Terça-feira, 13 de maio de 2025
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Se 1971 foi o ano em que a música mudou o mundo, 1995 foi, provavelmente, um dos anos mais impactantes para o rap. É uma data digna de nota pois, em 2025, completam-se 30 anos desse período mágico e trágico para a cultura hip-hop. Se no Brasil o gênero ainda tentava se estabelecer de forma paralela à grande mídia e indústria da música – um desenvolvimento quase marginal, alheio à economia e à cultura predominante –, com alguns poucos lançamentos de impacto, como os discos de estreia dos grupos De Menos Crime e Facção Central, o mesmo não se pode dizer sobre a cena nos Estados Unidos, a meca do gênero.

Após a transição do rap em Nova York para um gênero mais político e liricamente elaborado, os anos 1990 viram o lançamento da imensa maioria das obras-primas do gênero. Discos como Illmatic (Nas) e The Chronic (Dr. Dre) subiram o nível de produção do rap, e as grandes gravadoras estavam se estabelecendo como potências econômicas e culturais no movimento hip-hop. Duas delas, a Death Row Records, de 1991, fundada pelo magnata Suge Knight e o lendário produtor Dr. Dre, e a Bad Boy Records, de 1993, fundada por Sean Diddy Combs, eram os grandes nomes de um rap que saía de um lugar marginal e começava a chegar nos lares das famílias norte-americanas, movimentando milhares de dólares e assinando contratos milionários com as grandes promessas da época. Em março de 1995, o rapper Tupac lançou o clássico Me Against the World, pela Interscope Records, enquanto ainda cumpria pena por um caso de agressão sexual. Tudo mudou quando Suge Knight, percebendo que Tupac era um pote de ouro, devido sua qualidade como rapper, decide pagar a fiança do rapper, avaliada em 1,4 milhões de dólares, e libertá-lo da prisão. Em troca, Tupac assinou um contrato com Suge, passando a fazer parte da Death Row Records, que já tinha sob suas asas Snoop Dogg, Tha Dogg Pound, e um álbum de 3x platina. O contrato previa o lançamento de três álbuns, e Tupac, no final de 1995, entrou no estúdio para gravar All Eyez on Me, lançado em 1996 – um dos maiores discos da história do rap. Já do lado leste dos Estados Unidos, o rap se movimentava em diversas frentes, mas após o lançamento de Illmatic, com Nas ocupando o posto de rei de Nova York em 1994, o jovem Notorious Big logo tomaria o trono em 1995, o ocupando até sua morte, em 1997.  Um ano antes, Big lançou seu único disco em vida, ironicamente chamado Ready to Die (Pronto pra Morrer, em tradução literal), pela gravadora de Diddy. O disco é outro marco do hip-hop, presente em qualquer lista de cinco melhores discos de Nova York, ou mesmo dos Estados Unidos. 

Após o lançamento de Illmatic, com Nas ocupando o posto de rei de Nova York em 1994, o jovem Notorious Big logo tomaria o trono em 1995, o ocupando até sua morte, em 1997. <br>(Foto: Scott Beale / Flickr)
Após o lançamento de Illmatic, com Nas ocupando o posto de rei de Nova York em 1994, o jovem Notorious Big logo tomaria o trono em 1995, o ocupando até sua morte, em 1997.
(Foto: Scott Beale / Flickr)

Ambos, Tupac e Big – que, num passado pouco remoto, eram grandes amigos –, se viram envolvidos em uma disputa que terminaria com morte de ambos – ainda que muitas outras causas sejam apontadas –, e num dos momentos mais sangrentos do rap.

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Apesar das tensões entre os dois lados do mapa terem início em meados de 1991, até então ainda eram tensões discursivas. Tim Dog lançou a faixa Fuck Compton, cidade do lendário grupo N.W.A. Era uma forma de tentar retomar o posto de meca do rap para Nova York, que havia sido retirado da cidade pelos rappers da costa oeste, mais especificamente no Gangsta Rap e seu sucessor, o Gangsta Funk. Fuck wit Dre Day, uma das mais aclamadas faixas do clássico The Chronic, de 1992, foi a resposta de Snoop Dogg, Dr. Dre e da Death Row para seus inimigos em Los Angeles (“Se você mexer com o Dre, mano, você tá mexendo com a Death Row”), e para Tim Dog. Mas foi em 1995 que a tensão escalou. Após considerar Who Shot Ya?, lançada naquele ano, como uma provocação de Big – Tupac havia sido assaltado e baleado em novembro de 1994 –, Tupac iniciou uma guerra contra todos os rappers de Nova York.

 

Nas, Mobb Deep, e claro, Notorious Big; todos entraram na mira do furacão Tupac, ainda que a faixa tenha sido gravada antes do atentado, e Big tenha declarado que a faixa não fazia referência ao ocorrido com Pac. O Source Awards de 1995 ocorreu no dia 3 de agosto, no Madison Square Garden, Nova York. A premiação foi bastante vantajosa para Nova York, visto que, de todas as categorias, apenas duas ficaram nas mãos da costa oeste (Snoop Dogg como Artista Solo do ano, e Dr. Dre como Produtor do Ano), enquanto Wu-Tang Clan e Craig Mack venceram nas categorias Grupo do ano e Single do ano, respectivamente, e Big ganhou nas categorias Novo Artista do ano, Letrista do Ano e Álbum do Ano, os prêmios mais cobiçados da noite. Mas todos esses prêmios foram coadjuvantes de uma noite em que o ar cheirava a sangue. De ambos os lados, leste e oeste, Bad Boy e Death Row, houve muitas provocações, que ajudaram a inflamar os ânimos para uma briga que ainda sobrevivia por meio das letras.

Suge Knight afirmou que “qualquer artista que queira ser um artista e continuar sendo uma estrela, e não queira — e não precise se preocupar com o produtor executivo tentando aparecer nos vídeos, nos discos, dançando — venha para a Death Row!”, uma clara indireta a Sean Diddy. Snoop Dogg, após as vaias recebidas por Dre ao receber o prêmio, questionou: “A Costa Leste não tem amor por Dr. Dre, Snoop Dogg e pela Death Row?”, numa aparente tentativa de apaziguar os ânimos, atitude seguida pelos apresentadores da premiação, como por outros rappers, como Diddy, ao afirmar que estava “muito orgulhoso do Dr. Dre, da Death Row e de Suge Knight por suas realizações” e que “todo esse conflito entre Leste e Oeste precisa acabar”.

Fato é que o Source Awards foi mais gasolina numa briga que não parava de escalar, e chegou num ponto de inflexão quando Tupac, em 1996, lançou Hit ‘Em Up, provavelmente a mais violenta diss da história do rap, direcionada para Big, Diddy, Lil Kim, Mobb Deep, Junior M.A.F.I.A. e toda a Bad Boy Records. O resultado de toda essa tensão foi o assassinato de Tupac, em setembro de 1996, e de Big, em março de 1997. Ainda hoje não se sabe quais foram os verdadeiros mandantes e executores dos crimes, e muitas teorias da conspiração envolvem ambas as mortes, além de investigações que ligam as polícias de Los Angeles aos crimes. Mas o clima gerado por essas tensões entre as gravadoras e seus artistas contribuíram de forma significante para o fim trágico de dois dos maiores rappers da história.

 

Mas, sem cair no falso moralismo sobre a questão da diss no rap, o fato é que esse tipo de disputa sempre movimentou o rap, e nem sempre ocasionou maiores problemas, como no caso de Jay-Z e Nas. Muito se falou sobre as diss quando Kendrick Lamar e Drake tentaram resolver suas questões através da música, em 2024. Esse tipo de música também pode ser um momento prolífico para as disputas naturais dentro do hip-hop, movimento que, de certa forma, ocupa o espaço das sangrentas disputas entre gangues no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, e absorve esse tipo de rivalidade em sua construção.

Mas nem tudo se resumiu a guerras, mortes e diss em 1995. Ainda no Source Awards, dois jovens de Atlanta, cidade do sul dos Estados Unidos, se destacaram. Na época, o sul era mal visto nas duas costas do país, e seu rap era bombardeado com chacotas sobre o sotaque e o estilo de música sulista, enquanto, como rimou Jay Electronica, “os caras de Nova York chamavam os rappers sulistas de idiotas, mas roubavam nossa gíria”. Ao vencer o prêmio de Grupo revelação do ano, a dupla André 3000 e Big Boi, membros do Outkast, enfurecidos com as vaias recebidas pelo público, declararam: “O sul tem algo a dizer”. Nos anos seguintes, o Outkast lançaria quatro discos clássicos – ATLiens (1996), Aquemini (1998), Stankonia (2000), Speakerboxxx/The Love Below (2003) –, se estabelecendo como um dos maiores grupos de rap de todos os tempos, e, na minha opinião, o grupo com a discografia mais sólida do gênero.

Foi também em 1995 que Nova York reafirmou seu papel de vanguarda no rap. Somente neste ano, foram lançados Only Built 4 Cuban Linx, The Infamous, Liquid Swords, Dah Shinin’, Return to the 36 Chambers: The Dirty Version, obras monumentais do gênero, além de outros ótimos discos. Em Los Angeles, o The Pharcyde surgia com um rap diferente do Gangsta Funk, com o clássico Labcabincalifornia, abrindo caminho para que outros rappers da cidade que não produziam um som mais gangsta, como é o caso de Madlib, pudessem emergir.

30 anos depois, podemos observar o legado de 1995 de uma distância mais segura. Se, por um lado, o rap percebeu que seu verbo poderia chegar num lugar perigoso, influenciado por fatores externos à música, mas internos na realidade dos produtores e rappers, foi também um ano em que o rap do sul recebeu maior atenção, evento que, anos depois, ocasionaria uma mudança do eixo de produção do rap, saindo de Nova York e Los Angeles e indo para Atlanta, Memphis, Houston, e outras cidades do sul dos Estados Unidos, que se tornou o grande polo de produção e inovação do gênero. Nova York mostrou porque ainda era a meca do rap, trazendo desde o rap hardcore do Mobb Deep, as letras cheias de influências do Kung-Fu e da religiosidade islâmica do Wu-Tang Clan, até as batidas mais suaves e grooveadas do Smif-n-Wessun.

30 anos depois, o rap é o gênero mais ouvido no mundo, com uma indústria bem estabelecida nos Estados Unidos, e relativamente estabelecida no Brasil, além de grande popularidade em outros países, como França, Inglaterra, e um florescimento do hip-hop numa Palestina ocupada. Entre disputas violentas ou líricas, 1995 foi o ano do rap, e hoje podemos apreciá-lo como um divisor de águas que merece atenção.

(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas. Escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira.