Pierre Vidal-Naquet afirma que pretendeu, com seu livro O mundo de Homero, estimular o interesse pela leitura dos poemas épicos gregos – no original ou em suas traduções.
Neste último aspecto, o leitor brasileiro não pode se queixar. Ilíada e Odisseia, poemas que inspiraram fortemente escritores como Euclides da Cunha, de Os sertões, e João Ubaldo Ribeiro, de Viva o povo brasileiro, têm versões em português feitas no Brasil desde o século 19, preparadas por Manuel Odorico Mendes (1799-1864).
Em 1956, o literato Silveira Bueno escreveria, cheio de orgulho pátrio, num prefácio ao primeiro poema (Acena Editora): “Na América do Sul, está o Brasil em primeira plana, levando nisto a palma ao próprio Portugal, apresentando, em seu lídimo vernáculo, não só a Íliada, mas também a Odisseia, completadas ambas pela Eneida de Virgílio. Ao ilustre maranhense Manuel Cardoso (sic) Mendes ficamos a dever esta homenagem, esta gratidão, porque da sua pena saíram essas tradução que os anos apenas fazem avultar e agigantar.”
Embora a Ilíada de Odorico Mendes, traduzida em dez sílabas poéticas, só possa ser encontrada nos sebos (uma versão crítica de sua Odisseia foi lançada pela Edusp no ano 2000), há no mercado mais três versões do poema. A mais recente, de Haroldo de Campos (Mandarim), em 12 sílabas e bilíngue, está no primeiro volume. O segundo deve sair ainda este ano.
Carlos Alberto Nunes (Ediouro) preferiu fazê-lo em 16 sílabas. Também há uma tradução, em prosa, de Fernando C. de Araújo Gomes (Ediouro), para quem não gosta de poesia, mas quer ler Homero.
Abaixo, o leitor pode fazer uma breve comparação das quatro traduções da Ilíada. São quatro versões do mesmo trecho, retiradas do início do canto 4 das traduções. Neste momento, a paz entre troianos e gregos está próxima, mas os deuses começam a discutir se ela deve ser estabelecida ou se, ao contrário, é preciso estimular a guerra.

Haroldo de Campos
Em torno a Zeus, os deuses, no entanto, no paço
assoalhado de ouro, vão deliberando,
assentados. Augusta, Hebe, qual vinho, verte
néctar. Mutuando a copa de ouro, os numes brindam.
E olham para Troia. Zeus, fala ferina, oblíqua,
se põe a provocar a irritadiça Hera:
“Duas deusas, em verdade, a Menelau respaldam:
Hera, Argiana, e mais Palas, a deusa Alalcomênea.
Estas sentam-se à parte e contentam-se apenas
com ver. Mas Afrodite, toda-sorridente,
seu dileto secunda de perto e o defende
da Moira. Agora mesmo salvou-o da morte.
De Menelau, dileto-de-Ares, é a vitória.
Cabe a nós decidir que curso dar às coisas.
De novo a guerra cruel incitar, e a discórdia
atroz, ou, sobre os dois lados, fazer que a paz
impere? Se aprouver a todos esta última
saída, a pólis priâmea seguirá, povoada,
e Menelau terá de volta Helena, Argiana”
Carlos Alberto Nunes
Junto de Zeus, entretanto, se achavam reunidos os deuses,
no soalho de ouro sentados. De néctar enchia Hebe augusta
os copos de ouro maciço, que todos recebem, trocando
brindes corteses, enquanto a cidade de Troia admiravam.
A Hera, de súbito, o filho potente de Crono provoca,
com frase irônica, que pronunciou sem para ela virar-se:
“Ao louro filho de Atreu, Menelau, duas deusas amparam,
Hera, que em Argos cultuam, e Atena, a auxiliar poderosa.
Ambas, no entanto, a departe fizeram, prazer encontrando
só no espetác’lo da luta. A Alexandre a risonha Afrodite
não abandona jamais, protegendo-o da lívida Morte,
tal como o fez nesse instante, ao julgar-se ele próprio perdido.
Mas é evidente que o herói Menelau alcançou a vitória.
Ora é mister refletir de que modo fazer precisamos:
se novamente devemos a guerra e as contendas funestas
encarniçar, ou se é bem que a amizade entre os povos impere.”
Odorico Mendes
Em consulta com Jove recostados,
Néctar Hebe louça tempera aos deuses
Na régia de áureo solho, e de áureas taças
Mutuam brindes a tentar em Troia.
Eis, com mordaz cotejo, a irmã Satúrnio
Romoca: “A Menelau protegem duas,
Juno Argiva e Minerva Alalcomênea,
Que de olhá-lo tranquilas se comprazem;
De Páris guarda assídua, a mãe dos risos
Da Parca o subtraiu, tem-no em seguro.
Ao bravo Menelau coube a vitória.
Deliberemos se é melhor de novo
Encarniçar a guerra, ou congraçá-los.
A ser a paz jucunda às partes ambas,
Habite-se de Príamo a cidade,
O Atrida reconduza a Grega Helena
Contíguas, gemem comprimindo os lábios
Juno e Minerva, e dano aos Teucros urdem.
Fernando de Araújo
Os deuses, sentados ao lado de Zeus, estavam reunidos em conselho no salão dourado e; entre eles, a majestosa Hebe servia o néctar. Eles o saboreavam em taças de ouro, contemplando a cidade dos troianos. Então, o filho de Cronos resolveu provocar Hera com palavras escarnecedoras, e falou, com malícia zombeteira: – Duas deusas ajudam Menelau: Hera, de Argos, e Ateneia, de Alacomene. Comprazem-se em olhar muito de longe. Afrodite, amiga da alegria, porém, vai procurar aquele que é seu favorito e o protege contra o destino. Agora mesmo ela o salvou, quando pensou que ele iria morrer. No entanto, certamente a vitória pertence a Menelau, querido de Ares. Consideremos como correrão as coisas, se mais uma vez insuflaremos a guerra e o terrível troar da batalha, ou se estabeleceremos a paz entre os dois lados.
Se isso fosse agradável a todos, então a cidade do rei Príamo ainda seria habitada e Menelau levaria de volta a argiva Helena. Assim falou, e Ateneia e Hera murmuraram; estavam sentadas perto uma da outra, planejando tribulações para os troianos.
Texto publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo em 10 de março de 2002.