da USP Sergio Miceli, uma análise do modernismo brasileiro, especialmente o visual, que percorre dois caminhos: primeiro, ele discute o ambiente que possibilitou a formação do grupo de artistas modernistas e os limites que esse mesmo meio impôs; depois, ele debate o papel que a imigração, tão importante para a história da cidade de São Paulo e para o país, teve na obra de artistas como Anita Malfatti e Lasar Segall, ela filha de italianos, ele um judeu nascido na Lituânia — uma questão que, normalmente, não é tratada pela crítica do movimento.
“O relato do modernismo costuma realçar o papel da ruptura estética, do que é inovação; quis enfatizar os laços de continuidade”, afirma Miceli. O livro começa, assim, mostrando que Ferdinand Léger, um artista que exerceu importante influência sobre Tarsila do Amaral, realiza, numa de suas obras, L’homme au chien, uma série de concessões ao gosto do seu pretendido cliente não-europeu: o brasileiro Paulo Prado. Esse caso serve de introdução para aquilo que Miceli procura descrever: o diálogo entre a clientela que financiava (normalmente, com dinheiro do Estado) a produção artística em São Paulo e os artistas que ela manteve e formou. E de como essa relação provocou o surgimento de uma espécie de “teto de aceitação”.
Visualmente, é possível entender parte da complexidade dessa questão observando algumas telas dos artistas do período: quando encomendavam retratos seus ou de familiares, os mecenas paulistas deixavam claro a preferência por estilos acadêmicos, não influenciados pelas correntes ditas modernistas. Esse gosto, na opinião de Miceli, ajudou também a limitar os voos dos modernistas brasileiros, que tiveram de encontrar soluções para poder participar do incipiente mercado de arte do país.
“Apesar de não gostarem da arte modernista, esses ‘protetores’ criaram as condições para a sua emergência, fundando instituições (como a Pinacoteca) e concedendo bolsas que financiaram a produção e a formação desses artistas”, diz Miceli, que faz um perfil de alguns nomes importantes dessa elite: o arquiteto Ramos de Azevedo, o engenheiro Adolfo Augusto Pinto, o presidente do Estado de São Paulo Altino Arantes, o advogado e deputado Freitas Valle e a colecionadora Olivia Guedes Penteado, principal promotora dos modernistas, mas, como todos eles, pintada por autores acadêmicos.
Se não houvesse esse gosto conservador por parte dos mecenas, acha ele, o resultado do movimento modernista poderia ser outro, com maiores voos de invenção e mais ousadia política. Durante a entrevista, Miceli citou o caso do México, em que grandes encomendas governamentais, tanto no México e como nos EUA, permitiram que artistas como Diego Rivera encontrassem respostas diferentes das do modernismo brasileiro. “Quando os artistas ousam demais, a reação é duríssima”, explica Miceli. A célebre crítica de Monteiro Lobato à exposição de 1917 de Anita Malfatti é um dos casos que lhe servem de exemplo. Na sua opinião, Lobato evidencia o incômodo da elite conservadora com o reprocessamento artístico de novas experiências sociais — em particular, a imigração.
As duas questões, portanto, se articulam. Por que, por exemplo, debate-se tanto a italianidade na literatura do não italiano António de Alcântara Machado e quase não se fala disso da obra de Anita Malfatti? Miceli, que não discute, no seu livro, a obra do autor de Brás, Bexiga, Barra Funda, corrige: “Quando o assunto é Anita, essa questão nunca é colocada”. Apesar do sobrenome italiano (e da ascendência alemã, Krug, que ela também tinha, por parte de mãe), o problema ficou “oculto” por mais de 80 anos.
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‘Retrato do Arquiteto Ramos de Azevedo’, numa pintura acadêmica de Oscar Pereira da Silva
Miceli faz uma detalhada análise de várias obras e escreve, por exemplo, sobre A estudante russa, A estudante, A boba e A mulher de cabelos verdes: “(Elas) constituem flagrantes dramáticos que exploram aspectos e dimensões complementares do repertório de posturas corporais, faciais e afetivas das mulheres imigrantes de seu círculo familiar de sociabilidade.” Mais à frente, complementa que as reações à pintora, em especial “o artigo arrasador” de Lobato, “talvez devam ser interpretadas como manifestações de resistência dos defensores de um ideal de arte brasileira realista contra o afluxo de um estilo artístico ‘moderno’ de importação, ou, melhor, no caso de Anita, de uma produção fundamente marcada pelas vanguardas na dicção autoral de uma artista representativa do grupo imigrante majoritário”.
Lobato, diante dos quadros de Anita, teria se perturbado com o fato de ela dar feição à sua experiência, ter colocado em suas obras “personagens que ainda lhe pareciam em fase de provação, ou, melhor, socialmente ilegítimos, inadequados e impróprios ao trabalho artístico”. Como escreve Miceli em outro ponto, “as marcas da história social” de Anita foram condenadas ao esquecimento. Na literatura, acredita Miceli, o conservadorismo em relação ao tema da imigração teria sido ainda mais forte — e um bom exemplo disso seria o caráter nativista de Macunaíma, uma das obras mais importantes do primeiro modernismo (quem costuma ver preconceito na obra modernista em relação aos imigrantes é Flávio Kothe, professor da Universidade de Brasília, autor de O cânone republicano, recém-lançado).
Tanto Anita quanto Segall têm de lidar com a discussão do nativismo, colocada pelos líderes do movimento Oswald e Mário de Andrade. Analisando autorretratos de Segall, nascido em Vilna, capital da Lituânia, Miceli defende que “o anseio de constituir família, de se integrar aos círculos de sociabilidade modernista, de se mostrar em estado quase de simbiose com sua nova existência social e artística, tudo isso deve ter contribuído para a decisão de se autorretratar com feições aproximadas às dos personagens de cor das telas desse período inicial de adaptação”.
Nesse esforço, Segall também pinta trabalhadores de um universo que desconhece — no Brasil, ele se casa com uma das filhas da família Klabin, que integrava a elite judaica de São Paulo. “Ele não conhece a vida dessas pessoas, elas estavam distantes dele.” Miceli valoriza especialmente obras de Segall que tratam da imigração judaica, que não estão entre as mais conhecidas do pintor, em que ele “lograva reinserir sua trajetória pessoal no fluxo de uma história coletiva”. Entre as questões que o autor aborda no livro está também a do anti-semitismo que teria levado ao fracasso da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e a da mudança do gosto da elite, em parte fruto dos casamentos entre oligarcas e imigrantes enriquecidos.
Sobre o título da obra, Miceli afirma que os dois termos — nacional e estrangeiro — estão deslocados, fora do lugar, recuperando uma imagem criada por Roberto Schwarz. Quanto ao nacional, o modernismo tem de lidar, e normalmente não lida bem, com a imigração, com o que vem de fora. Para isso, se utiliza de recursos estéticos e técnicas estrangeiras, que têm de se adaptar ao gosto da elite local.
Atualmente, Miceli trabalha num estudo que pretende comparar o modernismo brasileiro e o argentino. Na sua opinião, apesar de resultados diferentes, o movimento que “apaga” a questão da imigração no Brasil também ocorre na Argentina, cuja capital estava, como São Paulo, apinhada de italianos.