João Gomes, do piseiro para o universo
Aos 22 anos, João Gomes transpõe preconceitos, regrava Tribalistas, Sandra de Sá e Pepeu Gomes e conquista parceiros na MPB, no trap e no sertanejo
No final de maio, o jovem cantor João Gomes apresentou Do Jeito Que o Povo Gosta, seu oitavo álbum desde que começou a gravar, há quatro anos – e o terceiro apenas neste ano de 2025. Maior expressão solo do gênero conhecido como piseiro ou pisadinha, o músico de 22 anos nasceu em Serrita, município de 19 mil habitantes no sertão de Pernambuco, e tem mantido um ritmo febril de produção desde que se fez perceber e se tornou o artista brasileiro mais ouvido, em 2021, durante o auge da pandemia de covid-19.
João, que coleciona quase 9 milhões de ouvintes mensais no Spotify, tem lançado a média impressionante de 40 músicas por ano, com uma característica que o distingue da maioria de seus pares da música mais que popular brasileira: pouco a pouco, ele tem conquistado admiradores na chamada classe intelectual, em geral hostil ou pelo menos arredia a talentos musicais ultrapopulares vindos dos interiores do Brasil e sem influências detectáveis do eurocentrismo e do pop estadunidense. Um dia antes do lançamento de Do Jeito Que o Povo Gosta, João causou comoção no Instagram com uma interpretação artesanal e delicada de “Velha Infância” (2002), dos Tribalistas, em duo com uma das criadoras do trio e da canção, a carioca Marisa Monte. Em 27 de junho, a cantora matogrossense Vanessa da Mata lançou o álbum Todas Elas e incluiu, entre todas elas, a faixa “Demorou”, híbrido de reggae, MPB e piseiro em dueto com João Gomes. Antes, há dois anos, Vanessa já havia chamado João para um crossover com a hard MPB do cearense Belchior, em releitura da beatlesca “Comentário a Respeito de John” (1979).

Característica muito marcante em sua geração musical, João Gomes é totalmente desprovido de preconceitos de gênero musical.
(Foto: Luci Sallum/PMC)
O jovem artista pernambucano concentra em si grande parte das características da atual produção industrial de música no Brasil. Sua voz grave tem contornos sertanejos e flerta com o mestre imemorial Luiz Gonzaga, também pernambucano, de Exu (“Eu Tenho a Senha”, de 2021, de autoria do próprio João, é excelente porta de entrada para verificar semelhanças e diferenças com Gonzagão). Seu gênero é o piseiro, um modo musical ligado às festas de vaquejada do Nordeste, algo situado entre as festas de peão de boiadeiro do Sudeste, os forrós arrasta-pé do Nordeste, as festas de aparelhagem do tecnobrega paraense, as raves das praias do sul ao norte e assim por diante.
É como se confluíssem numa só pororoca o baião, o xote, o xaxado, a música caipira, o sertanejo, o forró e o sertanejo universitários, o tecnobrega, a música eletrônica de pista… “Hoje Tem” é exemplar da doida fusão de rave com arrasta-pé: “As gatas bebem e descem até o chão/ e viram litro dançando um forrozim/ batendo bota, sobe o poeirão/ vaquejada boa só presta assim/ hoje tem festa de gado/ paredão na roça/ e mulher pra dançar colado”.
Característica muito marcante em sua geração musical, João Gomes é totalmente desprovido de preconceitos de gênero musical. A porosidade à velha MPB é um distintivo particular. João começou declarando seu fascínio (e o de sua mãe) por Vanessa da Mata, que foi imediatamente recíproca e em 2022 cantou com ele num dueto de “Amado” (2007) e “Só Você e Eu” (2019), ambos hits MPB compostos pela própria Vanessa. Ainda em 2022, João gravou “Lembra” com o cearense Fagner; no ano passado, o baiano Gilberto Gil juntou-se ao jovem tributário de Luiz Gonzaga para uma versão bem nordestina de seu hit “Palco” (1979).
O ápice desse crossover em série se deu no ano passado, quando a cantora carioca Mãeana, nora de Gil, lançou o controverso álbum Mãeana Canta JG, que coloca no mesmo balaio os repertórios do piseiro de João Gomes e da bossa nova do baiano acariocado João Gilberto, apelidando o mix trans-nordestino de “pisa nova”. Não sem razão, o crítico musical pernambucano GG Albuquerque argumentou que a mistura tinha como objetivo se apropriar, higienizar e sudestinizar a música ultrapopular de um dos joões, o Gomes. O termo “branquear” seria também propício, se estivéssemos falando de Luiz Gonzaga e não de João Gomes.
O músico de piseiro segue o ditame destes anos 2020 de que artistas devem transitar entre vários gêneros musicais, o que se concretiza pelo já desgastado recurso do “featuring” – gravações avulsas de duetos com colegas de outros nichos, a exemplo do intercâmbio que João faz com a velha MPB representada por Gil, Fagner e Vanessa. Como ponto de partida, desde o início, ele duetou com diversos colegas dos circuitos extra-litorâneos de piseiro, vaquejada e forró: os pernambucanos Vitor Fernandes, Zé Vaqueiro, Fabinho Testado e Henry Freitas, os cearenses Tarcísio do Acordeon, Renno Poeta, Caninana, Felipe Amorim, Avine Vinny e Junior Vianna, o alagoano Mano Walter, os paraibanos Marcynho Sensação e Jadson Araújo, os sergipanos Iguinho & Lulinha e Ramon & Randinho, o paraibano nascido paulista Japãozin.
Ao mesmo tempo, sem prejuízo dessa identidade, João Gomes também tem cantado com artistas de arrocha (os sergipanos Rafinha o Big Love e Asas Morenas, os baianos Thiago Aquino e Raquel dos Teclados), sertanejo (a mineira Gabi Martins, os paulistas Marcos & Belutti, Edson & Hudson e Traia Véia, os goianos Israel & Rodolffo), funk carioca e funk melody (os fluminenses Kevin o Chris e Dennis), trap (os cariocas L7nnon e MC Poze do Rodo, o paulistano MC Ryan SP), tchê music (a gaúcha Yara Tchê), pop (a maranhense-paraense Pabllo Vittar, a carioca Maria Maud, filha da atriz Cláudia Abreu), infantil (o projeto Mundo Bita, do pernambucano Chaps Melo), pagode (o grupo brasiliense Menos É Mais), nova MPB nordestina (a pernambucana Joyce Alane, a paraibana Juliette), forró eletrônico (os potiguares Raí Saia Rodada e Xand Avião, a baiana Solange Almeida), forró tradicional (os pernambucanos Assisão e Nando Cordel), funk (o paulistano MC Don Juan), axé music (o baiano Xanddy Harmonia), música religiosa (o paulistano Padre Marcelo Rossi), tecnobrega (a paraense Joelma), rap religioso (Hungria, de Ceilândia, DF). O piseiro, nesse tabuleiro intrincado, torna-se indubitavelmente um gênero de expressão nacional.
O alcance da misturança está fartamente ilustrado em Do Jeito Que o Povo Gosta. Apenas uma das 25 composições é assinada pelo próprio João: a faixa de encerramento, a bela, romântica e melancólica “Meu Bem”. Indo além do circuito concorrido de autores de piseiro, o álbum congrega releituras com assinaturas de grande diversidade: a funkeira-pagodeira Ludmilla (“Clichê”); o tecnomelodista Tonny Brasil (“Choro por Você”, gravada primeiro pela Banda Calypso); os pop-new wave oitentistas Herbert Vianna e Paula Toller (“Nada por Mim”, lançada em 1985 por Marina Lima); a MPB tribalista de Arnaldo Antunes, Carlinhos Brown e Marisa Monte (“Depois”, lançada em 2011 por Marisa); os sertanejos Bruno & Marrone (“Agarrada em Mim”); o rapper evangélico Hungria (“Deus Eu Te Peço”); a cantora soul-pop Sandra de Sá (“Solidão”, de 1986); o novo-baiano pop Pepeu Gomes (“Sexy Yemanjá”, 1993), o produtor de funk carioca Papatinho (“Ela Tem”)… Tudo, evidentemente, ganha lustro e uniformidade de pisadinha, para não desperdiçar o público original do estilo.
Sob maiores ou menores oscilações, a identidade nordestina tem perseverado nas criações e featurings de João Gomes. No primeiro álbum de que ele participou em 2025, o coletivo No Sertão, hits da música popular do Nordeste são reinterpretados em turma e em tempo de forró por João com o potiguar Dorgival Dantas e os cearenses Waldonys, Neto Leite (ex-integrante do grupo de forró eletrônico Mastruz com Leite) e Taty Girl. O segundo álbum do ano, batizado simbólica, sanfoneira e pernambucanamente de Dominguinho, João divide protagonismo com o sanfoneiro sergipano Mestrinho e com o cantor e compositor paulista de afro-pop-soul-MPB Jota.Pê. O piseiro se desacelera até o forró de Dominguinhos, o pop e o rhythm’n’blues, mas mantém essência e personalidade, como atesta outra inspirada gravação da autoral “Meu Bem”.
No trabalho solo, a uniformização de tudo em piseiro gera efeito duplo: dá coesão ao cancioneiro de João, ao mesmo tempo que lhe confere um tom monocórdico, por vezes enfadonho. A desenvoltura com que João Gomes passeia por tribos e gêneros musicais tem contado a seu favor, mas a relativa timidez em apresentar composições próprias e a força precoce de “Eu Tenho a Senha” e “Meu Bem” deixam um ar de suspense sobre quem é (e quem será) esse jovem artista de música brasileira do século XXI.
(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)