Outro dia, num estudo que andei fazendo, eu observava que nos hinos de guerra ou nacionais falava-se muito na derrota, na infâmia dos inimigos, mas muito raramente se evocava sequer a “nossa” derrota, a nossa infâmia. E expliquei esse tabu, por aquele princípio elementar de magia que manda nunca dizer pelos seus próprios nomes as forças maléficas como o diabo, a doença, a cachaça, mas substituí-los por eufemismos e demais processos de permuta linguística.
A cachaça é socialmente considerada um mal, embora ela tenha seus monumentos, poéticos e outros. Aqui em São Paulo mesmo, ela mereceu as honras apenas populares de nomear o Beco da Cachaça, que era no princípio da rua da Quitanda atual. Nome que os interesses teóricos da municipalidade nunca homologaram. É uma pena porque assim como aquele cachoeirense velho, de Afonso J. Carvalho, confessou há cem anos atrás os únicos divertimentos de Santo Antonio da Cachoeira eram “reza, pinga e bordoada em riba”, corre um dito pelo país todo confirmando que só tem duas “nações” que não bebem, sino e ovo. Sino porque tem boca pra baixo e ovo porque está cheio. Aliás, os ditos e provérbios tirados da cachaça são numerosos. “Com cana até o frio é quente”, diz o outro para se justificar, e o parceiro concorda na sentença. “Quem tem seu vintém, bebe logo”. Pra mostrar repulsa por alguma coisa, dizem: “Não vem não, cachaça, que eu bebi leite!”, ao que o outro retruca pra justificar uma preferência explicando que é “a minha cachaça”. Mulher e álcool, lá no pensar do povo, irmãs-gêmeas da perdição, também vivem juntos no provérbio mais generalizado de todos, “Mulher e cachaça em toda a parte se acha”, que tem muitas variantes regionais.
Mas o que está me interessando, agora, é estudar pela rama os eufemismos da cachaça. Ela criou quase um dicionário, é assombroso, talvez tão rico quanto o Diabo. Vários dicionários já se preocuparam com isso, como Alberto Bessa, em Portugal, ente nós Rodolfo Garcia e ainda recentemente José Calasans pela “Revista de Aracaju”. Mas quem nos oferece a mais assustadora coleção é Firmino Costa, eu creio, no seu “Vocabulário Analógico”. Eu também, ao léu desadorado das leituras, andei guardando vozes e frases-feitas. Não quero dar todas, mas apenas aquelas que aumentam a coleção extraordinária de Firmino Costa. E se repito algumas que ele coletou, será por qualquer necessidade especial de comentário.
O Diabo e a cachaça
Porque no caso dos eufemismos da cachaça, se o número é vasto, em geral eles seguem certas ordens fáceis de pensamento, que é o que me interessa verificar. Não fiz nenhum estudo particular disso, mas pelo que me recordo, os nomes eufemísticos do Diabo são mais diretamente os nomes de batismo, de criação mais livres, mais inventadas. Está claro que esses nomes de invenção anti-expositiva também existem para a cachaça, mas em menor número que os do Diabo. Assim, por exemplo, entre os não registrados ainda por Firmino Costa, a “abrideira” que Bates consigna “abre”, além de falar de uma “aguardente de beijú”. Jorfe Hurley enumera pro norte, entre os substitutos atuais do cauim, na liturgia do Jurupari, a jucarina, o arapari, a santa-maria. E lembro ainda uca, aço, canguara, marafo, siúba (Ceará), rama e o engraçado “aquiqui”, dito por Renato Mendonça em “O português no Brasil”, que eu creio se dirá melhor “acuícui”. Os negros garimpeiros da zona de Diamantina, chamam a cachaça de orongange e de caxaramba, nos conta Aires da Mata Machado Filho. E a geribita do Brasil todo, já consignada em Firmino Costa, portuguesa também e que Alfredo de Sarmento diz ser palavra ginga, também se diz jurubita, piripita e geriba, entre nós. E os portugueses ainda têm o geribato para indicar o vinho ordinário. Não sei mais.
São vários os processos de substituir o álcool por uma circunstância que derive dele. A cor, por exemplo, que nos deu a “branca”, a “branquinha”, mais a “azulzinha”, a azuladinha” e o “roxoforte”. A azulzinha é do Nordeste, mas a azuladinha é mais particularmente alagoana, me diz Jorge de Lima. A branca nacional, deu ainda, não consignadas por Firmino Costa, a “moça-branca”, a “dona-branca” e a “maria-branca”.
Outro processo muito generalizado é a substituição da palavra-tabu por outro líquido ou pela quantidade do líquido. Vem disso, aliás, uma das designações mais generalizadas, a pinga, que vem do pingo, pinga, pequena quantidade, que no feminino peça cachaça e no masculino, “o pinga”, é o cachaceiro. E ainda se diz “pinga de cabeça”, para a primeira que sai do alambique, mais forte e desejada. Também “codório”, inicialmente pequena quantidade da mesma forma que pinga, acabou designando o todo, tanto em Portugal como no Brasil. Do mesmo gênero é a “molhadura”, também tanto de lá como de cá, usada especialmente para a terminações das construções. Wetherell conta que na Bahia em 1857, qualquer empregado (oficial de alfaiate, etc.) que terminasse algum serviço, pedia a molhadura.
Terebentina, ólio e água
Da substituição que guarda só a imagem do líquido, comparecem o “elixir”, consignada por Silvino Lopes, em “Política é isso mesmo …” a “terebentina” ou “tiribintina” como ainda repetia Almirante pela “Leitura” em agosto do ano passado, e também “ólio”, que ouvi por duas vezes a um mulato operário de Mogi das Cruzes. E não esqueçamos a água, donde veio a aguardente, que ainda no século XVII pluralizavam em “agoas ardentez”, como vem num documento paulista de 1699. E com o auxílio dela, o bêbado evadiu-se pra “pau-d’água”, “carga-d’água” e “caixa-d’água”, e a embriaguez para “estar n’água”, e “cortar água” e “fazer água”.
Mais próxima da verdade, porém, fica a “garapa”, que fermentada toma o nome de “garapa doida”, e sozinha, até pelo menos nos fins do século passado, por indicação do Brasil-Teatro designava nos botequins mais ínfimos do Rio de Janeiro uma bebida fortemente alcoólica, feita com caldo de cana, mel de abelha e raspa de mandioca.
Outro processo ainda, e dos mais usados, é a substituição do elixir-tabu pelas suas fontes de origem, tanto geográficas como vegetais. Ninguém ignora mais a “monjopina”, por exemplo, que está entre as melhores caninhas pernambucanas, oriundas do engenho de Monjope, embora entre nós se conheça menos a supupara, também famanada no Ceará, no engenho do mesmo nome. Essas, geográficas, Firmino Costa se esqueceu de nomear, mas dos eufemismos nascidos do vegetal, não se esqueceu da caninha e da cana. Mas não registrou nem a “cana-capim” que Aluizio Azevedo guardou no “Mulato”, nem a “caiana”. Esta vem de uns versos de moda caipira, expostos por Amadeu Amaral nas “Tradições populares” que andou publicando no “Estado de S. Paulo”.
“O povinho deste bairro
Não tem mais educação:
Entra tudo na caiana
Fica tudo valentão“
Chumberga, bebedeira, desmancha-samba
Desse processo de substituir a “cachaça” pelo material de que é feita ou lhe ajuntem, Firmino Costa esqueceu grande número. Esqueceu, por exemplo, a “caninha de manga” mineira, a “imbiriba” nordestina, a laranjinha, a juçara. Se desinteressou também das misturas tão variadas, não deu o “grogue” popularizado no Nordeste, e pelo Brasil todo na expressão “estar grogue”. Deu a chumberga, bebedeira, vinda do bêbado histórico Schoemberg, mas não também a “silveira-da-mota”, que era uma mistura de caninha e bitter, posta em moda pelo senador. Esqueceu a “meladinha”, que também se diz “cachimbo”; esqueceu a “temperada “, a “fervida”, em que entrava gengibre, e até pimenta do reino, às vezes. Esqueceu também a “queimada”, café com pinga, que em Portugal se diz “pintada”, e entre nós ainda “quentão” que vira “requentão” quando vai ao fogo segunda vez e fortifica mais. E esqueceu imperdoavelmente a “batida paulista”, que não sei porque chamam assim por toda parte, em Campos, num boteco bem digno, se apelidava como chamariz de “famosa batida paulista”. Mas “paulista” é palavra que serve mesmo pra coisas boas e pra coisas péssimas nesse país, a principiar pelos seus homens, que vão do melhor ao pior. Serve pra designar cidadinhas, em Pernambuco e Paraíba, e mais alimentarmente na Bahia, para um certo pedaço de carne-de-vaca. A batida paulista é realmente a melhor das misturas de cachaça. Quando legítima, isto é, com limão, água e açúcar apenas. Eruditamente se faz acrescentando clara de ovo batido e um pouco de gim. As demais batidas com maracujá e outras perfumarias, se alistam no exército do Pará.
Enfim, outro processo de criar eufemismo, é pelo efeito de tal. Muitos, por exemplo, pedem uma “tiliscada”, ou “contra”, ou “chamada”, ou “bebida” da “boa”. Porém ela é ruim mesmo, o que fica em numerosos nomes, como “desmancha-samba” (F. C. dá apenas “samba”), corta-baínha, ou “mamãe-sacode”.
E chegam, não sei mais. Mas chamo a atenção ainda para o processo contumaz de insultar os irracionais, ligando-os à bebedeira, a principiar pelo “mata-bicho”. É verdade que também reconhecemos que a cachaça é “água que passarinho não bebe”, ou “gato não bebe”, mas se destes Firmino Costa se esqueceu, ficamos assombrados, lhe percorrendo a coleção da bicharada que entrou nos eufemismos. A que posso acrescentar apenas “o salgar o galo”, que é o mesmo que “acender a lanterna” ou “morder a batata” ou “alertar as ideias” ou “mudar a camisa”, que não vêm da coleção dele; e ter “bafo de urso”, ou “farejar o tigre”, ou “estar com a cachorra”, que é o mesmo que “pregueado”, “triscado”, “elegante”, “cuspindo bala”, “zuru”, “trancudo”, “estar na ponta da nuvem”, “estar de fogo aceso”, “estar purgado”, designando o “pingareiro”, com eufemismos novos que Firmino Costa não quis dar ao… “pai-da-cachaça”.
“Eufemismos da cachaça”, transcrito da revista “Hoje”, ano VII, abril de 1944, n. 75. Os intertítulos são da edição de Opera Mundi. O livro “Cachaça, História e Literatura” (Cachaça, história e literatura, de Joana Monteleone e Maurício Ayer (orgs.) (alamedaeditorial.com.br) foi organizado por Maurício Ayer e Joana Montelene.