“Peruche é, não leve a mal
A grande campeã do carnaval”
Com sua voz rouca e simpática, Seu Carlão do Peruche recitou esse verso, em um dos tantos sambas-exaltação que gravou durante a vida, para a escola de samba que ajudou a fundar e amou por toda a vida. Esse amor é expresso em seu apelido. O Peruche que acompanhava Seu Carlão – nascido Carlos Alberto Caetano, em 11 de setembro de 1930 –, foi o grande companheiro do último cardeal do samba, que nos deixou no último 17 de fevereiro, cinco dias antes da sua escola desfilar no Anhembi, com um enredo que homenageou Seu Carlão – “Axé Griô! Carlão do Peruche, o cardeal preto do samba”.
Carlão, que viveu até os 94 anos, era a história viva do samba paulista. Nascido em Pirapora do Bom Jesus, local onde se desenvolveu o samba rural paulista, ou samba de bumbo, era o último dos que lá estiveram no começo de tudo. Ainda na década de 1940, fez parte de outro movimento cultural de suma importância para a comunidade negra paulista: o samba da Praça da Sé, conhecido como Batuque dos engraxates. Ofício ocupado, majoritariamente, pela população negra da cidade, dali surgiram figuras como Toniquinho Batuqueiro, Osvaldinho da Cuíca, Sinval e Leônidas, que, junto da Tiririca, a capoeira paulista, faziam samba em latas de graxa e caixas de madeira, usadas para apoiar os pés dos que ali lustravam seus sapatos.

Frequentador da Escola de Samba Flor do Bosque, e, posteriormente, integrante da Lavapés – a mais antiga escola de samba em atividade em São Paulo –, já estabelecido no bairro do Peruche, região de aglutinação operária, negra, e consolidada próxima ao bairro da Casa Verde, a “Pequena África paulista”, Seu Carlão, junto de Toniquinho Batuqueiro, Cachimbo, Dona Lele, Seu Zebu, Sr. Alcides, Hélio Cleto, Sr. Décio, Gilberto Bonga, entre outros, fundaram, em 4 de janeiro de 1956, o Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Unidos do Peruche.
A escola, que segundo seu Carlão “já nasceu grande”, usava instrumentos emprestados pelos times de futebol da região, relação comum entre o esporte e o samba em toda a cidade de São Paulo. O Peruche foi crescendo cada vez mais, conquistando cinco títulos do grupo especial em dez anos. Entre altos e baixos, como a perda de sua quadra, a necessidade de ensaiar na rua, os rebaixamentos, o Peruche, para além dos títulos e das notas – meras formalidades do carnaval –, se tornou uma das mais importantes agremiações da cidade, um símbolo de resistência e afirmação cultural, num tempo em que o samba, a tiririca e a cultura negra era perseguida de norte a sul do Brasil. Mas, de certa maneira, Seu Carlão transcende o Peruche, ainda que o nome o tenha perseguido por toda a vida.

(Foto: Reprodução / Tabuleiro)
Em 1968, quatro anos após o golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, os desfiles em São Paulo foram oficializados pela prefeitura, com recursos para que o festejo ocorresse com maior qualidade. Tanto os cordões carnavalescos quanto as escolas passaram a desfilar na Avenida São João, região central da cidade. Engana-se quem pensa que essa reivindicação veio em forma de doação pelo regime. Seis grandes nomes do carnaval paulista, com luta e enfrentamento diante do poder, foram os responsáveis por essa conquista. Xangô da Vila Maria, Pé Rachado do Vai-Vai, Madrinha Eunice da Lavapés, Inocêncio Mulata da Camisa Verde e Branco , Nenê da Vila Matilde e Carlão do Peruche, os responsáveis por essa grande mudança no carnaval paulista, passaram a ser conhecidos como os Cardeais do Samba, muito antes dos desfiles milionários e excludentes passarem a ocupar o Sambódromo do Anhembi, inaugurado em 1991. Essa mudança não trouxe uma mudança qualitativa para o carnaval, ao menos na visão dos mais velhos e mais velhas, que conduziam os cordões e as escolas pelas ruas. Seu Nenê, por exemplo, declarou em uma entrevista que “antigamente, as pessoas desfilavam para se divertir e acima de tudo defender a sua comunidade. Hoje não. O Carnaval se transformou num grande campeonato. Falta a irreverência de antigamente e o amor pelo pavilhão (bandeira) da escola”.
Uma disputa geracional, mas também sobre os rumos do carnaval, afastou muitos dos baluartes de suas agremiações. Seu Cartão se manteve firme, na avenida e na luta. No dia 22 de outubro de 2021, em meio às manifestações contra o então presidente Jair Bolsonaro, no auge da pandemia, Seu Carlão, por meio de suas redes sociais, convocou o povo às ruas, “pelo Fora Bolsonaro e pela democracia do samba”. Ele sabia, mais do que ninguém, das origens do samba, sua importância como resistência cultural, e como muitos, ao longo da história, tentaram se apropriar do ritmo para fins populistas.
Seu Carlão enfrentou as dificuldades e as vitórias de um homem do seu tempo. Ao mesmo tempo em que, diante da sua luta e seu gênio cultural, recebeu a alcunha de “Pai do samba paulista”, ele só teve a oportunidade de gravar um disco em 2022, ainda que, durante sua trajetória, tenha composto mais de 300 sambas.
A sua morte, simbolizando o fim, no plano físico, do grupo dos seis Cardeais do Samba, é uma enorme perda para o samba e o carnaval de São Paulo. Mas, como negros, e portadores da fé nos deuses de matriz africana, temos a certeza de que Seu Carlão ancestralizou, podendo estar presente entre nós, em cada roda de samba, cada desfile, em cada verso de partido alto, em cada pernada de Tiririca. Carlão fez do samba a sua vida, sua arma e seu escudo, e, com isso, ajudou a tornar a cultura do samba forte, resistente, ainda que muitos tentem vendê-la a qualquer custo.

Muito se contou sobre Seu Carlão, em vida e após o anúncio de sua morte, e um desses grandes esforços foi o podcast Memórias de Batuque, além da ótima entrevista, concedida à revista GQ, em fevereiro de 2024. Mas muito há de se falar ainda sobre Seu Carlão e sobre o samba de São Paulo, muitas vezes escamoteado, ignorado, até mesmo inferiorizado. Carlão, enquanto vivo, e agora, enquanto memória, nunca permitiu que isso acontecesse, e cabe aos seus discipulos manterem acesa a chama, tanto da sua cultura, quanto da sua resistência por um carnaval negro e popular. Em 2012, Seu Carlão recebeu a Medalha Anchieta da Câmara Municipal de São Paulo, e em dezembro de 2023, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo realizou um ato solene para homenagear o baluarte com a presença de lideranças políticas, artistas e historiadores. Essas formalidades institucionais são de extrema importância, mas nada se compara ao que Seu Carlão construiu nas ruas e avenidas.
Aos familiares, amigos, e ao povo do Peruche, deixo minhas condolências, com a certeza de que Seu Carlão cumpriu uma das mais importantes missões que poderia assumir. Como afirmou o historiador Bruno Baronetti, biógrafo de Seu Carlão:
“Carlos Alberto Caetano fez de tudo nessa vida, de engraxate, líder sindical grevista, operário, opositor do regime militar, mas sobretudo ficou conhecido por carregar o nome de sua comunidade, de sua gente consigo, era o Carlão do Peruche. Foi seu Carlão que asfaltou a avenida para o carnaval passar! Sua história e a do nosso carnaval são uma só, sendo ele a personificação dos seus caminhos e das lutas!”
Mo dúpẹ́ o, Seu Carlão do Peruche, o último Cardeal.
(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas. Escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira.