I May Destroy You, uma segunda chance de ser mulher
Efeito do flash usado como revelação traz à tona a discussão sobre o enfrentamento do estupro como uma forma de resistência às marcas que permanecem
Do primeiro episódio de “I May Destroy You”, seriado criado pela atriz, roteirista e diretora inglesa Michaela Coel, pode-se dizer que configura por si uma experiência de curta-metragem, não porque o desdobramento da série não valha à pena, mas é valiosa a primeira aparição da personagem Arabellaa Essiedu, escritora de Gana radicada na Grã-Bretanha, e de seu empenho em terminar o manuscrito do próximo livro durante a madrugada.
Ao decidir descansar um pouco do trabalho, exatamente uma hora contada no cronômetro do celular, Arabella encontra-se com um amigo em um pub. Desse ponto, os eventos caminham como numa noitada comum regada a álcool e drogas entre camaradas.
Um corte bruto dá seguimento ao pós-festa: Arabella acorda no estúdio de trabalho de onde havia escapado horas antes, ela segue escrevendo para entregar o material aos seus agentes literários às seis da manhã, reúne-se com eles às dez e é só nesse momento que descobre um sangramento no lado direito de sua testa – essa pista é o disparador para que a escritora tente preencher as lacunas de uma memória erodida pelos excessos. Antes disso, no entanto, precisa dormir um pouco, pede licença da reunião com os agentes e dirige-se para casa, onde vive com um amigo.
Ao tocar na maçaneta do próprio quarto ele surge, o flash: a imagem de meio segundo na qual Arabella vê um homem com as calças abaixadas movimentando-se sexualmente, da perspectiva de baixo. Na recordação instantânea a câmera torna-se o olhar de alguém que sofre o ataque desse homem. Meio segundo. Corta para Arabella atônita. O episódio se encerra.
Logo, nos demais capítulos, outras histórias se unem ao mote principal em que a personagem se refaz pouco a pouco, como montasse um quebra-cabeça desfalcado de suas peças.
O flash é um fenômeno comum em condições pós-traumáticas, não raro torna-se a única referência para as vítimas do estupro de vulnerável. Assim como Arabella, as vítimas podem ser drogadas por terceiros, ou mesmo ter feito uso de quantidades de álcool ou narcóticos capazes de causar fragilização da consciência e do poder de discernimento, é nesse momento que o agressor vê a oportunidade de se apossar do corpo da vítima, extraindo-lhe a humanidade, baseado na certeza de que ela não se lembrará do acontecido.
Em “I May Destroy You” a escolha pelo efeito do flash como uma espécie de revelação do mal trágico traz à tona a discussão sobre o enfrentamento da experiência do estupro como uma forma de resistência à moral social e às marcas residuais que permanecem timbradas na pele, nas roupas e na memória.
O corpo é, ao mesmo tempo, alvo da violência e cena do crime – o terror dessa justaposição simbólica, talvez, seja um dos motivos que levam grande parte das vítimas de estupro a se desfazerem de forma intuitiva e automática de roupas íntimas usadas no momento do ataque.
Divulgação/ Laura Radford / BBC/Various Artists Ltd and FALK
Em ‘I May Destroy You’, Michaela Coel interpreta Arabellaa Essiedu, escritora de Gana radicada na Grã-Bretanha
O movimento de soterrar recordações também verifica-se como um dispositivo psíquico muito recorrente nas vítimas. Arabella volta para o trabalho depois do estupro, dá prosseguimento ao cotidiano sem traduzir em suspeita os fragmentos da noite anterior: a tela do celular trincada, a estranheza do amigo que em tese teria lhe feito companhia, o insistente sangramento na testa.
Mesmo o flash do homem de calças abaixadas não gera desconfiança num primeiro momento, a escritora acredita tratar-se de uma “memória inventada” e busca explicações esdrúxulas na internet.
A interpretação de Michaela Coel aviva-se pela espontaneidade e pelo tom certeiro no sintoma de negação, para a personagem é mais fácil pensar que aquele homem é um fenômeno aleatório de imaginação pois, com certeza, caracterizá-lo como um ente vivo, social e real faz-se tarefa absolutamente insuportável. Entretanto, somente na aceitação do insuportável é que o sentimento de reparação e justiçamento para a vítima pode tornar-se possível.
Se por um lado o flash é uma sequela torturante, por outro também se apresenta como mecanismo autocuidadoso do corpo alertando que algo está errado, é como uma reminiscência de luz que se move entre os escombros, exatamente para que seja estagnado o quase imperceptível processo de ruína psíquica que sucede a violência sexual.
Isso parece dizer que o desejo de não lembrar, de esquecer, de apagar o ato de violência, que em geral costuma se manifestar como pulsão imediata das vítimas, pode ser a semente de um adoecimento profundo a longo prazo; lembrar, no caso do crime de estupro, é gesto doloroso mas importante e o corpo sabe disso. O flash – sob essa hipótese – seria antes de mais nada uma intenção orgânica de cura.
A violência sexual nunca se encerra no ato propriamente dito. Em “I May Destroy You” essa é a premissa básica responsável pela irradiação da trama. Se no primeiro episódio o impacto da possibilidade de um estupro surge como eixo central da narrativa, nos demais o processo é de resposta e reação ao evento.
Arabella busca fazer denúncias e tornar sua questão pública para que outras mulheres possam sentir-se fortalecidas a fazerem o mesmo, a transgressão do silêncio e da culpa e a mobilização do trauma privado da violência sexual e de gênero para os quadros coletivos revelam-se valores substancialmente éticos na trajetória da protagonista e de seus companheiros, como se naquele pequeno núcleo de relações Arabella tencionasse fundar um mundo outro, no qual é capaz de renascer da morte simbólica, racionalizando a tragédia produzida por um terceiro, um agressor, a fim de ressignificá-la humana e politicamente, de modo a conceder com generosidade a si mesma o merecido descanso e uma segunda chance de ser mulher.