Não lembro de tantos detalhes.
Era um tempo mais frio. A garoa era mais fina. O mundo parecia maior.
Na escola nós cantávamos o hino nacional em fila no pátio. A merenda era boa e as aulas, enfadonhas.
Os generais presidentes apareciam de óculos escuros na TV. Tinha a Vila Sésamo na Globo e a Geovana na Tupi.
Em casa era Roberto Carlos, Elton John, Tim Maia, Burt Bacharach, Beatles, samba e brega, no rádio e na vitrola.
Tinha o futebol na quarta e no domingo, no rádio Evadin e nas reprises da TV Cultura.
Tinha tanta gente que vinha e ia embora que até parecia que as novidades nunca acabariam.
Tinha uma tristeza que me invadia nas tardes/noites e hoje, às vezes, ainda volta.
Isso tudo era genérico, até feliz, inclusive as tardes de tristeza.
Mas houve uma história que não foi genérica.

(Foto: Danilo Prates / Wikimedia Commons)
Em frente à minha casa, na Rua Ipiranga, morava uma senhora evangélica chamada Dona Nice. Coque e óculos eram a identidade dessa senhora que tinha vários filhos. Na casa, antiga e ampla, ainda tinha uma edícula, que ela alugava só pra casais.
Muitos casais passaram pela edícula da Dona Nice. Lembro vagamente dos rostos dessas pessoas que pareciam estar sempre de passagem.
Foi em 1977 que mudou um casal diferente para o quintal da Dona Nice.
Eram jovens. Ele negro, ela loira. Tinham duas filhas. O moço tava sempre de macacão sujo de graxa. Soube que era mecânico de automóveis. A moça, sempre sorridente, fez amizades na vizinhança e cuidava das filhas. Ele era calado e aparentava estar sempre indo ou vindo do trabalho.
Uma única vez, trocamos algo próximo de uma interação. Eu e os moleques estávamos jogando bola na rua. Era uma ladeira, e a bola desceu morro abaixo. O moço estava subindo, carregando nas costas o cansaço do trabalho. Ele parou a bola com um movimento simples, sem esforço, e chutou de volta. Um chute firme, certeiro. Não disse nada, apenas sorriu de canto de boca e entrou pra dentro da casa. A gente agradeceu, meio sem jeito. Nunca dissemos mais nada um pro outro, mas aquele sorriso ficou na minha cabeça.
Uma das minhas diversões era ficar em frente de casa batendo bola ou olhando o mundo da minha rua. A rua da minha casa era a porta do meu mundo.
“Estão levando o mecânico que mora na casa da Dona Nice, acho que é polícia civil” – meu irmão entrou afoito em casa, naquela manhã de um dia qualquer do ano de 1977.
“Não se mete, deve ser coisa grave” – minha mãe sacando a prudência dos anos de chumbo.
Eu corri pra frente de casa, desobediente. A rua estava vazia. Hoje, eu imagino que havia vários olhos observando tudo sem se envolver, mas nem um corpo estava aparente. Foi a curiosidade de menino levado que me permitiu ver a Belina vermelha saindo às pressas.
Aquela Belina vermelha. Estranha e ameaçadora. Na minha cabeça de criança, carros eram só carros. Mas aquele não. Ele levava algo embora. Levava uma pessoa, um pai, um sorriso. O som do motor era mais alto que o habitual. Feio, como um grito abafado. Nunca gostei de Belinas depois disso. Especialmente das vermelhas.
Depois disso, muita especulação.
O moço tinha roubado peças na oficina e o dono era um delegado? A oficina desmontava carros roubados? A fofoca era feita na surdina, pois a esposa continuou morando ali por um tempo.
Ele se envolveu com comunismo – a vizinha que morava ao lado da casa da Dona Nice afirmou com convicção, até porque ajudou a esposa do moço do macacão sujo de graxa.
Nunca soube ao certo o que de fato aconteceu. Na vila e nas redondezas ficou a versão de que o moço negro, calvo, que vivia de macacão sujo de graxa, era um subversivo comunista. Pouco tempo depois a mãe e as filhas se mudaram dali, do pai nunca mais tivemos notícias.
Com o tempo, a imagem daquela Belina se misturou aos vultos dos generais de óculos escuros na TV. Eles não tinham rosto, mas tinham poder. Na escola, ainda cantávamos o hino em fila. Mas agora as palavras pareciam mais pesadas, carregadas de um significado que eu não entendia direito, mas que me apertava o peito. A Belina vermelha levava segredos, verdades que não se diziam, perguntas que não se faziam. Eu sabia disso, embora não soubesse explicar como.
É uma história que nunca vou esquecer. Um casal jovem, a manhã de sol, a rua porta do meu mundo, a belina vermelha, o esposo/pai que foi levado e a interna interrogação do desfecho dessa história.
Do que sei é que corria o ano de 1977, eu cantava o hino na fila no pátio da escola e quem governava o Brasil, por trás dos óculos escuros, era o General Ernesto Geisel.
31 de março pra mim é isso: a Belina vermelha e o vazio que ela deixou. Uma história sem desfecho, como tantas outras. Não há comemoração que apague o silêncio de uma pergunta sem resposta. Não há esquecimento possível para um carro que levou mais do que um homem; levou também um pedaço da minha infância.