Em agosto de 1979, uma greve de fome iniciada no presídio do Frei Caneca, no Rio de Janeiro, se espalhou pelo país, reivindicando a ampliação da Lei de Anistia no Brasil que, inicialmente, não pretendia contemplar presos políticos que haviam cometido homicídios. Para registrar este momento e fortalecer a greve, os presos idealizaram e realizaram o curta Água, açúcar e sal de forma clandestina. Além da filmagem dos 32 dias da greve, a obra conta com raras imagens em movimento que documentam o cotidiano dos presos, a partir do seu próprio olhar, no confinamento da ditadura civil-militar. O filme ficou esquecido durante décadas e está agora sendo recuperado pelo grupo Práticas do Contra-Arquivo, vinculado à PUC-RJ e à FAPERJ.
Paulo Jabur, que fez as filmagens de dentro da cadeia, cedeu a película em 16mm ao grupo de pesquisa, que digitalizou e publicou a obra em seu canal de Youtube, disponibilizando-a pela primeira vez. Além da recuperação do curta em si, as pesquisadoras Patrícia Machado e Marianna Costa realizaram também uma entrevista com Jabur, material que acabou se tornando um novo filme. Trata-se de um relato extremamente interessante sobre os modos clandestinos de registro dentro da prisão, sobrepostos a trechos de Água, açúcar e sal, filmagens adicionais gravadas em Super-8 e fotografias que ilustram o cotidiano dos presos e suas estratégias de resistência.
Jabur conta na entrevista que tinham como desejo documentar a vida dentro da cadeia, e primeiramente conseguiram aprovar a entrada de uma câmera fotográfica, obtida por uma doação da Anistia Internacional. Naturalmente havia, contudo, algumas interdições. Não era permitido, por exemplo, fotografar cadeados ou guaritas, pois acreditava-se que isso poderia facilitar fugas. Em uma das fotos dos presos, o cadeado é, então, removido pelos guardas, riscando a emulsão do negativo. Em outra, o objeto é recortado do retrato.
Em seguida, conseguiram colocar uma câmera de vídeo dentro da prisão, sob justificativa de gravar o aniversário do filho de um dos presos. Os filmes virgens entravam legalmente, mas a saída do material captado era mais complexa: uma parte saía legalmente, para justificar a entrada dos filmes virgens, e outra parte de forma escondida. As fotos da greve de fome, por exemplo, saíram no bolso de deputados que iam visitar os presos e não eram revistados. Já os filmes em 16mm saíram dentro de um abajur. Um dos presos era marceneiro e construiu o objeto com o pé em formato de círculo, similar a uma lata de filmes, onde eram colocados os negativos com imagens do que era proibido.
A recuperação tanto de Água, açúcar e sal como das memórias de Paulo Jabur é um passo importante na compreensão das relações entre cinema e ditadura, sobretudo da forma como os filmes foram utilizados em certos momentos como instrumento de resistência e contra-ataque. Os materiais audiovisuais, assim como as fotografias, guardadas há mais de 40 anos em arquivos pessoais, vêm sendo agora divulgados publicamente pelo grupo Práticas de Contra-Arquivo, tanto pela internet, como na exposição “32 dias: imagens da prisão”, realizada entre setembro e outubro deste ano no Museu Universitário Solar Grandjean de Montigny, no Rio de Janeiro.
(*) Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, Nayla Guerra é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).