Terça-feira, 13 de maio de 2025
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Pouco depois da morte do genial diretor estadunidense David Lynch, em 16 de janeiro de 2025, a sua obra prima, Mulholland Drive – Cidade dos Sonhos (2001), é relançada nos cinemas, agora restaurada em 4K, em uma oportunidade singular. Apesar de pretensioso o elogio conferido por alguns cinéfilos de “melhor filme do século XXI”, não há dúvidas de que estamos nos referindo a um clássico. Para os admiradores, é imperdível revê-lo. Para quem ainda não viu, precisa conferi-lo. Para aqueles que já viram e detestaram, que tal dar mais uma chance?

A esse último público, em especial, se dirigem as próximas linhas. Não se pretende pregar para os já convertidos ou decifrar a trama labiríntica do filme, mas tentar estimular a uma nova experiência os traumatizados com a temida categoria cult. Para curá-los de abalos passados, nada como a boa e velha sala escura de cinema. Pode soar clichê, mas não importa quão grandes as televisões ou avançados os sistemas de home theater, as tradicionais salas de exibição continuam inigualáveis. 

Cena de Mulholland Drive: Cidade dos sonhos. (Foto: Reprodução)
Cena de Mulholland Drive: Cidade dos sonhos.
(Foto: Reprodução)

Não é somente pelo tamanho da tela ou áudio potente, ainda difíceis de superar. O cinema é um dos últimos refúgios das infinitas distrações do mundo moderno, onde ainda vige certo constrangimento à trapaça de se pegar o celular. Por algumas poucas horas, imergimos anônimos numa espécie de outra dimensão e, na companhia de completos estranhos, dividimos risadas, surpresas e lágrimas. É algo que só aquele ambiente escuro das telonas pode nos oferecer.

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Nesta viagem para fora do real, David Lynch está entre os melhores pilotos – e Mulholland Drive é uma nave de ponta. Com uma velocidade impressionante, o diretor nos transporta para outra realidade, podendo provocar certos desconfortos em alguns e até enjoos. Não resista. Solte o corpo e a mente, acalme sua ansiedade por sentidos claros e imediatos. Deixe-se levar pelo insólito e o extraordinário. Quanto menos tentar quebrar a cabeça para racionalizar o que vê, melhor será a sua imersão. 

O próprio diretor resumiu a obra apenas como “a história de uma garota em apuros”. Ainda assim, são várias as teorias, elaboradas por muitos “gênios” da interpretação – em geral chatos de galocha, loroteiros arrogantes. Por isso, não leve a sério aqueles que dizem ter a definitiva explicação. Não importa quantas resenhas, artigos, seminários e até teses de doutorado façam por aí. Mulholland Drive sempre terá algo de mistério intocado, e talvez essa seja uma das suas maiores qualidades.

Mas, para os mais mal-acostumados a obras do gênero, um tanto exóticas, aqui vão algumas pistas, apenas para evitar desistências prematuras. 

Depois da entrada um tanto inusitada, sinalizando ao telespectador um novo território, a história começa com um chocante acidente de carro, na estrada Mulholland Drive em Los Angeles, nos Estados Unidos, no curso de uma noite escura. A única sobrevivente deste acidente automobilístico parece ser Rita (Laura Harring), mulher de beleza pictórica e estonteante. Desorientada, ela ruma em direção às luzes da cidade, andando sem destino pela noite, até, entre arbustos, cair em sono profundo. 

Ao acordar, refugia-se dentro de um condomínio de apartamentos, administrado pela estrambótica e bela Coco (Ann Miller). Já pela manhã, é encontrada com surpresa por Betty (Naomi Watts), jovem e bela atriz que, recém-chegada, busca realizar seu sonho de se tornar uma estrela de Hollywood. Ao perceber que Rita havia perdido completamente a memória, Betty resolve empreender todos os esforços para ajudá-la. Inicia-se aí a complexa jornada em busca da identidade daquela misteriosa e linda mulher. 

Outra personagem central é Adam Kesher (Justin Theroux), envaidecido diretor de cinema que, a tomar por determinado dia, parece viver verdadeiro inferno astral: empresários mafiosos, uma esposa infiel e cartões de crédito bloqueados. Para o telespectador mais atento, verdadeiro deleite de risadas. Lynch tem um humor peculiar, que foge do cômico pornográfico. Numa alquimia perfeita, balanceia o absurdo flagrante, presente na violência nua e crua de certas cenas, com pequenos detalhes, como a excentricidade típica de suas personagens. 

Aos poucos, as histórias de Rita, Betty e Adam vão se conectando, mas numa narrativa absolutamente não linear, deixando a todos um pouco confusos. O filme, que brinca com dimensões paralelas, é permeado de cenas surreais e texturas oníricas, deixando-nos em dúvida, a todo momento, se tratam-se de sonhos, pesadelos ou do dito real

Sujeitos estranhos entram e saem da trama, sem muita explicação, reforçando esta ambiguidade. Lynch não quer, no entanto, nos oferecer um quebra-cabeça para ser metodicamente montado. O diretor não gostava, aliás, de falar sobre Mulholland Drive em termos explicativos. Como bem disse certa vez, “você assiste ao filme, sente e pensa sobre ele, assim como em qualquer outro filme, e tira conclusões”.

Uma dedução possível seria considerar a obra uma metalinguagem acerca das luzes e sombras de Hollywood, a cidade dos sonhos – mas também dos fracassos. Betty parece ser aquela garota em apuros, talvez mergulhada em suas próprias fantasias, fugindo da dura realidade em Los Angeles e de suas angústias e medos. 

Naomi Watts, a intérprete da personagem, curiosamente viveu esse calvário de atriz aspirante. Durante mais de dez anos tentou, sem sucesso, um papel de relevância, até finalmente ser revelada por Lynch. Em seus piores dias, dirigiu frustrada pela estrada cujo nome lhe lançaria ao estrelato. O diretor dizia acreditar em destino. Uma de suas genialidades é captar este quê de mistério que a vida nos reserva. 

Mulholland Drive diz respeito sobretudo àquilo que toca a todos nós, no mais essencial, desde grandes atrizes até reles mortais. Em cenas sublimes, acompanhadas de uma trilha sonora emocional, o diretor retrata, por meio de seus complexos personagens, desejos e repulsas, brios e medos, sonhos e desilusões, ódios e paixões, alegrias e tristezas, orgulhos e arrependimentos, horrores e belezas. É um filme completo, que viaja por suspense, romance, ação, terror, comédia e drama. 

O distintivo está em, pelo mais absoluto surreal, nos fazer sentir aquilo que há de mais real. O ápice e a síntese do fascínio da obra, de seu enigma e da maestria de Lynch, se dão na performance de Rebekah Del Rio interpretando a inesquecível canção “Llorando”. Para entendê-la, não são precisos esforços, pois arrebata-nos por si só.

Ao contrário do que pensam os cinéfilos mais presunçosos, este não é um filme para bem-entendidos. Obras cinematográficas não dependem só da razão. O segredo está em se permitir embrenhar, sem muitas elucubrações, no desconhecido, no inefável sensível. Parafraseando o diretor, “é lindo adentrar um mundo novo e é isso que o cinema nos dá a oportunidade de fazer”.

Mulholland Drive é perfeito para esta mágica jornada. 

(*) Susana Botár é advogada, graduada em Direito pela Universidade de Brasília, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pelo mesmo programa.