Conhecido por suas obras críticas ao capitalismo, o cineasta britânico Ken Loach, 88 anos, tem se dedicado ultimamente a retratar o empobrecimento da classe trabalhadora em seu país. No seu mais novo filme, “O Último Pub” (The Old Oak, 2023), repete a fórmula, mas sob uma perspectiva que ajuda a entender a recente explosão de ondas racistas.
Diferentemente do premiado “Eu, Daniel Blake” (2016)” e “Eu não estava aqui” (2019), nos quais Loach optou por analisar o conflito entre os de cima contra os de baixo, dessa vez o seu olhar se volta às tensões entre os próprios despossuídos, que lutam entre em si por recursos cada vez mais escassos. No filme, o embate se dá entre proletários ingleses arruinados por décadas de neoliberalismo e imigrantes sírios refugiados da guerra.
O estranhamento começa com o desembarque de foragidos em um bairro proletário e decadente de Durham, no nordeste britânico, provocando imediata hostilidade dos moradores. Tentando acalmar os ânimos exaltados, está TJ Ballantyne (Dave Turner), protagonista do filme. No meio daquela tensão, sai em socorro de uma jovem refugiada síria, Yara (Ebla Mari), que teve a sua câmera fotográfica quebrada por um dos rapazes da vizinhança. Aquele gesto de solidariedade é a semente para uma amizade que se desenvolverá ao longo do drama.
A história se passa, durante boa parte do tempo, no último pub do bairro, propriedade de Ballantyne, um solitário homem de meia-idade. Tal qual as casas da vizinhança, o local está caindo aos pedaços. Antes animado reduto dos trabalhadores mineiros, o clima por lá é de velório. Os clientes restantes são apenas velhos amigos quebrados, que se encontram todos os dias para beber, lamuriar quanto às suas vidas decadentes e resmungar sobre os estrangeiros recém-chegados.
Até os anos 80 do século passado, uma próspera categoria trabalhadora emergia da indústria do carvão, com sindicatos fortes e feitos gloriosos, como a famosa greve dos mineiros de 1984, fato histórico incorporado no roteiro de Loach. O pai de Ballantyne foi um dos grevistas, enquanto a sua mãe conduzia uma cozinha coletiva que alimentava os trabalhadores parados, cujos salários tinham sido cortados por ordem do governo. Funcionando nos fundos do pub, o espaço também servia à organização da luta e à sociabilidade de classe.
Mas estes bons momentos, décadas depois, viraram apenas retratos pendurados em uma parede mofada. Com a implementação de reformas neoliberais durante a gestão da conservadora Margaret Thatcher (1979-1990), a mineração foi privatizada, pulverizando empregos e direitos trabalhistas. Era a agonia do estado de bem-estar social que emergira depois da Segunda Guerra Mundial. O próprio Ken Loach retratou muito bem este fenômeno em “O espírito de 45” (2013). Desalentada e empobrecida, a classe trabalhadora passa a procurar culpados por sua desgraça. Os eleitos são os imigrantes.
Acusados de roubar empregos e absorver recursos orçamentários, tornando-se beneficiários de um sistema de solidariedade social que abandonara a velha classe operária local, os estrangeiros são vítimas de discursos racistas, supremacistas e xenofóbicos, alastrados pelas redes sociais. Os resultados são ataques violentos, como os vistos recentemente no Reino Unido, oportunamente antevistos pelo filme. Como bem se sabe, o ressentimento induzido pela decadência socioeconômica tem sido capturado pela extrema-direita.
O diretor indica, em sua obra, que os reais culpados não são outros miseráveis, mas um modelo que transfere aceleradamente renda de baixo para cima, do trabalho para o capital. Imigrantes e trabalhadores ingleses, apesar de culturalmente distantes, estariam do mesmo lado. O filme prega a união solidária da classe, que é retratada pela ideia de Yara de reativar a cozinha coletiva nos fundos do pub de Ballantyne. A iniciativa, contudo, encontrará forte resistência de antigos trabalhadores, que tudo fazem para sabotá-la.
O ponto alto do filme se deve ao retrato que Loach faz da questão econômica, ao mostrar que são a pobreza e a decadência social, e não somente o ideário fascista, que explicam a sedução da classe trabalhadora pela extrema-direita. Embora reconheça a força do racismo e da islamofobia, o cineasta rejeita a cartilha liberal de denunciar principalmente o “discurso de ódio” e as fake news pela captura ideológica, ou quem propaga essas narrativas, sejam pessoas simples ou um líder malvado, personagem que felizmente sequer existe no filme. Ao invés de eleger vilões, pessoalizando ou psicologizando o problema, o diretor responsabiliza o sistema capitalista.
Já o ponto fraco da obra é o tom melancólico e derrotista, comum em Loach, mas dessa vez um pouco exagerado. Não se trata, em si, de um problema artístico. Mas se o objetivo era gerar reflexão para a mudança, “O Último Pub” peca ao deixar ainda mais descrente quem sai do cinema. Até o ritmo do filme é contaminado, em vários momentos arrastado, por longos diálogos melosos e cenas deprimentes.
Outro incômodo é a personagem Yara, caricata e unidimensional, sempre “coitadinha” e “boazinha”. Para além de uma atuação fraca, suas falas são por demais piegas e forçadas para culpar o governo de Bashar Al-Assad, isentando os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e a OTAN pelo conflito na Síria. Afiado na crítica ao neoliberalismo, o diretor é incapaz de ligar a crise imigratória às relações imperialistas.
Não está entre os melhores filmes de Ken Loach, mas é bem articulado e certamente vale o preço do ingresso. Se esta for, como foi anunciado, sua derradeira criação, terá encerrado a carreira provando, novamente, que é possível emocionar o público com mensagens políticas.
O ÚLTIMO PUB
Nos cinemas | 1h 53min | Drama
Direção: Ken Loach | Roteiro Paul Laverty
Elenco: Dave Turner, Ebla Mari, Claire Rodgerson
Título original The Old Oak
(*) Susana Botár é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pelo mesmo programa.