Lançado neste mês de setembro, o livro Avalanche – A Revolução do Streaming (2010-2020): 51 Nomes para Conhecer a Novíssima Música Brasileira (Numa Editora, sob patrocínio da Natura) é o primeiro estudo aprofundado sobre o vagalhão que tem varrido a indústria musical mundial e brasileira desde o ocaso do modelo de gravadoras multinacionais até o atual império das plataformas digitais transnacionais. O autor, Marcelo Monteiro, é publicitário e jornalista e ancora a extensa e necessária pesquisa no trabalho que desenvolveu no blog Amplificador, no site do jornal O Globo, nos anos 2010. Como ponto de partida, portanto, é preciso compreender que seu ângulo de visão é comprometido com valores disseminados pelas Organizações Globo, pelas antigas gravadoras multinacionais (hoje reduzidas a Universal, Sony e Warner e tratadas como as “big threes“) e pelas plataformas de streaming. Entre essas últimas, brilha o Spotify, que, como o autor explica, é o ponto de interseção entre o mundo antigo, das gravadoras, e o paraíso distópico das big techs que hoje controlam o planeta a ferro e fogo.
É dessa posição que o livro comemora a retomada dos lucros pelas gravadoras, a partir de 2018, após uma década e meia amargando prejuízos, na esteira do rombo causado, segundo elas próprias, por pirataria física e virtual, mp3, downloads etc. Foi com a consolidação das plataformas de streaming, que fazem a música jorrar como água da torneira ou eletricidade da tomada, que os lucros não apenas foram retomados, como se tornaram faraônicos. “No passado, queríamos ‘matar’ a internet”, afirmava em 2016 um executivo da Sony Brasil, Paulo Junqueiro, em declaração reproduzida por Avalanche. “Agora percebemos que a internet apenas mudou a forma como se consome música. Hoje, geramos muita receita na web”, Junqueiro traça o resumo da ópera.
“Sai a era da propriedade e entra a do compartilhamento”, escreve Monteiro, dando a entender que a virtualização e o streaming desfizeram o nó histórico em que “um grupo muito pequeno de empresas, entre gravadoras, estações de rádio e grande mídia de forma geral” controlava toda a música que circulava no mundo. Esse tom triunfalista camufla o fato de que a propriedade segue preservada e quebra recordes de concentração ano após ano neste admirável mundo novo de desmaterialização desgovernada. Embora não diga isso com essas palavras, o próprio livro reúne todos os números necessários para compreender isso.
Avalanche se empenha em pintar um retrato triunfante do atual estado de coisas, e nesse afã traz informações fundamentais em meio a uma quantidade impressionante de dados e estatísticas. Destaca, por exemplo, que os serviços de streaming (Spotify, Deezer, Apple Music, YouTube Music, Tidal, Qobuz etc.) repassam em média 70% a 72,5% de suas receitas para as big threes e que essas, em 2020, abocanharam 65,5% dos lucros arrecadados com música gravada no planeta Terra. Ou seja, é ilusória a ideia de que o poderio das velhas gravadoras ruiu e se extinguiu diante da internet. “O próprio nome ‘gravadora’ se tornou obsoleto porque gravar hoje é o que nós menos fazemos”, afirma a certa altura, numa declaração de 2017, Marcelo Soares, então executivo da Som Livre (àquela altura ainda pertencente à Globo).
O livro cita uma declaração emitida em 2020 pela multinacional BMG, antes uma das “bigs”, hoje fagocitada pela Sony (como a Som Livre também foi), num raro momento de autocrítica da indústria pesada: “Não achamos justificável que, em um mundo onde as gravadoras não têm mais custos de impressão e distribuição, elas sigam mantendo maior parte dos lucros do crescimento do streaming. O mundo mudou. Chegou a hora de as gravadoras também mudarem”. Até 2024, as gravadoras ainda não parecem ter feito muito esforço para mudar, ao menos nesse aspecto.
Monteiro cita estimativas de que o conjunto de artistas e compositores fique com uma média de 19% da renda obtida pelas gravadoras junto às plataformas de streaming. Em 2016, segundo o livro, 87% de todos os fonogramas disponíveis no Spotify eram de propriedade ou licenciadas por Universal, Sony e Warner, ou pelo Merlin (o maior representante global de artistas ditos independentes). Estima também, com dados de 2021, que cerca de 3,9 milhões de artistas ou podcasters disputam a atenção do público terráqueo no Spotify.
Líder desse mercado trilhardário, o Spotify foi lançado em 2008 pelos suecos Daniel Ekk e Martin Loretzon e “nasceu da parceria feita com as majors para distribuição de catálogos e lançamentos na nuvem. Portanto, tem ligação direta e umbilical com as grandes gravadoras”, como admite Marcelo Monteiro após cem páginas. Ele lembra que a big tech Tencent, que pilota uma espécie de Spotify chinês, cogita comprar a Universal, líder entre as big threes, o que por si só dá alguma dimensão do tamanho da ameba big tech que hoje aglutina e liquidifica empresas, catálogos artísticos e pessoas. Em números de 2020, o YouTube liderava o bonde, com 2 bilhões de ouvintes/espectadores anuais, contra 800 milhões da Tencent e da (também chinesa) Netease e 345 milhões do Spotify. Visto mais de perto, nem parece tão sólido o latifúndio mantido pelas velhas gravadoras no novo loteamento de fazendas-modelo virtuais.
Na ponta das big techs, a desigualdade na distribuição de lucros também é gritante, de acordo com os dados levantados por Avalanche: em 2020, o Google pagava aos detentores dos direitos autorais 0,00074 dólares por cada música ouvida no YouTube. As percentagens das plataformas de áudio eram levemente “melhores”: US$ 0,0032 do Spotify, US$ 0,00436 da Deezer, US$ 0,0055 do YouTube Music, US$ 0,0056 da Apple Music, US$ 0,0098 da Tidal. Segundo anota, uma faixa precisa ser reproduzida mais de 790 mil vezes para que o artista receba o equivalente a um salário mínimo.
As distorções se reproduzem mesmo no elo mais fraco da cadeia, o dos criadores musicais, como evidenciam os números duros ocultos por trás de qualquer discurso triunfalista: em 2016, 2,5% dos criadores embolsaram nada menos que 90% do butim obtido pelas plataformas, e os 43 mil artistas mais bem colocados nas paradas abocanham 90% de todas as audições (e dos lucros, pode-se presumir). É de imaginar o horizonte à vista para criadores novos e/ou independentes, uma vez que o compositor Ivan Lins, no chamado mainstream desde 1969, se queixou, meses atrás, de que sua música precisa tocar 20 mil vezes para faturar R$ 1 por mês. Delfim Netto está morto, mas o velho lapso entre o crescimento e a repartição do bolo mostra-se mais vivo do que nunca e é tratado por Avalanche como “tarefa não resolvida” das gravadoras e big techs. Na prática, quanto mais o bolo cresce, menos repartido ele é.
Em sua segunda metade, Avalanche se dedica a celebrar, com razão, o que chama de “midstream”, um mercado intermediário formado por artistas ditos independentes que em 2019 emplacaram, juntos, 53% dos hits do top 200 no Spotify. Traça perfis de 51 artistas desse estrato, entre eles Céu, BaianaSystem, Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Anelis Assumpção, Bixiga 70, Criolo, Metá Metá, Filipe Ret, Silva, Boogarins, Emicida, Ava Rocha, Projota, Liniker, Baco Exu do Blues, Djonga, Letrux, Ana Frango Elétrico, etc. Monteiro mede o êxito desses artistas pelo número de visitantes mensais que acumulam no Spotify, e define como “midstream” aqueles que possuem entre 5 mil e 4 milhões de ouvintes mensais (para se ter uma ideia, Anitta passa dos 32 milhões, e o líder mundial atual, The Weeknd, tem mais de 109 milhões de ouvintes).
Entre os vários artistas ouvidos por Monteiro para o livro, apenas um menciona um dos males históricos da indústria da música, que na era das big techs assume formas novas sem nunca deixar de existir (o que seriam, por exemplo, os robôs que trabalham dia e noite para inflar os números de determinados artistas?). É o paulistano Kiko Dinucci (com 56 mil ouvintes mensais) quem dá nome à boiada: “Acho as plataformas de streaming uma extensão do jabaculê das TVs e rádios. Há dois meses, toda vez que entro num serviço de streaming aparece propaganda do Jay-Z, isso para mim é a releitura do jabá”.
Avalanche compra e repassa uma visão romantizada sobre a democratização da produção e do acesso à música nas últimas décadas. Bruno Kayapy, da banda mato-grossense Macaco Bong, descreve o modo de vida dos “midstream”: “Na geração 2000 surge toda essa galera que é artista, mas também organiza festivais, pensa lugar para show, tem estúdio, articula coisas no país todo e no exterior, tem o selo e a gravadora própria, blogs, podcasts. É ‘artista pedreiro’, pau para toda obra”. Engrenagem importante desse processo democratizador nos primeiros anos 2000, o coletivo Fora do Eixo não é citado pelo autor, e só aparece na voz do músico LG Lopes, das bandas mineiras Graveola e Rosa Neon, como “um vetor importante nessa fase”, que “semeou uma visão mais ampla de Brasil, criou o interesse por novos circuitos”. Não são poucos os nomes e fenômenos apagados do debate proposto pelo livro.
Enquanto a carioca Letrux dá à coisa o nome poético de “artista-polvo”, o potiguar Anderson Foca, da Camarones Orquestra Guitarrística, põe o bode no meio da sala: “Toda banda tem um pouco hoje de empreendedora. É o que une esses trabalhos todos”. Os extremos do neoliberalismo protofascista são escamoteados por termos-fetiche como “monetizar”, “empreendedorismo” e que tais, à mesma medida que, no texto de Marcelo Monteiro, tudo é “avassalador”, tudo é “icônico” (esse pavoroso anglicismo), tudo é “sofisticado”. Pelas leis do “empreendedorismo” (e das “reformas” trabalhistas), acreditam-se autônomos e independentes entregadores de iFood, motoristas de Uber, jornalistas, artistas “midstream” que ganham US$ 0,0032 por música tocada no Spotify e, na ponta da corda, o público ouvinte.
Indiferente aos elos mais “underground” da cadeia, Monteiro trata artistas que tentam firmar identidades dissidentes em termos como “lacração”, “rótulo panfletário” etc. – para ele, por exemplo, a cantora e compositora carioca Ava Rocha faz “poesia e política (não a panfletária, lacradora)”. A corrente musical abertamente não-heteronormativa, que cresce e aparece incessantemente na música brasileira dos anos 2010 e 2020, nem merece destaque no livro – salvo pela exceção de Liniker (4 milhões de ouvintes por mês no Spotify). De modo geral, Avalanche é um livro essencial para compreender o tempo presente da música e da comunicação no Brasil, ainda que use o “midstream” para na realidade louvar o “mainstream” e apesar de reproduzir acriticamente cacoetes, estereótipos e preconceitos que a indústria velha desde sempre construiu.