“O Brasil precisa ser corretamente conhecido. Especialmente a sua situação política. E, já que vai estudar os negros, devo dizer-lhe que o nosso atraso político que tornou essa ditadura necessária, se explica perfeitamente pelo nosso sangue negro. Infelizmente, por isso estamos tentando expurgar esse sangue, construindo uma nação para todos, limpando a raça brasileira.”
A frase acima, atribuída a Oswaldo Aranha, famoso diplomata brasileiro que, dentre outras coisas, foi presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947, quando presidiu a sessão da Assembleia Geral da ONU que aprovou a Resolução 181, também conhecida como Plano de Partilha da Palestina, que estabeleceu a criação do Estado de Israel em 1947, demonstra como o projeto de democracia racial falhou em sua forma e conteúdo. Na tentativa de embranquecer completamente a população brasileira – quebrando as barreiras do atraso que Aranha enxergava –, o projeto eugenista atravessou o século XX, e ganhou força durante a ditadura empresarial-militar de 1964.
Mas o fato é que, pra além de toda a violência racial, que faz o Brasil um dos países mais perigosos para ser negro, a cultura nacional se tornou, em sua maioria, uma cultura de matriz africana e de negros brasileiros. Partindo dessas premissas contraditórias – a perseguição aos negros, e a supremacia dessa mesma cultura negra na formação da cultura brasileira – o Instituto Moreira Salles (IMS), em parceria com o historiador e etnomusicólogo Rafael Galante e o uso do seu longo acervo sobre música e cultura brasileira, organizou uma série de encontros, disponíveis no YouTube, e que agora chegam ao público como um ebook gratuito.
No livro, Galante, como coordenador, reuniu um time de dez pesquisadores para pensar o que ele chama de modernismo negro. A partir do centenário da Semana de Arte de 1922, Galante e os demais pesquisadores fazem uma releitura do evento, tentando não apenas localizar, mas revelar o lugar do negro e sua cultura para a modernidade brasileira. O que ele chama de “revolução cultural” ocorrida no Rio de Janeiro no início do século XX, geradora do samba carioca, é um ótimo ponto de partida para a reflexão acerca da cultura negra e desse modernismo.
A partir da aproximação com os campos de estudos raciais da sociologia norte-americana, a historiografia brasileira foi adotando o conceito de modernidade aplicado à noção de raça. Caracterizado por suas expressões artísticas em suas múltiplas facetas, esse modernismo negro reflete as experiências, as lutas e a produção cultural dos povos negros em todo o mundo. Um tanto afeito à produção de Paul Gilroy e seu clássico Atlântico Negro, essa produção, chamada pelo autor de diaspórica, se torna uma “contracultura da modernidade”, em seu sentido capitalista e colonial.
Dividido em dez textos, distribuídos entre os quatro encontros, Música e modernismos negros revela uma nova maneira de pensar a cultura brasileira no último século, buscando entender o papel da escravidão, do Atlântico Negro, da presença maçiça de negros em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e como foi possível o estabelecimento desses modos de ser e existir em meio ao genocídio perpetuado há mais de 500 anos. É um material que, aliado a outras boas obras da sociologia brasileira, desloca o cerne da questão negra de mãos e bocas brancas, e se orienta pelo que foi produzido pela maior população de descendentes africanos do mundo.
Rejeitando a adoção da sociologia Freyreana, que expressou os anseios da esquerda e direita brasileira da década de 1930, bem como o que se seguiu após o golpe de 1964, que projetava ao mundo um Brasil livre de racismo, e se aliando às teses de Luiz Gama, Clóvis Moura, André Rebouças, Manuel Querino, e tantos outros negros e negras que se negaram a ser diluídos dentro do abstrato rótulo “brasileiro”, Modernismos negros serve tanto para autores e pesquisadores quanto para os amantes em geral da cultura popular, oferecendo uma nova maneira de ver manifestações afro-religiosas, gêneros como o samba, poesias, e o protagonismo e a invisibilidade das mulheres negras na história recente do país, colocando esses elementos como indispensáveis para se pensar o Brasil não só politico, mas com sua riqueza cultural que teima em resistir, na mesma medida em que teimam em destruí-la.
Música e modernisnos negros