“Alô, alô marciano
Aqui quem fala é da Terra…”
Elis Regina canta os versos de Rita Lee com caretas, expressões irônicas, um torto olhar no rosto – porque faz graça ao cantar, aproveita-se do estrabismo que lhe estampava as feições como uma marca registrada, para nos dizer, em um tom provocativo, que
“A crise tá virando zona
Cada um por si todo mundo na lona
E lá se foi a mordomia “
Ali, nos anos 80, quando a música foi lançada, Elis já disparava críticas às classes altas e à iludida classe média brasileira que, diante de seus acúmulos resultantes do próprio esforço, crê integrar o grupo seleto dos ricos brasileiros, isso é, as elites que sempre pautaram a agenda da cafonalha nacional.
Nos últimos dias, devido ao gritante negacionismo a medidas que por decreto foram implementadas para diminuir a velocidade de contágio do coronavírus, pudemos assistir ao registro de comportamentos no mínimo hostis à ordem social e ao direito democrático. Episódios filmados por câmeras de celular ou câmeras de segurança como aquele em que um homem agride um funcionário de balcão que se recusa a atendê-lo sem máscara, ou quando um desembargador também sem máscara, após rasgar uma multa, humilha o guarda que lhe advertiu, ou mais: o outro episódio em que um homem decide insinuar que o entregador de aplicativo teria inveja de sua cor branca, mostram com nitidez a mentalidade do cidadão médio brasileiro que se acha melhor do que a classe trabalhadora porque pode gastar dinheiro. Essa classe de gente parece arrogar-se o poder supremo, como se atualizasse o mito cristão medieval do direito divino, a antiquada máxima ortodoxa: o sujeito é para o que nasce.
Pessoas que acreditam estar acima da própria morte e que não temem desafiá-la quando se expõem à possibilidade de contágio de um perigoso vírus, cuja vacina está distante de ser aprovada pelos órgãos competentes, só criam essa mentalidade porque confiam que o dinheiro é o suporte necessário para que suas vidas sejam salvas, diferentemente das vidas de outros milhares de brasileiros.
Isso não é uma ilusão, a sistemática precarização dos modos de vida delimitam historicamente as fronteiras da saúde física e mental dos povos subalternizados. É gritante a diferença da força letal da covid-19 em bairros periféricos e em regiões economicamente privilegiadas. A falta de equipamentos em hospitais públicos e outros problemas históricos como, por exemplo, a inexistência de saneamento básico, de renda mínima familiar que garanta alimentação de qualidade e a ausência de direito à moradia digna e à informações sobre medidas higiênicas e de prevenção de doenças fragilizam os corpos e as comunidades periféricas. Isso é uma realidade, o que parece surreal é o escárnio promovido pelas classes dominantes sobre o assunto.
Bom sempre lembrar da situação na High Society virtual em que a digital influencer Gabriela Pugliesi, em uma recepção para uma uma de suas amigas, ex-BBB que tem o nome, a cor de pele e a visibilidade de uma ex-BBB (e por isso eu não lembro), gritou em um storie de Instagram “Foda-se a vida”. Pugliesi, conhecida por dar dicas de autocuidado, alimentação, exercícios físicos e autoaceitação corporal, foi uma das pessoas famosas a ocuparem as notícias sobre o coronavírus no Brasil. Na época em que gravou o vídeo, ela já estava curada da infecção e, segundo sua compreensão sobre o tema da infectologia e da pandemia, um petit comité em sua residência não ofereceria riscos novos de contaminação – pelo menos para ela mesma e para a sua turminha.
Pugliesi descobriu estar com coronavírus após participar da festa de casamento de sua irmã, meses antes, onde dezenas de pessoas foram contaminadas, dentre elas a cantora Preta Gil. Esse evento foi relatado pelos jornais como um dos primeiros focos de infecção na classe média carioca e baiana.
Por consequência do diálogo de classes em que vigoram as funções de servos e servidores, trabalhadores que não contam com a mesma sorte de herdar patrimônios e sobrenomes coloniais e, portanto, não têm como garantir vagas em leitos de hospitais particulares, ou o acesso ao acompanhamento médico privado e imediato, sofreram contágio, levando o vírus para regiões mais afastadas e onde a vida em comum se dá com menor grau de isolamento entre casas e no convívio humano. Daí pode-se inferir que o “Foda-se a vida” bradado por Pugliesi é um foda-se para a vida dos outros, seus empregados, seus funcionários, sua equipe, as pessoas invisíveis que com a força dos próprios ombros sustentam os alicerces que fazem da influencer uma vencedora no jogo do capital.
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Elis Regina canta os versos de Rita Lee com caretas, expressões irônicas e um torto olhar no rosto para nos dizer em tom provocativo
Em Recife, Mirtes Souza, empregada doméstica na casa dos Corte Real, foi infectada junto com sua mãe pelo coronavírus através do contato com seus patrões e ainda assim seguia trabalhando. Certo dia, Mirtes precisou deixar seu filho Miguel Otávio alguns minutos com Sarí Corte Real, a patroa que na ocasião fazia uma sessão de manicure, para ir passear com o cão da família. Sarí abandonou a criança de cinco anos no elevador do prédio, deixando-a livre para ir até alguns andares acima completamente sozinha. Miguel escora-se em um parapeito, talvez tentando enxergar a mãe no andar térreo, escorrega e cai, tornando-se vítima de uma das tragédias mais assombrosas do ano de 2020. Sarí não apenas deu as costas para a saúde de Mirtes e de sua família, mas também foi responsável pela ação fatal que tirou a vida de uma criança pobre, filha da classe trabalhadora, negra e indefesa.
Nessa semana, mais dois casos parecem ilustrar também essa alma de aristocracia retardada da elite brasileira: no Rio de Janeiro, duas mulheres se engalfinharam nas ruas do Leblon. A arquiteta Aline Cristina Silva, incomodada com o comportamento da empresária Sheila Mack na traseira de um carro conversível, dançando apenas de biquíni, decidiu chamá-la de vagabunda e atirar duas garrafinhas de água em suas costas. Posteriormente, Aline diria que tratava-se de um “ensaio de filme pornô” em pleno happy hour do Leblon.
Sheila Mack, por sua vez, depois de receber as garrafadas nas costas, pula do carro, vai até Aline e desfere tapas e puxões em seu rosto e cabelos. A imagem capturada por celular mostra o balanço frenético imposto ao corpo da arquiteta pela força da empresária. Em seguida, um homem da mesa de Aline se levanta e parte para cima da agressora. Qual delas? A responsável pelos golpes do último round, Sheila Mack. Ele tenta golpeá-la, mas Sheila é mais rápida e escapa, pula para dentro do carro e o máximo que o homem consegue fazer é arrancar-lhe a parte de cima do biquíni, deixando-lhe com os seios à mostra, Sheila os balança sob holofotes provocando o grupo na calçada pela última vez enquanto o conversível acelera e triunfalmente some dali.
Em outra cidade importante do sudeste, São Paulo, na mesma semana, um homem sente-se constrangido no restaurante Gero, um dos mais caros da capital, depois de ser avisado que não seria atendido, uma vez que o horário limite de funcionamento do restaurante já havia sido inclusive ultrapassado. Os amigos com os quais o médico Carlos Iglesias iria se encontrar chegaram com quase uma hora de atraso e ainda assim exigiram o atendimento. Bom lembrar que as recentes determinações sobre horário de funcionamento de estabelecimentos comerciais foram feitas em razão da pandemia, novamente ela, ela que já ninguém aguenta, ela, a pandemia, que fez com que álcool em gel e máscaras sumissem das prateleiras de farmácias e mercados na época dos primeiros casos brasileiros notificados, famílias com recursos para tanto compraram estoques a fim de manterem-se salvas em seus confinamentos particulares, afinal, as pessoas de berço são especiais exatamente por serem de berço, herdam os sobrenomes das melhores famílias. No Brasil, as melhores famílias, especificamente, são aquelas cujo lastro patrilinear tem direta relação com a dominação de seres humanos a partir da discriminação racial, com violência física e sexual, com grilagem e espoliação de terras, com corrupção nas casas parlamentares e tantas outras mumunhas.
Na querela entre o médico Carlos Iglesias e o restaurante Gero a frase “eu tenho berço” foi repetida várias vezes em diferentes momentos, parece ter se tornado, no momento, a cartada última da série de argumentos desferidos em berros muitas vezes ininteligíveis. Um verdadeiro barraco.
O conceito de barraco tem origem fundamentada no racismo e na desigualdade social. Barraco é onde o pobre vai morar nas favelas, periferias, baixadas e ribeiras, o pobre que faz barraco é o pobre barraqueiro. Nesse turno, injeta-se também uma pequena e quase imperceptível dose de sexismo que amalgama essencialmente a categoria mulher negra ao barraco e à condição de barraqueira. Para os ricos, como os frequentadores do Gero, por exemplo, a ideia de barraco não é conveniente, porque os aparta de sua modalidade de classe, por essa razão os ricos acham que não fazem barraco, pelo contrário, ao entrarem em situações públicas vexatórias, cobrem-se com as roupas invisíveis do rei e acreditam estar empreendendo a construção de belos castelos.
Se viva, Elis Regina poderia testemunhar como o advento das redes socais e o avanço tecnológico das câmeras digitais contribuíram para a exposição das rinhas de rico e sua genética vulgar, seu berço espalhafatosamente ridículo e cheio de pretensões intelectuais vagas e sem sentido.
“Tá cada vez mais down in the high society”
Elis criaria novamente uma careta de largo sorriso e finalizaria este artigo dentro do tom, elegante, sem acidente, sem desafino.