‘Nossa terra, nossa voz’: mostra de cinema retrata resistência dos povos frente a invasões
Do Haiti ao Mali, passando pelo Brasil e com foco na Palestina, mostra online e gratuita de cinema retrata “sequestro dos territórios” e luta dos povos
Mostra de cinema online e gratuita reúne filmes de diversos povos que resistem na luta por seu território. Com 13 filmes entre curtas e longa-metragens, “Nossa terra, nossa voz” tem curadoria de Carol Almeida e Kênia Freitas e chega nesta sexta-feira (04/07) na plataforma SPCine Play.

Cartaz de divulgação da mostra “Nossa terra, nossa voz”. (Foto: Reprodução)
A mostra é composta por obras audiovisuais que retratam invasões de territórios em processos coloniais espalhados pelo mundo, como no Haiti, nas aldeias Maxakali no Brasil, nas comunidades aborígenes na Austrália, nos campos agrícolas no Mali, dentre outros. Para além de uma denúncia das violências e violações de direitos, os filmes apresentam as resistências dos povos invadidos na luta por suas terras que, em última instância, é também uma luta por sua própria existência enquanto povo, identidade e ancestralidade.
“A colonização, a globalização, o capitalismo financeiro se baseiam no sequestro de territórios e na despossessão dos povos. Um processo em construção por alguns séculos. Nosso desejo nessa curadoria era unir as lutas mais diversas de povos por suas terras, em filmes que apostam nas consequências políticas e estéticas dessas reivindicações”, explica a curadora Kênia Freitas.
“Outra intenção em nosso gesto curatorial foi tentar pensar essas expressões políticas e estéticas do cinema a partir de territórios que, em comum, têm uma longa relação com violências coloniais. Quais as respostas em linguagem fílmica que diretoras e diretores da Palestina, da Colômbia, do Mali e de aldeias aborígenes na Austrália e aldeias indígenas no Brasil estão produzindo?”, completa Carol Almeida.
Um destaque especial é dado à Palestina, que está representada na programação em três filmes. Ouroboros (2017), de Basma al-Sharif, é uma homenagem à Faixa de Gaza e uma reflexão sobre os traumas causados pela ocupação territorial. Com estrutura fragmentária e desconexa, o longa se constrói a partir da premissa nietzschiana do “eterno retorno” e do conceito de “tempo perturbado” de Edward Said. Lançado anos antes do genocídio atual, nos convida a refletir sobre o ciclo de destruíção e renovação que se repete continuamente.

Destruição em Gaza. Reprodução de Ouroboros (2017), de Basma al-Sharif.
Como em Ouroboros, nas demais obras selecionadas a política transborda para a estética e a violação do direito à terra se expressa não somente no conteúdo, mas na forma fílmica. Segundo as curadoras, “a demanda pela terra e a afirmação da própria voz unem-se de forma inseparável em reivindicações políticas e estéticas”. Isto é evidente em Seu Pai Nasceu com 100 anos, assim como o Nakba (2017), obra na qual, diante da negação do retorno e impossibilidade de acesso ao território, a diretora Razan AlSalah recorre ao Google Maps para visitar a cidade palestina de onde sua família foi expulsa. O filme é um exemplo de subversão das limitações com o uso da criatividade que resulta em uma obra surpreendente.
Dentre os filmes brasileiros, figuram os curtas Estamos Todos Aqui (2018), de Chica Andrade e Rafael Mellim, sobre a expansão imobiliária e a retirada de uma moradora de sua casa, e Acercadacana (2010), de Felipe Peres Calheiros, que retrata a resistência de Maria Francisca frente à expulsão de 15 mil famílias de seus sítios no interior de Pernambuco a partir da valorização do etanol e expansão do latifúndio canavieiro nos anos 1990. Paralelamente, Chão (2019), de Camila Freitas, acompanha a ocupação de uma fazenda de cana-de-açúcar em Goiás pelo Movimento Sem Terra. Já Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! (2020), de Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, narra em primeira pessoa o impacto das invasões nas terras indígenas Maxacalis.
Também compõe a seleção o clássico do novo cinema latino americano, Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro (1981). Ensaio poético filmado ao longo de cinco anos, é um testemunho das articulações do Conselho Regional Indígena do Cauca, na Colômbia. O longa combina o registro documental e o encenado para apresentar a luta indígena pela recuperação de suas terras na região dos Andes. Segundo os próprios indígenas, é por meio do processo complexo de luta pela recuperação das terras que se pode garantir a recuperação de sua história e cultura. O longa foi realizado por Marta Rodríguez e Jorge Silva, nomes emblemáticos do cinema militante e documental latino-americano. Na época de seu lançamento, recebeu o Prêmio Fipresci da Federação Internacional de Críticos no Festival de Berlim e foi restaurado em 2019.
Ao reunir treze filmes de países variados, a mostra “Nossa terra, nossa voz” aproxima processos coloniais de sequestro e despossessão territorial e traça paralelos entre histórias de luta e resistência. É uma oportunidade de conhecer obras e narrativas de difícil acesso no Brasil e compreender como o cinema vem sendo usado historicamente como uma ferramenta de luta contra o colonialismo por diversos povos ao redor do mundo.
FILMES
A Concha que Chora (dir. Vincent Toi, Canadá, Haiti, 2017, 20 min)
Sinopse: Inspirado pela figura histórica de François Mackandal, famoso sacerdote e sujeito escravizado no Haiti do século XVIII, o filme faz uma elaboração poética sobre as marcas do passado colonial na sociedade haitiana.
Acercadacana (dir. Felipe Peres Calheiros, Brasil, 2010, 20 min)
Sinopse: Nos anos 1990, com a valorização do etanol e a expansão do latifúndio canavieiro, 15 mil famílias foram expulsas dos seus sítios na zona da mata de Pernambuco, por séculos ocupada por grandes latifúndios de antigos senhores de engenho. Mas bem ali no meio, criando um enclave de vontade de vida, Maria Francisca decidiu resistir.
Chão (dir. Camila Freitas, Brasil, 2019, 112 min)
Sinopse: Com mais de 600 famílias sem-terra, o filme acompanha a ocupação de uma fazenda de cana-de-açúcar em Goiás e as estratégias de resistência do movimento social.
Eles Vêm Aí! (dir. Ezekiel Reyes, México, 2018, 8 min)
Sinopse: O filme usa o poema “Los Muertos”, de Maria Rivera, para dar testemunho histórico de como acontecem discursos de normalidade em tempos de guerra. É um grito visual pela luta dos subjugados e das memórias que a sociedade finge não escutar.
Estamos Todos Aqui (dir. Chica Andrade e Rafael Mellim, Brasil, 2018, 20 min)
Sinopse: Rosa é expulsa de casa e precisa construir seu próprio barraco. Mas enquanto ela faz os seus corres para erguer qualquer teto, um projeto de expansão imobiliária é desenhado no território do maior porto da América Latina. O projeto, o trem, as falsas promessas de desenvolvimento avançam, não só sobre Rosa, mas sobre todos os moradores da Favela da Prainha.
Mãtãnãg, a Encantada (dir. Shawara Maxakali e Charles Bicalho, Brasil, 2019, 14 min)
Sinopse: Mãtãnãg segue o espírito do marido morto até a aldeia dos mortos, cruzando mundos sob a ótica espiritual Maxakali.
Nũhũ Yãg Mũ Yõg Hãm: Essa Terra É Nossa! (Isael Maxakali, Sueli Maxakali, Carolina Canguçu e Roberto Romero, Brasil, 2020, 70 min)
Sinopse: Os Maxakali narram, em primeira pessoa, o impacto da presença dos brancos em suas terras, guiados pelos yãmiyxop, espíritos ancestrais.
Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro (dir. Marta Rodriguez e Jorge Silva, Colômbia, 1981, 90 min)
Sinopse: Clássico do Novo Cinema Político Latino-Americano que registra a fundação do CRIC e a luta indígena por cultura, território e direitos.
Ouroboros (dir. Basma al-Sharif, França, Palestina, Bélgica, Catar, 2017, 77 min)
Sinopse: A premissa nietzschiana do “eterno retorno” se alia ao conceito de “tempo perturbado” da Palestina, em Edward Said, para mover esse filme em círculos onde todo fim é também um começo. Um tributo experimental à Gaza a partir dos seus escombros e da impossibilidade de pensar o tempo nos termos de passado, presente e futuro quando a máquina do progresso só consegue destruir o que se encontra diante dela.
Quando os Cães Falavam (dir. Karrabing Film Collective, Austrália, 2014, 34 min)
Sinopse: Enquanto um grupo de adultos indígenas discute sobre manter o seu conjunto habitacional ou salvar o seu território sagrado, seus filhos lutam para decidir como os lugares ancestrais (Dreaming) fazem sentido em suas vidas contemporâneas. O filme mistura documentário e ficção para produzir um drama reflexivo, porém bem-humorado sobre os obstáculos diários da pobreza estrutural e racializada e sobre a dissonância de formas narrativas culturais e sociais.
Seu Pai Nasceu com 100 anos, assim como o Nakba (dir. Razan AlSalah, Estados Unidos, Líbano, Palestina, 2017, 7 min)
Sinopse: Oum Amin, uma avó palestina, retorna à sua casa em Haifa a partir do Google Maps street-view, pois essa é a única maneira que ela tem de poder voltar ao seu lar. Onde está Amin nesse mapa? Onde estão as fraturas nesse mapa?
Um Filme Curto Sobre Crianças (dir. Ibrahim Handal, Palestina, 2023, 10 min)
Sinopse: Na Palestina ocupada, um grupo de crianças da Cisjordânia traça um plano mirabolante para conhecer o mar, enfrentando fronteiras reais e imaginárias com criatividade e coragem.
Xaraasi Xanne (Vozes Cruzadas) (dir. Raphaël Grisey e Bouba Touré, França, Alemanha, Mali, Senegal, 2022, 103 min)
Sinopse: A partir de arquivos raros, o filme narra a criação da cooperativa agrícola Somankidi Coura, fundada em 1977 no Mali por migrantes da África Ocidental. A história ilumina lutas ecológicas e utopias de retorno à terra no Sahel (que atravessa o norte da África do oceano atlântico até o mar vermelho).
SERVIÇO
Mostra: NOSSA TERRA, NOSSA VOZ
Curadoria: Carol Almeida e Kênia Freitas
Produção: Caprisciana Produções
Quando: a partir de 04/07/2025, ao longo de um ano
Onde: https://spcine.com.br/spcine-play/
Quanto: gratuita
(*) Nayla Guerra é Graduada em Audiovisual pela ECA-USP, Nayla Guerra é produtora cultural na Cinemateca Brasileira e organizadora do coletivo Cine Sapatão.