A história por trás deste título acima começa depois de um show de Ney Matogrosso. Rita Lee foi assistir, e logo depois Ney apresentou a ela Roberto de Carvalho. Não é um fato desconhecido, está, inclusive, no livro Uma autobiografia, de Rita Lee (ed. Globo, 2016), mas aqui é contado numa outra perspectiva: a de Ney.
“Ela tinha uma jaguatirica quando fui visitá-la. Ficou lá com Roberto tocando piano, e a jaguatirica em cima de mim. Até aí nenhum problema. Só que a jaguatirica começou a fazer assim com os dentes na minha cabeça [Ney mostra o movimento passando a mão na cabeça]. Aí eu disse: olha, Rita, se sair uma gota de sangue ela vai me atacar. Ela não estava me atacando, estava brincando comigo, mas com o dente, no meu cabelo. Aí ela tirou a jaguatirica, prendeu. Rita tinha uma jaguatirica solta em casa”, recordou Ney Matogrosso em entrevista concedida a Renata Rocha e Fabio Maleronka.
A entrevista publicada abaixo, em primeira mão, por Opera Mundi integra o livro Caixinhas de música: conversas sobre música brasileira, tempo e cidades (Editora Autonomia Literária), organizado por Rocha e Maleronka, que traz uma coleção de conversas com artistas brasileiros de distintas regiões e estilos musicais.
As entrevistas foram feitas especialmente para o livro. Como explica Pedro Alexandre Sanches, crítico musical e colunista de Opera Mundi, há músicos e cantores que se aproximam dos 90 anos, como Hermeto Pascoal e Alaíde Costa, “e gente que ainda não saiu da casa dos 20, como Ayrton Montarroyos”.
Ney Matogrosso é um dos artistas nascidos nos anos 1940 que integram a lista, que conta também com filhos e filhas dos anos 1950 (Eduardo Gudin, Michael Sullivan, Paulo Massadas, Arrigo Barnabé, Lô Borges, Armandinho Macedo e Tetê Espíndola), 1960 (Arnaldo Antunes, Fernanda Abreu, Ivan Vilela, Marisa Orth e Taciana Barros), 1970 (Maestro Spok, Karina Buhr e Roberto Barreto do BaianaSystem), 1980 (Céu, Rodrigo Ogi, Don L, Felipe Cordeiro, Filipe Catto e Aíla) e 1990 (Juliana Strassacapa e Sebastián Piracés-Ugarte da banda Francisco, el Hombre, Alice Caymmi e Ayrton Montarroyos).
Além da relação com Rita Lee, a entrevista resgata a vida do cantor do grupos Secos & Molhados, obras do artista, shows durante a carreira, críticas que recebeu, a censura da ditadura que teve de enfrentar. Uma conversa interessantíssima, do começo ao fim. Aliás, no fim, com o perdão do spoiler, Ney afirma que ainda gostaria de fazer cinema: “Ah, eu quero fazer mais cinema. Não preencho ficha dizendo que sou cantor. Boto lá ‘artista’, para eu ser livre para fazer todas as coisas que me interessarem e que eu possa e entenda que possa fazer”.
Leia a entrevista completa de Ney Matogrosso no livro Caixinhas de música: conversas sobre música brasileira, tempo e cidades:
Começando com uma pergunta em homenagem à Rita Lee, pensando nas relações entre ela e os Mutantes e entre você e os Secos & Molhados, e na saída de vocês das bandas para a carreira solo, vocês eram duas figuras muito importantes dentro dos grupos, que saíram e tiveram carreiras muito promissoras. Você vê essa relação?
Vejo, sempre vi. E sempre vi uma relação muito, muito interessante com Rita. Eu admirava muito ela, e ela gostava muito de mim também. Uma vez a gente ficou em um camarim, acho que na MTV, onde ela tinha um programa. Ficamos os dois umas três horas dentro de um camarim, conversando, conversando e conversando. Eu já tinha o meu sítio, e ela me falava do desejo de morar no meio do mato, que se concretizou. A gente conversou muito sobre essa coisa de sair da cidade. Na verdade, não nos encontramos muitas vezes. Encontrei ela quando eu era dos Secos & Molhados e ainda existiam os Mutantes [no início da década de 1970]. Mas a gente não se aproximou muito, não. Ela tinha uma história lá com João Ricardo [compositor nascido em Portugal e companheiro de banda de Ney], sabe? E eu ficava olhando ela assim, de longe: “Hum, acho que tem tudo a ver”. Sempre achei que tinha tudo a ver ela comigo, eu com ela, as histórias. E depois fui eu que apresentei Roberto de Carvalho a ela. Foi ver um show da gente em um lugar chamado Beco, em São Paulo, e Roberto tocava comigo [na banda Terceiro Mundo]. Ele tocou comigo até o começo do álbum Bandido (1976). Foi Roberto quem gravou aquela guitarra de “Bandido corazón” [uma composição de Rita para Ney], foi a última coisa que ele fez comigo. Quando Rita foi no show, a gente ainda estava fazendo Homem de Neanderthal [baseado no primeiro lp solo de Ney, Água do céu – pássaro, de 1975] no Beco. Ela foi assistir e me disse: “Você não quer jantar lá em casa amanhã?”. Eu disse: vou. Leva o músico que você quiser com você. Ah, eu já tinha visto, tá? Já sei até qual vou levar, né? Levei, e daí pronto.
E nunca mais se separaram. E ela fez uma letra de música para você, “vira-lata de raça” (1999), que dá nome a seu “livro de memórias”.
Sim. É muito interessante, porque todas as minhas referências são as mesmas dela, eram as mesmas dela. Nessa música, todos os personagens que ela citou eram pessoas da minha adolescência e da dela também, como Marlon Brando, James Dean. Embora eu seja mais velho que ela [Ney nasceu em 1941, Rita em 1947], eram estrelas da nossa adolescência. Eram os transgressores, que foram os que sempre gostei mais, e ela também. É muito compatível.
Dizem que Rita Lee foi a rainha do rock. Talvez seja um erro, Rita é a rainha do pop, e você também, não? consegue se comunicar com as crianças, com todo mundo, com linguagens que não são só a música.
Não tem que ter rei e rainha de nada. Muitos cantores querem ocupar o lugar do Roberto Carlos, ser a contrapartida do Roberto Carlos. Nunca ansiei por isso, nunca desejei, nem me interessa ser rei de nada. Não é uma bobagem querer ser rei de alguma coisa?
Você tem uma relação forte com os figurinos, desde os Secos & Molhados, de utilizar adereços de teatro, colocar grinalda. E Rita apareceu nos festivais da canção cantando vestida de noiva e com barriga de grávida.
Não era uma coisa intencional, para marcar nada. A coisa que mais me atraiu foi ela entrar de noiva grávida nos anos 1960. Aquilo era tão absolutamente fora dos padrões que eu ali na hora já disse: é mesmo essa daí! E a grinalda que usei é porque eu queria colocar uma coisa na cabeça, não sabia o quê. Tinha uma grinalda de noiva, umas flores, eu disse: ah, eu vou botar isso porque também é uma coisa de mulher. Eu não estava vestido de mulher, mas queria ter um objeto de mulher só para confundir, aí botei uma grinalda de noiva. Nunca quis ser mulher, não, tá? Eu gosto de ser do sexo masculino. Mas nunca respeitei esse limite, entre um e outro.
Vocês dois têm também em comum uma relação forte com os animais.
Ela tinha uma jaguatirica quando fui visitá-la. Ficou lá com Roberto tocando piano, e a jaguatirica em cima de mim. Até aí nenhum problema. Só que a jaguatirica começou a fazer assim com os dentes na minha cabeça [Ney mostra o movimento passando a mão na cabeça]. Aí eu disse: olha, Rita, se sair uma gota de sangue ela vai me atacar. Ela não estava me atacando, estava brincando comigo, mas com o dente, no meu cabelo. Aí ela tirou a jaguatirica, prendeu. Rita tinha uma jaguatirica solta em casa. Ela viu que eu não tinha problema com a jaguatirica. Imagina, eu estava gostando. Só que começou a fazer uma coisa que eu não tinha mais controle sobre ela. Estava no meu colo, eu ficava passando a mão, alisando. Era linda.
Vamos falar sobre sua relação com o palco, desses animais e seres que aparecem como faunos na sua dança, na sua interpretação, no seu canto. Nestes quadros em sua parede, a gente vê você retratado pela Alkistis Michaelidou, que fez uma exposição em Atenas, com seres mitológicos…
É, um centauro. Nunca busquei nada de animal. As coisas que eu usava eram penas, crinas, dentes, unhas, ossos e coisas do mar. Muitas pessoas faziam para mim, especialmente nos Secos & Molhados, coisas que eu usava na testa. Faziam com esses elementos todos, e eu adorava. Tem aquele anel de unha de onça que fiz, era uma unha desse tamanho, botava e ficava aquela unha aqui assim [mostra o tamanho com a mão]. Mas eu não buscava isso, no meu corpo, vinha inconscientemente.
Quando você gravou “Homem com H” (1981), havia uma relação com o papel de Lima Duarte na novela [o autor, Antônio Barros, se inspirou em cenas da novela O Bem-Amado, de 1973, para compor “Homem com H”]. Como foi a história de que Gonzaguinha ligou para você?
Gonzaguinha era da mesma gravadora que eu. Eu tinha acabado de gravar a música, mas ainda não sabia se ia liberar para entrar no disco [Ney gravou “Homem com H” em 1981]. Fui lá e disse: Gonzaguinha, ouve isso aqui, me fala o que você acha disso? Ele disse: “Porra, Ney, isso é uma tirada que só você poderia cantar e inverter todo o significado”. Eu não tinha visto dessa maneira. A minha restrição era porque era um forró, e eu achava que não sendo do Nordeste eu não poderia cantar. Não tinha entendido ainda que sou um cantor do Brasil e que, portanto, posso cantar qualquer coisa. Agora tenho essa mentalidade. Naquele momento, eu achava que gravar forró poderia ser visto como oportunismo. Era muito separado. Eu gostava da música, mas achava isto: as pessoas vão dizer que estou sendo oportunista, cantando um ritmo que não faz parte do meu universo. Mas faz.
Você usa o Mato Grosso no nome e se entende como artista brasileiro e, mais do que brasileiro, latino-americano, desde o começo. Como conseguiu olhar para esse lado latino-americano de uma forma ampla?
Não tinha como não prestar atenção a isso, porque meu avô era argentino e minha avó, paraguaia. Eu tinha isso muito forte, sabia de onde tinha vindo. Acho uma tristeza o Brasil não prestar atenção à América Latina, só à América do Norte. Já prestou mais, nos anos 1940 e 1950 o rádio tocava música da América do Sul, da América do Norte, inglesa, francesa, mexicana. Tinha música do mundo inteiro. Minha memória do rádio brasileiro é essa. Mas os Estados Unidos se empenharam em colocar a música deles no mundo. É uma música muito interessante também, mas a nossa acontece e é respeitada no mundo sem empenho nenhum de governo.
Você abre espaço para muitos compositores. O que o norteia na escolha de repertório?
O que me norteia é eu pensar assim: se fosse compositor, você falaria isso? É onde eu decido se eu vou cantar ou não a música. Tenho seis músicas gravadas que não saíram ainda, com gente nova. Gosto de fazer isso. Não é por favor, eu não faço favor. Faço porque gosto.
“O Vira” (1973) pega também essa questão de ter uma tirada com os sentidos da letra?
“O vira” não tinha nenhuma conotação sexual, as pessoas é que começaram a colocar uma coisa onde não existia. Luhli fez uma música infantil. Ela quis fazer “O vira” porque João [Ricardo] era português, era uma homenagem, e fez “O vira” com aquela letra. Aquilo tudo fazia parte do imaginário da Luhli. Ela acreditava nessas coisas, nessa comunicação, e eu acredito também. Não vou acreditar? Como é que não vou acreditar nisso?
Sobre essa provocação da conotação sexual, você já falou em algumas entrevistas sobre usar “fodia pra ser feliz” em “pro dia nascer feliz” (1984)…
Ah, isso era escracho, deboche. Eu só cantava isso quando Cazuza estava presente. Ele rolava de rir.
Fala um pouco sobre a Gal Costa, sobre o que ela representa?
Quando cheguei, ela já estava no panorama. Eu era aquele que comprava todos os discos dela. Eu adorava aquele primeiro disco em que ela virou roqueira. Até então era mpb, mas ela começou a gritar, tinha muita influência de Janis Joplin naquele momento. Adorei aquele disco, muito. Depois, quando virei cantor, nos aproximamos e estivemos juntos em vários lugares, e era muito agradável estar com Gal. Era uma pessoa muito divertida, acho que as pessoas não sabem disso, Gal tinha um humor, gostava de falar sacanagem. A gente sentava e ficava falando putaria. Ela adorava, ria muito, chegava perto de mim e já puxava um assunto. Por isso acho que a namorada dela sempre me vetou. Gal me disse que duas vezes quis que eu dirigisse o show dela. Eu disse: não, uma vez. E ela: “Não, duas”. Essa segunda vez eu nem soube… Quando a gente se juntava, Gal ficava muito acesa. Eu estimulava uma coisa nela, acho que ela [a companheira e empresária] ficou com medo de deixar eu me aproximar muito.
Você falou do uso das penas e crinas, isso tem uma relação com seu início fazendo os artesanatos, os cenários, os adereços?
É que eu fazia artesanato, muita coisa para vender, e usava esses materiais todos. Mas depois já era uma outra coisa, não era mais um adereço, era para me transformar em um personagem. Eu me lembro que tem uma gravação, não sei se de “O vira” ou de “Sangue latino” (1973), em que estou cheio de penas enfiadas no cabelo. Meu cabelo era preso, eu usava feito um rabo de cavalo. E meu cabelo todo cheio de pena enfiada, eu não queria ser humano, queria ser uma coisa híbrida, gostaria que me vissem como algo híbrido. O lado animal sempre usei dessa maneira, para me tirar do humano completamente. Não completamente, mas confundir um pouco mais.
E sua ligação com o teatro, no Ruth Escobar, depois no teatro oficina com Zé Celso Martinez Corrêa? Essa relação com o personagem, com a transformação, você se sentia livre quando estava maquiado?
Sim, eu ouvia dizer que artista não podia andar na rua. Já tinha 31 anos. Perder o direito de andar na rua para mim ia ser um sofrimento. Andava muito pela Liberdade [bairro na região central de São Paulo] e via muita foto do teatro kabuki ali no bairro japonês. Achei interessante, olha só, é possível, sim, eu ser um artista e ninguém encher meu saco, ninguém me impedir de andar na rua. Eu tinha visto uma cena com Roberto Carlos que me deixou muito chocado. Uma vez nós fomos no aeroporto, eu e Luhli, com uma amiga dela que era americana e ia viajar. Essa americana era muito amiga do Roberto também. Nós estávamos no Galeão, parados, nos despedindo dela, e um grupo de pessoas descobriu o Roberto Carlos. Vieram correndo na direção dele, pensei: vão jogar ele no chão. Se uma pessoa batesse com força, ele caía. Quando vi aquilo eu disse, meu Deus, eu não quero essa vida para mim, não quero multidão correndo atrás de mim, gritando e ameaçando. É a integridade física da pessoa, né? Então, quando vi essas fotos na Liberdade, me deram essa luz. E se eu talvez pintasse o rosto todo? Não copiei o kabuki, porque o kabuki é todo colorido. Usei apenas o branco e preto, e aquele rosto variava, aquela maquiagem variava muito. Não era sempre o mesmo.
Você diz que, quando foi fazer televisão, os diretores falaram que não podia olhar para a câmera, mas você olhava mesmo assim.
Isso foi na primeira vez que nós fomos fazer o Fantástico. Tinha um ensaio antes e, na hora que entramos, uma voz disse assim, eu não sei nem quem era: “É proibido olhar para as câmeras”. Eu disse: mas eu vou olhar. Por que não olhar para a câmera? Eu me interessava em me comunicar com quem estivesse em casa assistindo, não é isso? Você podia ser visto, mas você não podia se comunicar. Ah, mas eu vou olhar. Aí, fizeram um comentário bem escroto ao meu respeito. Olhei, e nunca deixei de olhar. Nunca deixei de olhar.
Eles tinham receio daquele olhar, da comunicação…
É, da comunicação com quem está em casa, que era o que eu queria. Não podia. Quem estava se apresentando na televisão não podia ter essa comunicação. Olha o grau da loucura. Sempre olhei, em todas as televisões que fui eu olhei.
Ainda sobre essas transgressões, quando você canta “Barco Negro” (1975) não muda o eu-lírico e canta no feminino. Isso foi uma decisão?
Isso deixou um crítico com ódio. Conheci a música quando estudava em um ginásio aqui no Rio de Janeiro. Morava em Padre Miguel e pegava um trem todo dia para ir para Campo Grande. O colégio era lá, um colégio muito bom. E tinha lá um cinema enorme, os cinemas todos eram enormes, em todo canto. E tinha um porteiro que deixava os adolescentes assistirem a filmes proibidos. Lá eu vi Martine Carol nua, vi muitas. Vi um filme chamado Amantes do Tejo [1955, dirigido por Henri Verneuil], em que aparecia a portuguesa Amália Rodrigues cantando “Barco negro”. Aquela música entrou na minha cabeça naquela hora. Era uma coisa tão forte, tudo aquilo que ela dizia. Passaram-se os anos, fui fazer meu primeiro disco solo, nem me lembrava mais do “Barco negro”. Mas um amigo me disse: “Ney, tem umas músicas interessantes da Amália Rodrigues”. Quando vi estava “Barco negro”, porra, é a hora, é a hora. Nem pensei que era no feminino. Vou cantar no feminino. Porque não tinha cabimento, não podia cantar aquilo se não fosse no feminino. Uma criatura falando que o marido tinha ido para o mar e que as mulheres da praia diziam que não ia voltar, e ela dizia: “Vocês são loucas”. Só podia ser no feminino, e cantei no feminino. E o cara que escreveu esculhambou o disco inteiro, você sabe que ele tirou a crítica dele da internet, né?
Quem é? José Ramos Tinhorão?
Sim, sim. Ele dizia que o disco era uma merda – ele não falou merda, mas que eu tinha escolhido a pior música do Milton Nascimento. Cantei “Bodas” (1974), do Milton, era uma coisa, uma música de protesto. Ele escreveu que eu cantava um fado onde eu chorava igual uma rameira. Falei várias vezes, fiz questão de falar isso em toda entrevista que eu dava. No fim da vida, ele foi lá e tirou. Tem uma coisa dele toda lá, todas as críticas estavam lá. Ele que seja conservador, mas não pode falar isso de mim. Como é que vai me falar uma coisa dessa porque canto uma música no feminino? Na minha cabeça, aquela mulher chorava, acabava assim, debruçada sobre o mar, chorando. E foi o que eu fiz. Quando fomos gravar o clipe, fiz isso também. O clipe é lindo e acaba assim, eu debruçado sobre o mar, chorando. Porque homem não chorava, né? Também tinha isso, essa mentalidade.
E um homem não pode dar uma voz feminina…
Isso da voz eu já tinha entregue para Deus. Todos tinham entregue para Deus, não vai mudar minha voz, não forcei. Como uma rameira, o que é isso? Uma puta? Mas falei tanto que ele tirou.
Tem uma história da Rita Lee, que ligou para o crítico, quando ele falou mal de um show.
Eu vi gente que tirava show de cartaz, como era o nome daquela mulher? Tirou Zezé Motta de cartaz do Teatro Ipanema. A mulher falou tão mal, como era o nome dela? Barbara Heliodora? Era uma que fazia crítica de música, acho que Maria Helena Dutra?
Era censura militar de um lado, censura conservadora de outro. E da própria mídia também, não?
Sim, fiquei dois anos sem meu nome ser publicado no Jornal do Brasil porque diziam que não publicavam nome de travesti. Mas onde que eu sou uma travesti? Eu nunca fui uma travesti, nunca. Sempre gostei de ser do sexo masculino. Mas eu não ia me submeter a essas bobagens, de que homem vai até aqui, daqui para lá não é mais homem. Isso é bobagem.
Queríamos que você falasse sobre a música “Sorte” (1985), que tem uma energia diferente.
Conheço [o compositor] Ronaldo Bastos, conheci a gravação da Gal Costa, que era linda. E há poucos anos atrás me pediram para cantar “Sorte”, não lembro nem para o que era. Acho linda a música, bom astral. Faço um show com Leandro Braga, só voz e piano, e encerro com essa música, com “Sorte”. É muito positiva, muito otimista. Gosto de tudo que Ronaldo fez para Gal, as versões. Ele fez várias, “Chuva de prata” (1984)…
E você pode contar um pouco sobre as cidades em que morou, as passagens por elas e marcos na sua trajetória de artista? como foram essas passagens?
Brasília foi o lugar onde me aproximei de tudo que me interessava em termos artísticos. Quando cheguei em Brasília e era dono do meu nariz, fui em todas as coisas que meu pai proibiu. Fiz curso de teatro, uma peça de teatro, cantava em coral. Foi ali que tudo começou. Era 1961, Brasília não estava nem pronta. Quando pedi uma licença remunerada do hospital em que trabalhava, em 1966, fui para São Paulo. Fiquei dois anos, depois voltei, trabalhei mais dois anos, trabalhei até 1970, pedi outra licença sem remuneração. Quando eu tinha que voltar, já estava envolvido com os Secos & Molhados. Aí fiquei nesse dilema, volto para Brasília para continuar sendo funcionário público ou largo tudo para trás e vou me meter com a música? Fui lá e pedi demissão. Eles disseram: “Nossa, você é louco. Você tem oito anos de trabalho, vai largar sua aposentadoria?”. Que aposentadoria, gente? Tenho 22 anos, vou pensar em aposentadoria?
E sobre os espaços nos quais você cantou, o teatro Ruth Escobar, os shows nos teatros e nas casas de música, nos estádios, na penitenciária, no morro do Vidigal?
Nunca tive problema com relação aos espaços. Quando me chamaram para cantar no presídio, foi porque estava havendo um festival de música deles, e o que me chegou foi o seguinte: que tinham feito lá dentro uma enquete para escolherem um artista que convidariam, e eles me escolheram, não sei por quê. E fui, e adorei a experiência. Teve um cara da revista Veja que falou absurdos, tudo mentira, que saí de lá mostrando marcas roxas pelo corpo, que eles tinham me beliscado. Gente, esse homem é doente da cabeça, porque não aconteceu absolutamente nada. Só me trataram muito bem. Quando cheguei no presídio, achei que ia ficar em um lugar especial, reservado. Nada. Botaram meu camarim no meio dos presos. Toda hora batiam na porta, um preso querendo entrar, querendo falar comigo. Eu disse: deixa logo a porta aberta, que assim quem quiser falar comigo fala. Mas tudo tão natural, tão leve, e eles começaram a fumar maconha dentro do camarim. Eu disse: olha, isso não, vocês façam isso da porta para fora. Daqui a pouquinho vão dizer que sou eu que estou fumando, e não sou eu, então não quero levar fama sem proveito. Respeitaram, f icaram do lado de fora da porta, todos fumando. Lá dentro era tudo liberado. Era o Presídio Lemos de Brito, que não existe mais, né? Entendi que isso era normal lá dentro, que era tudo liberado mesmo. Mas o máximo que aconteceu foi isso. Para mim não foi um problema. Depois vi uma entrevista que fizeram com os presos nesse dia, as pessoas muito felizes. Um deles disse uma coisa assim: “Nós estamos presos aqui, mas a nossa cabeça é livre”. Achei muito interessante o cara falar uma coisa dessa. Estreei o show Bandido no Presídio Lemos de Brito. Antes de ir para o teatro, fiz no presídio.
Como eram as escolhas dos lugares onde você ia tocar?
Não tinha escolha. O Beco era uma coisinha assim, o próprio nome já dizia. Cantei para sessenta pessoas, e não tem problema. Tinha lugares assim, um hotel em São Paulo, o Baretto, cabiam oitenta pessoas. Fiz uma temporada lá. Já cantei para milhares de pessoas e já cantei para sessenta, e está tudo certo, faço igual. Não muda. Não me entrego menos por ser menos gente.
Como você vê a canja musical, suas entradas em show dos outros, ou a entrada de outros em shows seus?
Raramente faço isso. Entrei em um da Rita Lee no Canecão porque ela me chamou e eu não tinha como dizer não. Eu estava lá assistindo, e ela disse: “Ney, vem para cá”. Eu disse “ai, meu pai”, mas fui. Cantei “Bandido corazón” com ela, porque ela tinha me dado. Depois do Homem de Neanderthal [refere-se ao lp Água do céu – Pássaro, que começa com “Homem de Neanderthal”], Bandido foi o disco em que virei gente, deixei de ser bicho. Rita me deu “Bandido corazón”, e a guitarra quem gravou foi Roberto [de Carvalho]. Mas nos meus shows não tem [canja de outros artistas], só em pouquíssimas ocasiões me pediram que botasse alguém. Porque meu show é tão amarrado, tem um começo, um meio e um fim. Se qualquer pessoa entrar ali corta, então não tenho o hábito de botar pessoas cantando comigo no meu show. Canto com outras pessoas, como agora cantei com Criolo. Adoro fazer essas participações. Gosto porque não vou com toda a minha banda, vou com um músico da minha banda, dois no máximo, e mistura. Aí já não é mais o som do Criolo nem é o meu. Gosto de gravar com outras pessoas.
Você já fez a iluminação de shows de grandes artistas e dirigiu shows da Simone, Cazuza, Ana Cañas e outros. Como é a experiência de dirigir shows de outros artistas?
Já fiz muitas, mas faz tempo que não faço. Preciso ter um tempo livre, de poder ensaiar, estar junto na primeira semana depois da estreia, e não tenho tido esse tempo mais. Quando dirijo acompanho a primeira semana, porque é a hora em que você vai vendo a coisa acontecendo, se precisar mexer…
Como é a comunicação que você estabelece com as crianças, desde “São Francisco”, da Arca de Noé (1980)?
Para mim é ótimo. Imagina, quando vejo que alguma coisa que faço se refere ao universo infantil e vejo as crianças gostarem daquilo, beleza. Já pensei em fazer um show para criança, mas nunca realizei. Pode ser que ainda dê, pegar um repertório voltado para isso. Mas não é tatibitate, não. Eu fazia peça infantil, sempre respeitei o entendimento delas, sempre fiz como se fosse para adulto. Alguns anos atrás comecei a selecionar repertório, mas não levei adiante.
Quais shows de estreia lhe marcaram, nos Secos & Molhados e na carreira solo?
Todos me marcaram, porque em todos eu estava ali totalmente empenhado. O primeiro dia é sempre um nervoso. Tudo pode acontecer, cair um refletor em cima de você, qualquer coisa. Então, sempre é uma coisa, assim, que minha mão sua demais, sabe? Quando pego no microfone, minha mão está correndo suor pelo cotovelo. Depois passa. É só nos primeiros dias mesmo. Tem uma repercussão, e você fica ligado na repercussão daquilo, porque interessa saber de que maneira foi. É tudo muito parecido sempre, até hoje. Ensaio à exaustão, um mês, todo dia, quatro horas por dia. É muita coisa. Então chego com uma margem, não de segurança, mas de conhecimento do que vou fazer. Mas sempre tem a pira, sabe? Acho que isso nunca vai acabar, sempre será. Acho bom ter isso, porque nunca entrei achando que está tudo dominado. Não, não tem nada dominado.
Quando está em turnê, você já vai gestando seu próximo trabalho?
Às vezes sim, às vezes não. Às vezes, o acaso também interfere, me leva para outro caminho e não acho que posso abrir mão do que eu estou fazendo. Aí fico fazendo dois shows, como já fiz, com duas bandas. No comecinho do show de Cartola foi assim, estava fazendo um show com a Aquarela Carioca, iam lançar aquele livro de fotos do Luiz Fernando Borges da Fonseca, e eu tinha um acerto com a editora de que faria um show. Eles primeiro me pediram para botar um disco no livro, queriam botar O cair da tarde (1997). Eu disse: não, não quero botar um disco que já está pronto, quero fazer um. Já tinha cantado Cartola com Raphael Rabello, e decidi fazer um disco inteiro de Cartola. Fiz aquele primeiro cdzinho com poucas músicas. Tinha o compromisso de apresentar isso nas quatro cidades em que o livro seria lançado, um pocketzinho. Quando acabou o último show, em Brasília, já tinha uma proposta para voltar, para fazer num teatro. No final, tive que aumentar o show do Cartola e gravei um disco. Foi virando muito mais do que era, um repertório muito maior, fui aumentando e fiquei com duas bandas.
Como você lida com seu presente, em relação com o passado de tantas histórias significativas na história da música? Tem alguma coisa que você quer fazer e ainda não fez?
Não sei, porque ainda estou em movimento. Não paro muito para pensar nisso porque ainda estou fazendo. Ainda pretendo fazer, enquanto estiver vivo. Ah, eu quero fazer mais cinema. Não preencho ficha dizendo que sou cantor. Boto lá “artista”, para eu ser livre para fazer todas as coisas que me interessarem e que eu possa e entenda que possa fazer. Tem coisas em que não vou me meter, mas, se achar que posso, eu faço. Cinema me interessa muito. Porque eu queria teatro, queria ser ator, mas teatro me ocupa tanto quanto música, tem a temporada, isso tudo que tem na música também.