O exílio é um fator constante na história humana. Mas, longe de ser algo natural, foi muitas vezes causado por guerras, fome, catástrofes de toda sorte e outras formas de violência vivenciadas em sociedades diversas. Alguns povos historicamente perseguidos, como os negros, judeus, ciganos, indígenas e, mais recentemente, os palestinos, carregam consigo a marca do não-lugar. Espaços historicamente ocupados por esses povos foram engolidos pela expansão do colonialismo, dos preconceitos raciais e étnicos, tornando esse exílio uma marca registrada da nova era que surgiu das entranhas das navegações.
Mas, no campo do socialismo real, também houve episódios onde o exílio e a ocupação se fizeram presente, resultado das contradições geradas no seio dessas novas formas sociais surgidas ao longo do século 20. Ainda que esse socialismo seja uma antítese da forma mercantil e capitalista, e, portanto, não carregue em sua teoria e prática o sentido de ocupação e expansão colonial, mudanças drásticas ocorridas em países do chamado “bloco do leste”, na segunda metade do século 20, ocasionaram uma série de conflitos, que até hoje ressoam nessas regiões. O revisionismo de certas figuras de destaque no socialismo real, as contradições com o imperialismo ocidental, e o rebaixamento da política comunista foram alguns dos fatores que geraram conflitos famosos, como a invasão da Hungria em 1956, a breve Guerra sino-vietnamita de 1976, entre outros atritos dentro do bloco socialista.
É sobre um pequeno fragmento dessa relação entre política e exílio que a exposição de Josef Koudelka, no IMS São Paulo, nos fala – a partir de imagens feitas por um “fotógrafo sem lar”. Ainda um engenheiro formado pela Universidade Técnica Checa em Praga, em 1961, decidiu abandonar a carreira, em 1967, para registrar a vida do povo Romani, tentando compreender não apenas a sua cultura itinerante, mas, também, a oposição de diversos estados – muitas vezes, materializado em perseguição e morte, como se deu durante o regime nazista –, ao modo de vida dos povos ciganos. Koudelka não esperava, no entanto, que ele mesmo fosse se tornar um exilado.
Dois dias após retornar ao seu país, a Tchecoslováquia, após um trabalho na Romênia, se deparou com tanques de guerra e soldados soviéticos, e de alguns países do Pacto de Varsóvia, desfilando pelas ruas de Praga durante a chamada Primavera de Praga, num ato encarado, do lado soviético, como a defesa do povo e do socialismo tchecoslovaco, e, do outro, como uma invasão, um ato de rompimento do direito de autodeterminação tão defendido pelos sovietes à época da revolução de outubro. Com a discussão em aberto, indo desde a tese do chamado “social-imperialismo”, defendida por algumas alas do movimento comunista, ou pela análise de Ludo Martens sobre o avanço do anticomunismo e da social-democracia no leste orientado pelo Ocidente, fato é que a chamada invasão, apesar de ter durado, oficialmente, apenas dois dias, e apesar do número de baixas não ter ultrapassado o de 300 pessoas, levou o país de Koudelka a lidar com a presença militar estrangeira até 1991, causando grande trauma na população.
Josef esteve lá para registrar a invasão pela ótica do seu povo, e sua política de não-violência frente ao inimigo, coordenada pelo Partido Comunista da Tchecoslováquia, na figura de Alexander Dubček. Os atos de resistência se basearam, em grande medida, pela indiferença da população ao exército ocupante, ainda que alguns pequenos conflitos armados tenham ocorrido. As fotos de Koudelka retratam essa política de indiferença, o sentimento nacional inflado entre a população, mas, principalmente, o medo da guerra, que provocou o exílio de 70 mil cidadãos tchecoslovacos, número que chegaria a 300 mil até o ano de 1989, quando a chamada Revolução de Veludo irrompeu por todo o bloco do leste.
Com isso, Josef Koudelka passa, como um exilado, a registrar outros exilados pelo mundo. Com o sentimento de não mais pertencer a lugar algum, o fotógrafo percorreu diversos países, como Irlanda, Portugal, Espanha, Grécia e França, à procura de povos ciganos, registrando sua vida, seus costumes, e as dificuldades do não-pertencimento nacional. Sua fotografia, sempre buscando o sujeito humano, muitas vezes retrata a ausência, em alusão à sua condição de apátrida, trazendo elementos como ruas vazias, objetos comuns, sombras, ou pequenos fragmentos de pessoas, quando não a completa ausência delas.
As fotos de Koudelka sobre a invasão da Tchecoslováquia, bem como sua série sobre os exilados, ficaram escondidas por muito tempo, tendo encontrado na lendária Agência Magnum um lugar seguro para serem guardadas e publicadas, ainda que sob o pseudônimo “ P.P”(“Prague photographer“ ou “Fotógrafo de Praga”), evitando, assim, qualquer tipo de perseguição contra o fotógrafo. O exílio e a não-identidade de Koudelka se fez presente até mesmo na premiação Overseas Press Club Robert Capa Gold Medal, de 1969, quando o fotógrafo foi o vencedor, sendo anunciado como o “fotógrafo tcheco anônimo”.
Conseguindo asilo político na Inglaterra, e, posteriormente, na França, Josef se tornou, em 1971, um fotógrafo oficial da Magnum, onde seguiu desenvolvendo seu trabalho, e pôde então retomar o seu nome e uma parte da sua identidade.
Apesar das discussões acaloradas, das recentes aberturas de documentos e produções acadêmicas sobre os eventos ocorridos entre os anos 1950-1991, tanto na União Soviética quanto nos demais países do bloco socialista, a exposição Exilados serve como mais um documento histórico de uma época em que o mundo sacudiu todas as verdades até então intocadas – verdades que, até hoje, inflamam não apenas os debates sobre o socialismo, mas impactam as políticas nacionais pela Europa, numa era em que a extrema-direita, sob a bandeira do nacionalismo e da anti-imigração, ganham força no Velho continente.
Exposição KOUDELKA – Ciganos, Praga 1968, Exílios
Data: 18 de maio a 15 de setembro de /2024
Local: IMS São Paulo (Av. Paulista, 2424 – Bela Vista, São Paulo – SP, 01310-300)
Não recomendada para menores de 12 anos. Entrada gratuita.