O retorno ao Benin de obras de arte saqueadas no período colonial é o foco do filme Dahomey (2024), da diretora franco-senegalesa Mati Diop. Vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim, o documentário é exibido no Brasil na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. No longa, Diop acompanha a viagem de 26 peças da França ao Benin, começando desde o momento de preparo e empacotamento das obras até sua chegada e contato com o público. Este segundo momento, no país de origem, é alternado com cenas de jovens universitários que, em uma assembleia, discutem o processo de repatriação do acervo ancestral e a permanência de outras 7 mil obras beninenses espalhadas pela Europa.
Ao longo do filme, uma voz grave sobreposta a um fundo preto personifica uma das peças recuperadas. Ainda na França, ela nos conta sobre si e sobre seu retorno e desabafa: “Me chamam de 26. Não sabem o meu nome?”. Ao chegar ao Benin, paralelamente à abertura da caixa de transporte na qual a obra está guardada, somos apresentados ao seu nome, sua origem e estado de conservação. Tratados na França como “objeto 1”, “objeto 2”, e assim por diante até o “objeto 26”, ao serem repatriados, passam a ser referenciados como “tesouros reais” e nomeados: estátua do Rei Glèlè, estátua do rei Béhanzin, trono iorubá, trono do rei Ghèzo. À diante no filme, uma das estudantes na assembleia universitária revela: “Me disseram que nos roubaram muitas coisas. Achava que eram coisas e não tesouros”.
O contraste entre os dois países é reforçado não só pela representação do espaço simbólico, como também do físico. Enquanto as cenas gravadas na Europa reforçam a atmosfera de um local silencioso, tenso, estéril – o museu parece quase um hospital –, opta-se por apresentar o Benin como um espaço alegre, musical e festivo. As primeiras imagens no país mostram pessoas dançando e cantando nas ruas, celebrando o “fato histórico” (como é nominado em um jornal beninense), e seguem para acompanhar a chegada das caixas de transporte com as obras ao palácio (Palais de la Marina), recebidas literalmente com tapete vermelho.
O palácio é cuidadosamente preparado. Vemos as plantas serem meticulosamente regadas, as paredes pintadas e o local arrumado, como que para receber hóspedes ilustres que retornam de longe. No grande dia, reis, famílias reais, membros do governo, deputados e outros atores políticos compareceram à cerimônia de acolhida das obras inéditas, saqueadas há aproximadamente 130 anos.
O filme mostra também a relação do grande público com as peças. Um plano alongado se detém em um menininho que olha fixamente para um dos tesouros – a metonímia da potência de uma geração que já irá crescer conhecendo sua história, seu patrimônio cultural e se vendo representada nos museus.
Essa relação da população beninense com as obras parece interessar mais a Mati Diop do que as obras em si. Quase não há planos nos quais os tesouros são filmados por inteiro ou de frente. Paralelamente, o longa-metragem não se restringe a uma exposição visual dos objetos, mas a uma compreensão geral de seu contexto de criação, usos e significados no passado e recepção no presente. Dessa forma, a diretora escapa da criação de um filme que reproduzisse em si mesmo os modelos tradicionais de exposição museológica, discutidos e rechaçados aqui não somente pelo discurso, mas pela própria forma fílmica.
Enquanto os vários fotógrafos registram as obras recém-reveladas, Diop foca nos fotógrafos aglomerados e afoitos pela imagem histórica. O filme segue recheado de instantes de observação calma e atenta das pessoas vendo pela primeira vez os tesouros da realeza ancestral. Enquanto elas olham, nós as olhamos ora através dos vidros, ora espelhadas neles. Assim, Dahomey defende a ideia de que o tesouro só faz sentido no contato com as pessoas, precisamente com o seu próprio povo.
A voz de uma das obras – evidentemente um recurso ficcional em meio a um documentário e, em última instância, a voz da própria diretora – retorna ao final do longa não mais sobre um fundo preto, mas sobreposta a imagens das pessoas pelas ruas. Ela afirma: “Eu nunca parti. Eu estou aqui. Eu me vejo refletido em vocês”. O saque colonial levou os objetos por mais de um século, mas seus signos não podem ser transferidos. “Devolvamos-lhes a vida que lhes foi roubada”, defende um dos universitários. No encontro vivo com seu povo, sua cultura e memória, as obras renascem e se transformam em tesouros.
*Os Tesouros do Benin podem ser vistos e conhecidos no site Les trésors royaux du Bénin.
(*) Nayla Guerra é graduada em Audiovisual pela ECA-USP, produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).