O filme Cidade; campo chega aos cinemas brasileiros depois de uma trajetória premiada em importantes festivais. Em sua estreia mundial, recebeu o prêmio de Melhor Direção, para Juliana Rojas, na principal mostra paralela do Festival de Berlim, a seção Encounters. Em sua estreia nacional, na 52ª edição do Festival de Cinema de Gramado, foi escolhido como melhor filme de longa-metragem brasileiro pelo Júri da Crítica e recebeu o Kikito de Melhor Atriz para Fernanda Vianna.
Cidade; campo segue um traço que Juliana desenvolve desde o começo de sua carreira, ainda em seu primeiro curta, codirigido por Marco Dutra na graduação em audiovisual na Universidade de São Paulo, O lençol branco (2004), selecionado para a mostra Cinéfondation do Festival de Cannes, ou ainda Um ramo (2007), O duplo (2012) e As boas maneiras (2017). Em seu longa recém lançado, o som grave e a fotografia azulada e escura que permeiam todo o filme edificam uma atmosfera tensa e misteriosa. Mais ainda, certas “aparições” fantasmagóricas e rastros sobrenaturais inserem Cidade; campo no bojo de uma filmografia sólida e com estilo bastante autoral, que consolida cada vez mais o nome de Juliana Rojas no cinema fantástico brasileiro.
O filme se constrói a partir de perdas que motivam recomeços. Joana (Fernanda Vianna), pequena produtora rural, busca reconstruir sua vida em São Paulo depois de perder tudo com o rompimento da barragem de Brumadinho. Seu sofrimento contido, em uma atuação minimalista, carrega a dor do luto por um lugar que nunca mais será como antes. Mais do que os bens materiais, trata-se da perda de um espaço simbólico e de um estilo de vida tradicional, ligado à terra e aos animais. A chegada na cidade não poderia ser menos brutal para alguém que, sem escolhas, se torna uma refugiada ambiental.
Nesse cenário de profunda dor, abre-se também uma fresta para o encontro – tanto com sua irmã (Andrea Marquee) que Joana não vê há anos (o detalhe da diferença do sotaque mineiro e paulista é bastante revelador de um afastamento geográfico de longa data), como com o neto dela (Kalleb Oliveira), de quem Joana se aproxima gradativamente. As diferenças geracionais e culturais com o garoto da cidade e a tia-avó que vem do campo são evidentes, mas os dois vão pouco a pouco se interessando e se adaptando com a realidade um do outro. “Gordo”, como é chamado, ajuda Joana a utilizar aplicativos para conseguir bicos e ela o ensina sobre as plantas e os animais.
Uma outra história sem conexões diretas com a primeira se desenvolve com Flávia (Mirella Façanha) e sua namorada Mara (Bruna Linzmeyer), que escolhem migrar para o campo após a morte de seu pai. Inicialmente deslumbradas, romantizam aquela vida, já contaminada também pela destruição. Em uma pequena propriedade rural, rodeada de soja por todo lado, nada cresce, tudo cheira à morte. Aos poucos aprendem que é preciso pedir licença. São duas histórias que não se cruzam narrativamente, mas dialogam com um universo comum de perdas, lutos e encontros. Juntas constroem um arco de passagem da cidade para o campo, da violência humana com a natureza, para um estado de respeito com a mata e os seres da floresta.
Sem dúvidas, o momento no qual o filme estreia no Brasil infelizmente não poderia ser mais oportuno. Se o medo e a tensão ao longo da obra são construídos muitas vezes no contato das personagens com a natureza, ironicamente o sobrenatural parece ser as próprias ações humanas, ou suas consequências. Assistir o filme em São Paulo no dia em que a cidade registra uma das piores qualidades de ar do planeta e relembrar o rompimento criminoso da barragem em Brumadinho é aterrorizante. Por sua vez, é angustiante ver a casa das personagens sendo invadida pela água de uma chuva incessante poucos meses após inundação histórica do Rio Grande do Sul. A atmosfera tensa da obra é também um reflexo dos tempos atuais, da aflição de viver em um mundo onde as mudanças climáticas já são uma realidade cada vez mais concreta e ameaçadora à continuidade da vida na Terra. Mesmo em um filme fictício de fantasia e horror, o que há de se temer são as próprias ações humanas – é o cinema em tempos de fim do mundo.
Título: Cidade; Campo (Original)
Ano: 2024
Direção: Juliana Rojas
Estreia: 29 de Agosto de 2024
Duração: 120 minutos
Gênero: Drama