Pense no México e prepare sua mente para passear por caveiras coloridas que celebram a morte e se burlam dela, por pimentas, tortillas e bebidas destiladas consumidas aos montes e até por uma mistura de nacionalismo ancorado no passado asteca com certa subserviência à vizinhança estadounidense. Se o leitor for uma pessoa em dia com as notícias, o passeio pode terminar em manchetes sobre a violência do narcotráfico, em filmes celebrados em mais de um festival de cinema e talvez em novas biografias que celebram “velhos” nomes associados ao país, de Frida Kahlo a Octavio Paz.
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Os mariachis são um dos patrimônios culturais mais conhecidos do México. Livro propõe descoberta de novos aspectos do país
Tudo isso, apesar de verídico, está longe de dar conta de toda a realidade mexicana.
Em tempos de informação abundante, em que as fontes 100% confiáveis não são as mesmas de antes (ou simplesmente deixaram de existir), não basta recorrer aos guias de viagem, às enciclopédias e muito menos à imprensa para entender a realidade de um país. Certos artigos, blogs e até alguns documentários ajudam, mas nada se compara a um bom livro na hora de fazer uma imersão na cultura alheia. A ficção é um caminho mais longo, seguramente de vastas recompensas, enquanto a não-ficção pode oferecer uma trajetória muitas vezes breve e ainda assim riquíssima rumo ao desconhecido.
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Viva México, de Alexandra Lucas Coelho, editado pela Tinta da China em 2010, é um ótimo exemplo de como é possível viajar ao México antes mesmo de colocar os pés em solo mexicano. O livro, lançado no Brasil este ano, faz um passeio pelas principais cidades do país e também por seus temas, debates e aspectos culturais que maior curiosidade despertam em um não-mexicano, sem, no entanto, limitar-se a inchar os clichês, sublinhar o que os jornais já se cansaram de dizer ou reproduzir visões meramente pessoais.
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Alexandra Coelho é uma jornalista de Portugal que foi correspondente internacional de vários veículos portugueses (jornais, revistas e rádio) no Oriente Médio e na Ásia Central.
Viajou bastante pelo mundo e percebeu que a literatura vai a lugares que a reportagem não alcança, por isso escreveu e lançou outros três relatos literários de viagem – o último deles se chama Vai, Brasil e foi lançado pela mesma editora. A autora vive atualmente no Rio de Janeiro e ainda atua como correspondente.
Seu livro sobre o México usa recursos bastante jornalísticos — as entrevistas, principalmente, alguns dados estatísticos e um rastro preciso do tempo — para levar o leitor por um percurso pessoal, que ganha relevância muito além das impressões da autora.
É uma mistura bem-sucedida e finamente escrita de fatos e boatos, na que a sensação de intimidade é muito mais potente que o frio distanciamento dos textos de jornal. Indo além da sensação de estranheza que o leitor brasileiro pode ter com o português de Portugal (para não ir longe, Lênin e Stálin viram Lenine e Estaline), contém revelações e opiniões, tal qual pede a realidade, numa roupagem de ficção que revela muito mais do que oculta.
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De que outra maneira entender organicamente, sem estudos aprofundados nem rodeios, que o culto mexicano da morte, com caveiras por toda parte, é uma construção recente? “Qual é a ideia de que todos os mexicanos gostam e que é vendida aos estrangeiros? A de que o mexicano troça da morte; o mexicano vive com as caveiras, o mexicano faz amor com a morte. Esse discurso também serviu para criar uma identidade nacional. Em finais do século XIX, começo do século XX, vemos na iconografia estas caveiras que são muito divertidas, e que formam todo um caráter. E já no México pós-revolucionário, artistas como Fernández Ledesma e Diego Rivera trataram de generalizar esta ideia de que o mexicano não tem medo da morte. Então começaram a ver-se caveiras nas escolas. E agora, em novembro, as crianças têm de desenhar caveiras, fazer poemas divertidos à morte, nas padarias há caveiras por todo o lado. É uma visão muito agradável da morte, digamos”, explica o antropólogo Leonardo López Luján em sua conversa com a autora.
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E esse é apenas um exemplo. Em outras passagens, o mito de Diego e Frida dá lugar a aspectos da vida do casal de artistas que só um familiar como o neto de Rivera, Diego López, poderia colocar com propriedade. E o bairro onde viveram os dois, Coyoacán, revela-se em suas várias livrarias e em comentários do escritor Juan Villoro, entrevistado de uma não-entrevista que desenha para o leitor os traços de dor que marcam hoje a intelectualidade do México.
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Há uma série de comentários sobre uma realidade de extrema violência no México atualmente, que talvez, na América Latina, só a Colômbia tenha conhecido nos seus piores anos de guerra entre cartéis de narcos. Que Alexandra Coelho trata de transmitir sem o escândalo da mídia, ainda que com o olhar estupefato de uma testemunha dos horrores de Ciudad Juárez, a cidade mais violenta do mundo hoje, que ela visitou e onde procurou pessoas reais e não meras vítimas para compor sua história. Vale a passagem.
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