Quarta-feira, 26 de março de 2025
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Em 1958, Milton Nascimento tinha 16 anos e se formava no Ginásio São Luís de Três Pontas, em Minas Gerais, na condição de melhor aluno e orador de sua turma. Não era só isso: filho adotivo de um casal branco, ele era também o único negro da turma. Depois da solenidade de formatura, em vez de partir para o baile de gala ao lado dos colegas, foi embora para casa, porque sabia que seria barrado na entrada do Cine Ouro Verde, onde acontecia o baile. Não foi a primeira nem a última vez que isso aconteceu ao então crooner do conjunto de baile Luar de Prata, formado por adolescentes negros e brancos (entre esses o futuro maestro Wagner Tiso). À época, o regulamento dos clubes de Três Pontas, assim como da maioria esmagadora das cidades brasileiras, previa a proibição sumária da entrada de negros em seus recintos. 

Quase 70 anos depois daquele início triste, Milton tem hoje 82 anos de idade e é músico reconhecido mundialmente, dono de cinco estatuetas do Grammy e louvado por músicos internacionais desde os jazzistas Wayne Shorter, Herbie Hancock e Dianne Reeves até os cantores pop-rock Paul Simon, Peter Gabriel, Sting e David Byrne, entre muitos. Outra admiradora é a cantora e contrabaixista estadunidense de jazz Esperanza Spalding, 42 anos mais jovem que ele e sua parceira em Milton + Esperanza, lançado no ano passado e indicado ao Grammy 2025 na categoria de álbum vocal de jazz. Foi aí que a porca torceu o rabo e Milton se viu, inacreditavelmente, exposto a outra situação vexatória, comparável àquelas de quando o racismo era institucionalizado e praticado sem véu nem burca.

Ainda que camuflado por camadas de subterfúgios e suposta sofisticação de métodos, o clube musical hollywoodiano conhecido como Grammy agiu com Milton em sua 67ª premiação anual, no dia 2 de fevereiro, de modo muito parecido ao dos clubes de Três Pontas no século passado. A organização do prêmio não barrou propriamente Milton Nascimento, que viajou do Brasil para Los Angeles para participar da cerimônia. Mas o confinou às arquibancadas da casa que abrigava o convescote, exoticamente batizada de Crypto. Com Arena, ex-Staples Center, agora arrendada por uma empresa de criptomoedas. Na área vip, Esperanza Spalding protestou calada, portando um cartaz vistoso onde se lia, em inglês, que “esta lenda viva deveria estar sentada aqui!”. 

Alguém poderia argumentar que a discriminação de um artista negro latino-americano no tapete vermelho hollywoodiano cabe sob medida aos humores do supremacista branco que ocupa desde 20 de janeiro a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump. O caso é mais grave, no entanto, se lembrarmos que a Califórnia se orgulha de ter dado vitória à candidata democrata Kamala Harris em novembro passado e de hospedar uma comunidade artística majoritariamente inclinada ao progressismo, à democracia e ao antirracismo. A repercussão do episódio tem sido ampla nos dias seguintes à premiação, mas nem Hollywood, nem a comunidade internacional, nem o New York Times, nem a mídia brasileira como um todo têm dado os nomes corretos aos bois que estão à solta no pasto neofascista do mundo em 2025. O coquetel amargo a que mais uma vez submeteram Milton liquidifica racismo, xenofobia e etarismo.

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Num comunicado oficial, a equipe do músico brasileiro lamentou que a academia do Grammy tenha desconsiderado “não só toda a trajetória e prestígio em todo o mundo, como a sua idade avançada e impossibilidade de descer ou subir escadas”. Segundo afirmou o colunista de fofocas de celebridades Hugo Gloss, a equipe de Milton questionou a organização e recebeu como resposta a afirmação de que as mesas principais foram reservadas apenas aos artistas que a academia queria destacar no vídeo. “Tendo em vista a carreira vitoriosa, o reconhecimento e o respeito conquistado pelo genial artista brasileiro, optamos pela ausência dele na cerimônia principal”, informou o comunicado de sua equipe. 

O Ministério da Cultura do Brasil, chefiado por uma mulher negra, a também cantora Margareth Menezes, não fez mais que emitir uma nota protocolar de repúdio: “A decisão da academia de posicioná-lo em um local incompatível com sua trajetória, prestígio internacional e necessidades físicas demonstra falta de sensibilidade e respeito a um dos maiores nomes da música brasileira”. “Falta de sensibilidade” foi o eufemismo adotado pelo governo brasileiro para se referir ao enésimo episódio de discriminação e racismo “estrutural”, e Lula preferiu não meter a mão numa cumbuca já bastante incandescente.

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As alegorias são eloquentes, e o que aconteceu a Milton Nascimento em Los Angeles no dia de Iemanjá guarda analogia direta com os primeiros atos de um governante que iniciou seu segundo mandato promovendo deportação em massa de migrantes ditos irregulares e sonha construir um muro físico entre a “América” (que não é a América, mas sim os Estados Unidos da América do Norte) e o México.

O tratamento dado ao caso revela que não apenas a extrema direita, mas também a comunidade cultural dos Estados Unidos, comumente identificada como progressista, oscila entre descuidada e apavorada diante da nova realidade política no país. Talvez insignificante para o status quo estadunidense, seus pares e seus sabujos, o episódio evidencia menos diferenças que afinidades entre Trump e seus opositores proverbialmente adeptos de democracia, identidade, igualdade, justiça social, etc. O Brasil também assistiu a esse filme poucos anos atrás. O que não se poderia imaginar é que o pântano fosse respingar em Milton Nascimento, um dos maiores artistas vivos do planeta, diante do qual tremeram nomes como Antonio Carlos Jobim e Miles Davis.