Partida, documentário de Caco Ciocler lançado em 2019, desdobra-se ao longo de uma viagem para o Uruguai. Uma trupe de artistas, um ônibus, uma jornada de 14 dias e um ávido desejo pela utopia, a construção de uma partida cinematográfica em todos os seus possíveis arranjos semânticos: partida de sair, ir embora, chegar, dar início a algo, jogar, cortar algo ao meio. Partida como o feminino de partido, organização política e agora lúdica. Um filme que se diz muito, diz muito de si, exalta-se em suas técnicas produtivas e no desvelo de seus modos se fazer. Equipamentos, bastidores, orientações misencênicas, tudo é discurso para demonstrar o processo de sua urdidura e conceituação.
O documentário é caracterizado principalmente pela retórica em demasia, um suporte cansativo mas fundamental como eixo de contradição que fortalece a reviravolta – uma espécie de “elogio da escuta” conclamado pelo ex-presidente do Uruguai, José Mujica, nos momentos finais.
Será, portanto, de grande eficácia o imenso e volumoso palavrório de Georgette (persona/ personagem/ personalidade encarnada por Georgette Fadel) que configura um dos símbolos mais recorrentes da esquerda branca de classe média: o artista, intelectual orgânico, ativista da criatividade, que enxerga a vida social e política em atos de sobrevoo, distanciando-se acima e à frente inclusive do povo do qual se diz defensor.
Nos extras do filme, a incômoda relação entre patroa e empregada, Georgette e Vera, demonstra os mecanismos de uma opressão velada e intrínseca ao trabalho doméstico e à localização social de corpos negros.
Além de Vera, o motorista do ônibus, cujo nome custei, em vão, a encontrar nas fichas técnicas disponíveis, é o único negro presente na viagem. Pelo que insinuam as imagens, ele conduz pacientemente o grande coletivo até o Uruguai, e a discrição de sua presença – quebrada em uma curta cena na qual trava uma conversa com Georgette sobre política e ambições profissionais – parece falar aos olhos do espectador como uma sinalização letal: faltam pessoas sociologicamente não-brancas nessa ágora, falta a este debate móvel uma parcela importante e fundamental de representação do povo brasileiro.
O silêncio do povo, ou desse aspecto de diversidade que meu comentário sugere, é sempre atravessado também pelas opiniões de Léo (Léo Steinbruch), o antagonista de Georgette, por assim dizer, uma figura aburguesada, bastante comunicativa, que confronta a visão comunista de sua interlocutora com percepções de mundo autorreferentes e totalmente baseadas na prática normalizada do privilégio e do poder.
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Documentário dirigido por Caco Ciocler é caracterizado pela retórica em demasia, suporte cansativo mas fundamental como eixo de contradição
De vaidades os dois pólos da discussão estão repletos, talvez por intencionalidade narrativa ou até mesmo pela aura que se fabrica no entorno dos integrantes da trupe quando as câmeras, em sua aproximação, passam a comandar a espontaneidade da maioria dos momentos, o que não se traduz necessariamente como um problema, mas um efeito continuamente sublinhado que fica mais e mais aparente à medida que os dias passam dentro do ônibus. De certa forma, cria-se um estado de embate de egos ao longo da viagem que acaba em autofagia, as ideias vão se consumindo ali mesmo, ainda que sua pertinência avente termos de reflexão transformadores. O recurso soa como evidenciação estética de que o debate conciliatório na política, invariavelmente, guia seus atores para o topo de um platô pretensamente democrático sustentado por sujeitos invisíveis, inaudíveis, Veras e motoristas sem sobrenome.
A imposta combustão dos argumentos, os de esquerda defendidos por Georgette e os de direita defendidos por Léo, levam o espectador a uma síntese interessante sobre a função da arte (se é que podemos submeter aqui a experiência artística a uma tese de funcionalidade): o filme se desenreda diante de nós como um campo de criação e aprendizado onde tudo que é concebido como verdade ou teorização da realidade se dissipa em face das demandas presentes materiais, bem como preconizou Karl Marx em O Manifesto do Partido Comunista:
“Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas”.
Em um áudio de Georgette, a constatação do fim da viagem junto ao fim da utopia (ou nascimento de uma outra utopia?) se qualifica algo melancólica, talvez esse momento abrigue uma fagulha, a síntese, da jornada. É quando o cinema acaba que a vida se reinicia. Essa porção de gestos, mortes, desejos, contradições, opressões, temporalidades e acasos: a vida, reiniciada, torna-se passível de transformação.