Já faz alguns anos tenho me ocupado em pensar o teatro enquanto uma linguagem que a duras penas tem sobrevivido a um contínuo projeto de desmonte econômico, político, mas também filosófico, na medida em que sua relação com a vida social comum dia após dia parece minguar, demonstrando certo aspecto sorumbático, anêmico, que mobiliza toda ordem de preocupação a quem, assim como eu, foi criado nas paragens das artes cênicas como ofício de vida e de fé.
Faz um mês eu fui a Belém, cidade onde comecei a fazer teatro, e me deparei com uma imagem particularmente melancólica: a casa na qual fui uma espécie de visitante/hóspede durante alguns anos (que não sei precisar se são anos que configuram tempo curto ou tempo longo, devido sua intermitência e intensidade) com uma placa de aluga-se.
O espaço é um desses antigos e belos casarões da Cidade Velha e fica em uma das esquinas mais famosas da zona do meretrício – ora, como seria possível não mencionar esse dado? Nós que éramos todas ali pessoas de teatro fazíamos questão de associar nosso cotidiano povoado de figurinos espalhados nos quartos, bonecos pendurados na sala, textos teatrais por todo lado, ao que entendíamos ser algo como a autossuficiência das meretrizes, a atmosfera libidinal e desejante de nosso privilégio enquanto mulheres que podiam ali decidir projetos, planejar espetáculos e temporadas. Eu era muito nova, tinha vinte anos, quando a vida me conduziu a esse lugar de aprendizado: o aprendizado das putas.

(Foto: Reprodução)
Na parte de baixo do piso principal onde ficavam os quartos, a sala e a cozinha, descendo um charmoso lance de escadas de madeira, encontrávamos um conjunto de salas que abrigaram peças teatrais intimistas, para um público pequeno e muito interessado, em um processo inaugurado pelo teatro de grupo de Belém chamado Movimento de Teatro de Porão.
O teatro do casarão chamava-se Puta Merda, no entorno haviam outras residências antigas com a mesma estrutura, eram de artistas que haviam investido na região para fortalecer essa cena bastante efervescente entre os anos 90 e 2000, explicitando uma estratégia de resistência coletiva frente aos desmandos de um governo cuja gestão cultural era pouco afeita à arte e as manifestações populares, insistindo no canto das sereias superfaturadas das obras faraônicas feitas para que os ingleses gostassem da Amazônia.
Guardo com ternura as memórias do Puta Merda, onde eu me embrenhei tantas e tantas noites a fio, sobre as tábuas corridas, sozinha, para ficar em paz. O silêncio de um teatro vazio depois de uma sessão ou antes de outra, a pausa justa dos territórios vivos, guarnece sonhos de futuro – quando se tem vinte anos os sonhos de futuro são tesouros fundamentais.
A placa de aluga-se substitui a placa onde antes líamos Puta Merda. Merda no teatro, como muitos sabem, significa boa sorte, é um aceno à fartura e à abundância de público, uma cultura dos bastidores que ressignifica o teor da grande lama em que já estávamos historicamente afundados como trabalhadores, mas à qual respondíamos com engenho e humor, nas insistências próprias da linguagem teatral e seu poder de renascimento.
O filme “Malu”, a propósito de um trecho biográfico de Malu Rocha, atriz que se exila em uma casa em construção em meio a uma comunidade litorânea no Rio de Janeiro, fala também dos teatros de porão desfeitos no norte do país e das placas ofertando um edifício teatral (com todo seu substrato simbólico, memorial e indelével) às ganas do mercado imobiliário.

No filme, há uma carga imensa de conflitos geracionais, angulados pela relação entre três mulheres unidas pela energia caótica (e por isso mesmo fascinante) da protagonista, Malu, interpretada por Yara de Novaes, uma atriz imersa nas ilusões de um teatro que já não pode mais se realizar.
As lembranças da grande paixão teatral de uma juventude bradando pelo fim da ditadura militar, em que pesem as contradições raciais e de classe presentes nesse período, configuram-se como o armazém onde Malu deposita suas esperanças face um presente de materialidade sombria, disparando de quando em quando centelhas de vida, fogos de artifício, como que para desfibrilar um passado encapsulado em si mesmo.
Joana, a filha interpretada por Carol Duarte, também é atriz e retorna de uma temporada na França onde foi incensada pela crítica. O sucesso parece incomodar a mãe e acirrar ainda mais o ressentimento geracional estabelecido em diálogos densos, envoltos por cobranças tão pertinentes quanto injustas. Em certo ponto, Malu cria uma teoria: uma geração deve fazer revoluções, a seguinte estagna e reflete sobre as revoluções e a próxima deve voltar a fazer revoluções. Joana ouve as impressões da mãe sem condescendência, mas com generosidade, ela sabe que é partícipe de um processo em que o teatro se tornou uma aventura mercantil, prática humana obliterada pela asfixia de grupos teatrais em suas organizações coletivas, sindicalizadas e/ou cooperativistas. A carreira teatral hoje se refere ao indivíduo em sua trajetória profissional e distancia-se cada vez mais da ideia de companhia/grupo/coletivo em que um ajuntamento de pessoas, no uníssono de suas pulsões vitais, lançava-se à busca técnica e poética no abismo cativante da cena.
A crise do teatro como linguagem artística se inicia no ascenso da ideia moderna de sujeito e localiza-se hoje conectada ao aprofundamento do neoliberalismo como política de corporeidades e teoria crítica. Se a geração de Malu defendia o fazer teatral como pura manifestação de um Eros decisivamente laborioso, mas nunca pautado no elogio da ideia social de trabalho, a geração de Joana (a minha, diga-se de passagem) peca por desidratar-se da paixão revolucionária preenchendo-se de uma (também justa) concepção de que é importante regulamentar o teatro como campo de trabalho em sua dimensão histórico dialética.
Sim, foi substancial desromantizar a ideia de que era um verdadeiro sucesso fazer espetáculos teatrais de quarta a domingo (com sessão extra no domingo) de maneira mal remunerada, bem como desconstruir a projeção de que o prestígio social da “classe” é suficiente para a realização do artista teatral (de qual artista teatral estamos falando quando nos esquivamos de discutir sobre os necessários alicerces financeiros que nos permitem pagar boletos e contas?). Em compensação, o pragmatismo ahistórico com o qual passamos a encarar nosso ofício revela o quanto aderimos a uma forma de vida unilateralmente adequada à produtividade, mesmo a simbólica, em sua incipiência estética e inofensividade política.
Outras figuras são muito importantes em “Malu”: Dona Lili, interpretada por Juliana Carneiro da Cunha, a matriarca conservadora, e Tibira, interpretado por Átila Bee – amigo negro, artista e gay de Malu, também morador da casa em construção.
O conflito demarcado entre essas duas personagens dilata fronteiras geracionais e constitui uma metáfora da História de Um Teatro Brasileiro em que o moralismo da elite branca não foi capaz de corromper as intenções políticas de sua prole, mas como um parasita teleológico (racista e arraigado no ódio aos pobres e às existências sexualmente diversas) exige poder e autoridade mesmo por entre ruínas.
Dona Lili mobiliza o que lhe resta de saúde mental para extirpar o demônio familiar Tibira do círculo de amizades de sua filha, a amabilidade e doçura são temperamentos que intensificam os esquadros de sua perversidade – aliás, todas as personagens são prismadas sob um método de expressividade dialética, em todas encontramos claros-escuros que nos desconcertam quando por (mau) hábito começamos a ler o filme em chave maniqueísta.
É Tibira quem decreta a ruptura ante a moralidade burguesa representada por Dona Lili e revolvida por Malu e Joana. Trajando suas vestes coloridas e brilhantes, Tibira enfrenta a covardia de sua histórica antagonista em um manifesto de Poesia Preta e Viada que jamais poderá vir a ser eliminada pela cultura dominante.
Para Tibira parece estar reservado um outro enredo, talvez um outro filme, no qual ele parte da casa da amiga Malu e não chega a encostar na dor de sabê-la doente, mantendo-a fulgurante em seu coração como uma inspiração telúrica, uma imagem de esperança tal qual um objeto santificado do avesso.
De todas as nuances de Malu na interpretação de Yara de Novaes, a mais bonita deve ser mesmo aquela que permanece no amigo Tibira: Malu vista à luz de um futuro ainda possível, mesmo que se meta às vezes escondido nos escombros de um tempo morto ou nos porões das putas, aquelas da Cidade Velha.
(*) Paloma Franca Amorim é escritora, dramaturga e professora de artes.