Neste último sábado, 3 de abril, as múmias de 22 reis e rainhas do Egito antigo protagonizam um “cortejo de faraós” sem precedentes. Em solenidade transmitida ao vivo pela televisão nacional, elas foram transportadas do Museu do Cairo, onde repousavam há mais de um século, ao Museu Nacional da Civilização Egípcia (MNCE), em Fustat. O mega desfile de 40 minutos recebeu o aplauso entusiasmado da população, que saiu às ruas em peso, para prestigiar seus ancestrais, em detrimento dos procedimentos sanitários aconselháveis em plena pandemia da covid.
A bordo de carros alegóricos dourados ao estilo do período, dentro de cápsulas contendo nitrogênio, para garantir a sua proteção, e com direito a orquestra sinfônica acompanhado de show musical digno de abertura de Olimpíada, elas seguiram rumo ao moderno complexo que as abrigará daqui em diante.
Projetado para ocupar uma área de 480 mil metros quadrados, quando estiver totalmente pronto, o MNCE será o maior do planeta, deixando para trás congêneres como o Museu do Louvre e o Museu Britânico. Nesse inicio de 2021, apenas um segmento dele ficará acessível ao público, mas suficiente para contar com uma galeria de artefatos históricos únicos, expostos dentro das mais avançadas técnicas museológicas disponíveis. A obra faraônica, com o perdão do trocadilho, custou mais de 1 bilhão de dólares. Além das peças oriundas do congestionado Museu Egípcio do Cairo, a 23 quilômetros de distância, o novo edifício exibirá cerca de 20 mil itens nunca mostrados, muitos deles do conjunto de Tutancâmon, pela primeira vez reunidos.
A epopéia vem de longe. Mais exatamente de 2002, quando o então presidente Hosni Mubarak, com pompa e circunstância, lançou a pedra fundamental do Grande Museu Egípcio, imaginado para servir de vitrine para o mundo exterior e, de quebra, descongestionar o atravancado espaço original. A menos de 2 mil metros das Pirâmides, ele teria também o intuito de redefinir urbanisticamente a planície de Giza, azeitando a máquina do turismo, carro chefe da economia, abalada pela instabilidade política da região.
A cerimônia foi precedida por uma das mais concorridas competições de arquitetura de que se tem notícia, envolvendo 1.557 propostas vindas de 82 países. Venceu o escritório irlandês Heneghan Peng, que previu um muro de pedra translúcida percorrendo todo o comprimento da fachada, alinhado com as Pirâmides de Khufu e Menkaure.
Em 2006, dois anos antes da largada nos canteiros de obra, o governo deslocou a estátua de Ramsés II da praça no centro da capital para o pórtico imponente. Só que os U$ 550 milhões iniciais sumiram como água na areia. Depois veio a Primavera Árabe, a queda do ditador, a Junta Militar, o Parlamento, as aguardadas eleições presidenciais, o triunfo da Irmandade Muçulmana, a perseguição a Morsi, o golpe de Sissi e a pandemia. O projeto estacionou. Agora, o que parecia miragem no deserto torna-se uma realidade tangível.
Múmias empilhadas
Há alguns anos, quando estive no Cairo por três meses, pouco depois da vitória da revolução de 2011, existia apenas o velho estabelecimento, montado nos padrões museológicos do colecionismo etnográfico típico do século XIX, seguindo a mentalidade de entupir os salões com peças expostas segundo a ordem cronológica.
Inaugurado em 1858, a partir da coleção doada pelo arqueólogo francês Auguste Marriette, mudou-se em 1900 para o palácio de estilo eclético, saído das pranchetas do seu conterrâneo, Marcel Dourgnon, numa das laterais da célebre Praça Tahrir, que em dado momento virou símbolo internacional de resistência contra a opressão e o despotismo.
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Museu Nacional da Civilização Egípcia é projetado para ocupar uma área de 480 mil metros quadrados, quando estiver totalmente pronto
Em uma tarde escaldante como todas as tardes do verão africano, munida de coragem e calçados confortáveis, decidi enfrentar a maratona de uma longa visita. No guichê de aquisição do bilhete, uma amostra da crise do setor materializava-se no enxame de guias dispostos a discorrer sobre as dinastias a preços módicos.
A insistência era grande e a tentação também, pois estava diante de uma corrida contra o tempo para dar conta do colossal acervo de 120 mil antiguidades em 42 salas do térreo e outras tantas no andar superior. Isso, sem mencionar o espólio de Tutancamon e as Múmias Reais, um capítulo à parte. No conjunto, a falta de uma boa curadoria ficava evidente na ideia de exibir o máximo de peças possível, e sobretudo na ausência de controle de temperatura e umidade na maioria das alas.
Difícil selecionar os destaques imperdíveis naquele universo infindável de sarcófagos, tronos, objetos ritualísticos e de uso doméstico, máscaras mortuárias, estátuas de todos os tamanhos e formatos, entalhes de pedra, trechos de estuque com hieróglifos coloridos. E múmias, uma profusão delas, de bichos e de seres humanos. Umas sobre as outras, em prateleiras de madeira tosca, como num depósito ou loja de bric à brac. Sem luz apropriada nem ar condicionado, acumulando poeira, elas resistem há milênios. Recusando-se a morrer, fazem as delícias dos turistas, que tiram fotos furtivas para postar no Facebook e no Instagram.
Se logo à entrada aquele tratamento degradante me irritou, o pior ainda estava por vir. Subi ao piso do Tesouro, abrigo de joias ofuscantes, incrivelmente refinadas, e alcancei o corredor das Múmias Reais. Eram meia dúzia delas, com os rostos esturricados pelo sol. No entorno, um burburinho de conversas e risadas em completo desrespeito aos corpos das nobres majestades. A meu lado, um garoto debruçado sobre o tampo de vidro translúcido, lambia um picolé que respingou no repouso de quem fora, no passado distante, enterrado num esquife de desenhos delicados. Como manter a dignidade em tais circunstâncias?
Deixei o local revoltada com a falta de sensibilidade dos visitantes, e na saída parei para ler os painéis explicando a história do traslado até aquele Museu. Seu túmulo, contavam, fora originalmente escavado pelos altos sacerdotes locais, que os levaram do Vale dos Reis para o complexo de templos mortuários de Deir el-Bahari, no lado oposto à cidade de Luxor. Lá elas teriam sido descobertas por um pastor, e logo recuperadas pelo “Serviço de Antiguidades do Egito”, criado em 1835 com o intuito de tentar evitar a pilhagem nas estações arqueológicas.
Na ocasião em que o navio a vapor deixou o vilarejo, os moradores perfilaram-se às margens do Nilo para despedir-se e homenagear seus antigos monarcas. Ao chegar ao Cairo, porém, uma humilhação inimaginável aguardava os despojos reais. Como os funcionários da alfândega não encontravam nos formulários de produtos vindos de fora a mercadoria “múmia”, e a burocracia exigia seu preenchimento para dar a baixa no material, depois de alguma reflexão, resolveram classificá-las como “peixe salgado”.
Estremeci, sem saber se ria ou chorava. Afinal das contas, pensei, os pobres faraós fizeram um gigantesco “esforço de reportagem”, mandando erguer mausoléus no maior capricho. Não economizaram recursos materiais nem humanos, gastaram fortunas para usufruírem de uma vida pós-morte radiante e, passados alguns milhares de anos, acabam reduzidos à condição de uma espécie sui generis de bacalhau.