Nos cinemas desde o último dia 30, o filme carioca Kasa Branca mostra a relação entre Dé (Big Jaum), um jovem negro de periferia, e sua avó Almerinda (Teca Pereira), que sofre da doença de Alzheimer em fase terminal. Sem apoio de familiares, seu suporte são seus amigos Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), que permanecem sempre ao seu lado ajudando-o a enfrentar os problemas mais desafiadores.
Sucesso de público e de crítica em festivais nacionais e internacionais, Kasa Branca foi o grande destaque do Festival do Rio em outubro de 2024. Com o prêmio de Melhor Direção, Luciano Vidigal tornou-se a primeira pessoa negra a vencer o Troféu Redentor de melhor direção de longa-metragem de ficção na competição principal. Além disso, o filme recebeu também os prêmios de Melhor ator Coadjuvante para Diego Francisco, Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora. No mês seguinte, foi também o grande vencedor da 11ª Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte.

(Foto: Kasa Branca / Reprodução)
No filme, desde a primeira cena são estabelecidos e apresentados o cuidado e o carinho, elementos protagonistas. Nela, Dé dá banho na avó em uma cadeira de rodas e lava com delicadeza seu rosto, suas orelhas, seu pescoço. Esse é o tom que acompanha todo a obra, marcada por uma mise-en-scene atenta aos detalhes do afeto.
Em um estado avançado da doença, Dona Almerinda já não anda, fala ou se lembra do próprio neto, que se esforça a todo momento para recuperar e criar boas lembranças em sua última fase da vida, reconectando-a com o mundo, mesmo que por breves instantes. Ele procura mostrar-lhe fotos das quais ela tanto gostava, levá-la cotidianamente para ver o trem passar, para relembrar sua juventude em uma roda-gigante, e, ainda, voltar com ela para o alto de uma montanha, seu local preferido enquanto estava lúcida.
Estes ritos de afeto e atenção são compartilhados com os amigos Adrianin e Martins, que se tornam uma rede de apoio fundamental. São eles que ajudam a levantar a cadeira de rodas nas ruas e espaços repletos de obstáculos, a carregar Dona Almerinda no colo, atravessando uma mata e subindo a montanha até seu topo, a comprar os remédios e pagar o aluguel diante do risco iminente de despejo – desafios que se intensificam na medida em que Dé não consegue mais trabalhar para se dedicar exclusivamente aos cuidados da avó. Dessa forma, o filme inverte as dinâmicas tradicionais de cuidado nas quais as mulheres são as responsáveis por esta tarefa, enquanto são muitas vezes abandonadas pelos filhos, maridos ou outros parentes homens quando são elas quem precisam de ajuda. Aqui, o cuidado de Dona Almerinda é assumido por três jovens garotos que a tratam com extrema dignidade e respeito.

(Foto: Kasa Branca / Reprodução)
O filme trata com sensibilidade o tema do Alzheimer e os desafios da lida com a doença em um contexto social de pobreza. Sem uma política de Estado voltada para o envelhecimento da população, a árdua tarefa do cuidado recai sobre indivíduos que ficam à mercê da solidariedade de seus próximos. Nesse cenário, o acesso a direitos essenciais, como saúde, moradia, lazer e trabalho, tanto para a pessoa adoentada, quanto para aquela que cuida, se mostram muito distantes.
Segundo Luciano Vidigal, o filme “foi inspirado por uma história real. Eu sempre falo que a favela e a rua me inspiram muito. Tem muitas histórias singulares, bonitas, poéticas, de resistência, que eu acho que o mundo precisa ver (…) Essa história desse menino que existe, o Dé. E eu conheço desde criança, é amigo do meu irmão. E eu queria muito que esse corpo jovem, preto, favelado, tivesse um protagonismo humanizado e normalizado no cinema”, contou o diretor para o Gshow na pré-estreia de Kasa Branca no Rio de Janeiro. Nascido e criado no Morro do Vidigal, Luciano é também ator e professor e integra o grupo de Teatro Nós do Morro há 35 anos. Dirigiu segmentos de 5x favela – agora por nós mesmos (2010), Seleção Oficial do Festival de Cannes, e Cidade de Deus – 10 anos depois (2013).

(Foto: Kasa Branca / Reprodução)
Sua primeira direção solo em um longa-metragem, Kasa Branca expande o campo de representação da favela a partir de uma poética do afeto e desmistifica estigmas de homens negros recorrentes na sociedade e reproduzidos nas novelas, séries e filmes. Mesmo em um contexto de vulnerabilidade social e desafios constantes, o foco da obra se volta para a amizade, o carinho, a solidariedade e a sensibilidade dos personagens. Apresenta, assim, proposições estéticas sobre linguagem e representação, ampliando o leque de possibilidades criativas no cinema brasileiro.
(*) Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, Nayla Guerra é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão. É autora do livro “Entre apagamentos e resistências” (Editora Alameda, 2023) e diretora do filme “Ferro’s Bar” (2023).