A discussão sobre os rumos do hip-hop no Brasil segue cada vez mais acalorada. O que, em sua forma, parece uma mera disputa entre os que seguem no underground em contraposição do que se tem produzido no mainstream, pode, na verdade, ter uma essência política, e uma preocupação sobre como o poder do discurso do rap tem sido utilizado, em uma época em que a esquerda tem ido cada vez mais para a direita, em suas inúmeras concessões e no rebaixamento de uma linha realmente popular. Com o aquecimento do mercado brasileiro de rap, fator que vem ganhando força há, pelo menos, uma década, alguns dos ressentimentos são, na verdade, reivindicações justas de como o modelo de plataformas de streaming, junto da crescente dominação de gêneros periféricos pela grande indústria musical, tem fortalecido não apenas uma estética, mas uma forma de verbalização política cada vez mais individualista e neoliberal.
Não há uma hegemonia desse discurso, afinal, o rap segue em disputa, como todos os demais campos da cultura. Mas existe um sentimento de que o rap, em certa medida, não tem mais reivindicado as aspirações populares, e até mesmo de que tenha mudado seu discurso. Artistas são acusados de um lado ou de outro, e o que se tem é uma grande confusão sobre o que será do gênero mais importante da música nos últimos 30 anos. Mas se podemos usar o passado como um norteador do futuro, é certo que uma iniciativa surgida em São Paulo, no começo dos anos 1990 – e pelas mãos e mentes de mulheres negras – foi um dos marcos mais importantes da história recente da cultura popular brasileira.
O Projeto Rappers, que existiu entre os anos 1992 e 2002, foi uma iniciativa do Instituto Geledés, sob a liderança de Sueli Carneiro, surgida da demanda dos jovens negros que aderiram ao movimento hip-hop, surgido no Brasil em meados dos anos 1980. De certa maneira, o estopim foi o assassinato de Marcelo de Jesus, conhecido por MC Rap-B, por um policial, dentro de um vagão de metrô em São Paulo em 1989. Junto a isso, a falta de emprego, a fome e o extermínio da população negra que, a cada ano, batia novos recordes em São Paulo, foram demandas trazidas para o Geledés por esses jovens, que originaram o Projeto Rappers. Mais do que um projeto voltado para a música, o Geledés desenvolveu iniciativas como formações políticas – algumas ministradas por importantes intelectuais, como Clóvis Moura –, a geração de empregos com carteira assinada – que, desde a ditadura de 1964, se tornou um documento que poderia salvar as vidas de gente comum –, além do SOS Racismo, serviço de assistência jurídica gratuita para vítimas de discriminação racial e violência sexual; tudo isso conduzido por diversas mulheres negras e importantes militantes do movimento negro que, de forma, orgânica, responderam ao chamado da juventude e ao genocídio negro em curso não apenas em São Paulo, mas em quase todo o país.
Desse projeto participaram, colaboraram e saíram nomes como Xis, Mano Brown, Cris Lady Rap, Markão DMN, Mc Sharylaine, entre outros tantos rappers que, seguindo distintos caminhos, continuaram com o legado político e artístico do projeto conduzido pelo Geledés.
Uma importante síntese do impacto causado pelo Projeto Rappers pode ser visto na fala de Clodoaldo Arruda, um dos responsáveis pela iniciativa:
“Trinta anos depois, nenhum de nós morreu nem está preso. Estamos em várias esferas: na academia, na política, na arte”.
Em comemoração dos 50 anos do Instituto Geledés, em 2023, foram lançados um documentário e um livro sobre o projeto, nos quais essa importante parte da história do hip-hop é contada por integrantes, idealizadores e beneficiários do projeto, pessoas negras que, inspiradas pelo melhor que vinha de fora – Malcolm X, o Partido dos Panteras Negras e Public Enemy –, ousaram combater o racismo e o capitalismo por meio dos microfones, das políticas autônomas, e deram um passo importante para que o rap pudesse ser o gênero mais contestador e revolucionário da música brasileira.
Ainda que os movimentos culturais, geralmente, não tenham uma adesão completa a uma ideologia política, e que essa adesão flutue sempre, a depender do momento histórico, entender as raízes do Projeto Rappers e do próprio rap nacional – fincadas no Movimento Negro Unificado e no Instituto Geledés, de origem socialista, e em prol de uma verdadeira democracia racial – serve como um lembrete de que o movimento hip-hop tem origem na luta legítima dos trabalhadores, dos negros, dos despossuídos, e de toda uma geração que, como presente do estado burguês, só tinha a fome, o extermínio policial e o racismo.
Se, no contexto geral, grande parte do rap, hoje, depende de políticas públicas, da esquerda institucional ou da direita, para sobreviver – o que gera uma espécie de institucionalização e instrumentalização do movimento –, o Projeto Rappers deixa um lembrete de que, por meio da organização popular, alheia ao estado, é possível repolitizar o rap e redirecioná-lo ao caminho da verdadeira luta, a luta contra o capital e o racismo do qual é produto.
Outra lição que o Projeto Rappers deixa é sobre a necessidade do movimento hip-hop ter seu braço político, com centralidade de ação e estratégia, pautadas no que o povo negro tem de mais avançado em sua luta histórica, impedindo que o gênero caia cada vez mais nas mãos do neoliberalismo e seus discípulos; que seus integrantes não se iludam com as pequenas conquistas financeiras que lhe cabem, e mais importante: que a fúria negra ressucite outra vez, até a vitória final.
(*) Marco Aurélio, mais conhecido como Marcola, é estudante de história e fotógrafo documental nas horas vagas. Escreve e pesquisa o rap, o samba e outros temas da cultura popular brasileira.