Trilha Sonora para um Golpe de Estado é um documentário denso que, em duas horas e meia, acondiciona um volume vertiginoso de informações sobre a história política da Terra nos anos 1960. Para isso, toma como protagonista o líder do movimento pela independência do Congo, Patrice Lumumba (1925-1961), e como co-protagonistas o primeiro-ministro soviético Nikita Khrushchev (1894-1971), o primeiro-ministro cubano Fidel Castro (1926-2016) e o ativista estadunidense dos direitos civis negros Malcolm X (1925-1965). Podem ser definidos como panos de fundo da trama a Guerra Fria, então em voltagem máxima, e sobretudo a utopia da criação dos provocativamente batizados Estados Unidos da África, centralizada nas figuras de Lumumba e dos líderes pró-independência de Gana, Kwame Nkrumah (1909-1972), e Guiné, Sékou Touré (1922-1984). Eles e outros lutavam para libertar seus países da condição de colônias controladas, respectivamente, por Bélgica, Reino Unido e França. Estão postos alguns dos antagonistas, cujos chefes de Estado são invisíveis no filme, com exceção do rei belga, Balduíno I (1930-1993), e de seu premiê, Gaston Eyskens (1905-1988). Aqui o massacre campeia e o sangue corre aos borbotões.
Indicado ao Oscar de melhor documentário e em cartaz nos cinemas brasileiros a partir desta quinta-feira, dia 30, Trilha Sonora para um Golpe de Estado é uma co-produção Bélgica-Holanda-França, dirigida por Johan Grimonprez, um cineasta belga e branco, o que de partida desperta desconfianças quanto ao viés empregado na narrativa. De modo geral, Grimonprez entrega um mea culpa e uma boa lavagem de roupa belga em público. Não atenua o caráter imperialista, colonialista e racista dos reis belgas e seus prepostos, mas também não se desprende totalmente da ambiguidade de defender o lado mais fraco e calado da história, pertencendo ao lado mais forte e tagarela.

(Foto: Harry Pot / Anefo / GaHetNa – GaHetNa Nationaal Archief NL)
Igualmente ambíguo é o fio condutor do filme, que aponta para a cultura e para a guerra cultural sobressalente aos conflitos da época (ou de qualquer época): permeia abundantes e ricas cenas documentais com a música daquele tempo, sobretudo o jazz estadunidense de artistas – todos negros – como Duke Ellington, Nina Simone, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk, John Coltrane, Charles Mingus, Miles Davis, Max Roach, Abbey Lincoln, Melba Lisbon, Art Blakey & The Jazz Messengers, Ornette Coleman, Archie Shepp, Eric Dolphy… Aqui jorram blue notes em vez de sangue, mas aqui também espreita um coadjuvante pouco presente no filme, mas mais inclinado a eminência parda que a figurante: o republicano Dwight Eisenhower (1890-1969), então presidente dos Estados Unidos da América.
O cantor e trompetista Louis Armstrong atravessa o documentário como o mais ambíguo dos jazzistas, excursionando pela África por encomenda do Departamento de Estado de Eisenhower, supostamente para disseminar o american way of life entre colonizados e ex-colonizados, portando o título informal de “embaixador do jazz”. Nas palavras do documentário, a Agência Central de Inteligência (CIA) estadunidense transforma os concertos de Louis Armstrong no Congo, em setembro de 1960, em cavalo de Troia, com o objetivo de evitar que mãos soviéticas se apossem do urânio congolês – usado, por exemplo, na fabricação das bombas atômicas que destruíram Hiroshima e Nagasaki.
Armstrong canta no Congo em setembro de 1960, em meio à crise (plantada pela Bélgica e pelos EUA) que culminará com a tortura e execução de Lumumba, em janeiro de 1961, depois de ocupar o posto de primeiro-ministro do Congo independente por meros cem dias até ser deposto pelo golpe de Estado que dá nome ao documentário, liderado por títeres congoleses (e por belgas, e por estadunidenses…). O assassinato seria atribuído a (golpistas) congoleses opositores, mas mais de uma voz se ergue no filme afirmando que a ordem partiu de Eisenhower.
O filme livra a cara de Armstrong, afirmando que, convencido de ter sido usado como cortina de fumaça no Congo, o cantor de “What a Wonderful World” ameaçou renunciar à cidadania estadunidense e se mudar para Gana – como se sabe, isso não aconteceu. Enquanto Nina Simone canta na Nigéria “sem saber que estava num front da CIA” e Dizzy Gillespie toca “no Oriente Médio do Paquistão à Iugoslávia”, Armstrong se apresenta em Gana para 100 mil pessoas e dedica “Black and Blue” ao líder ganês Nkrumah. “O que eu fiz para ser tão negro e triste?/ sou branco por dentro/ mas isso não ajuda no meu caso/ porque não posso esconder o que está em meu rosto”, diz a letra de um dos poucos números norte-americanos cantados no filme, ao lado daqueles interpretados pelas cantoras Nina Simone e por Abbey Lincoln, essa entoando, lancinante, o libelo “We Insist! Freedom Now Suite”.A música parece veicular o discurso e o contradiscurso num mesmo envelope.
Em contraponto, Dizzy Gillespie “trola” os Estados Unidos divulgando sua candidatura à Presidência, para transformar a Casa Branca em Casa do Blues. No palco, Gillespie escolhe e nomina seus futuros ministros: Duke Ellington, Miles Davis (como diretor da CIA), Max Roach, Charles Mingus, Ella Fitzgerald, Louis Armstrong, Thelonious Monk e… Malcolm X.
O diretor Grimonprez demonstra fascínio particular pelo discurso de Khrushchev na 15ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em setembro de 1960, uma contundente peça de denúncia contra o colonialismo e o imperialismo europeu/norte-americano no Congo e na África. Enquanto Eisenhower chega à ONU em carro aberto, sob fundo musical de “La Vie en Rose”, em francês, por Louis Armstrong, Khrushchev submete à ONU uma resolução para varrer o colonialismo da face da Terra. O líder soviético ironiza o racismo vigente na “terra da liberdade” estadunidense: “Crianças negras não podem frequentar a escola com crianças brancas. Não é embaraçoso para um país tão civilizado? Na América, negros são linchados, enforcados. Isso é democracia?”.
A resolução proposta por Khrushchev coloca os Estados Unidos em xeque – votar contra seria como afirmar “somos colonialistas”. EUA e Bélgica respondem com abstenções. Forma-se um bloco afro-asiático, e a resolução pró-independência das colônias é aprovada com 89 votos entre 99 possíveis.
Os acontecimentos na 15ª Assembleia da ONU provocam algumas das cenas mais eletrizantes de Trilha Sonora para um Golpe de Estado. Os EUA negam visto para Patrice Lumumba, mas recebem Nikita Khrushchev e Fidel Castro. Os cubanos são expulsos do hotel em que estão hospedados, depois que a imprensa norte-americana noticia “fortes rumores” de que estariam “matando e depenando galinhas em seus quartos”. Malcolm X convida Fidel para se hospedar no Hotel Theresa, no Harlem. Ali, sob holofotes planetários, Fidel recebe visitas de Malcolm X, do egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970) e de um sorridente Khrushchev, que posa abraçado ao líder cubano em meio a uma multidão de jornalistas brancos e moradores do bairro negro de Nova York. Como pano de fundo, a música escolhida é a vibrante “Qué Rico Mambo”, com o cubano Pérez Prado.
A propósito, não é apenas o jazz que apimenta a Trilha Sonora para um Golpe de Estado. Brilham na tela a sul-africana Miriam Makeba e os congoleses Joseph Kabasele, Vicky Longomba, Adou Elenga, Dr. Nico, Marie Daulne, Franco & OK Jazz e Rock-a-Mambo. Entre as canções luminosas que inundam a tela, estão hinos informais de independência como “Indépendance Cha Cha”, por Kabasele, e “Vive Lumumba Patrice!”, com Longomba. A música europeia não aparece bem na fita: resume-se a um pálido concerto de orquestra assistido pelo secretário-geral da ONU, o sueco Dag Hammrskjöld, que discursa em prol da “língua universal da música”. Nas Nações Unidas, Khrushchev acusa Hammerskjöd de aliar-se ao golpismo, inclusive enviando tropas da ONU para o Congo.
Trilha Sonora para um Golpe de Estado perturba por ajudar a entender não só o assassinato de Lumumba, mas também os de Malcolm X, Martin Luther King e Sam Cooke, entre outros. Acrescenta peças elucidativas para o quebra-cabeças dos levantes negros pelos direitos civis nos EUA ao longo dos anos 1960, quem sabe atiçados pelas lutas de libertação na África e, certamente, pela voz de Malcolm X contra o autoproclamado e falacioso “mundo livre” estadunidense.
O filme perturba também quando retrocede a 1955, à Conferência de Bandung, na Indonésia, primeira reunião planetária do mundo não-branco, com a presença de líderes africanos, árabes, de Egito, Índia, China… A emergência dos “não-alinhados” provoca um “terremoto político”, ilustrado no filme pelas bochechas infladas de Dizzy Gillespie ao trompete. Tudo se parece demais com o tempo atual, com a cruzada de Trump contra a China, a articulação não-branca dos BRICs, a prisão de Lula, a deposição de Dilma… Trilha Sonora para um Golpe de Estado exibe várias chaves para elucidar não só aquele desferido no Congo, mas talvez todo e qualquer golpe de Estado. Tira véus colocados maliciosamente sobre o passado, mas também sobre o presente. A voz que narra a história sangrenta do Congo ainda é belga-holandesa-francesa, e os Estados Unidos da África ainda não existem.
(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)