Terça-feira, 13 de maio de 2025
APOIE
Menu

Histórias do Marco Zero (From Ground Zero, 2024) é um compilado de curta-metragens de 22 cineastas palestinos no coração de Gaza. Iniciativa do cineasta Rashid Masharawi, o projeto juntou diretores iniciantes e experientes para contarem suas histórias a partir de um ponto de vista em primeira pessoa. O resultado é uma denúncia mordaz do genocídio perpretado por Israel e, ao mesmo tempo, um megafone de amplificação da voz coletiva de resistência palestina.

A animação em stop motion do bombardeio de uma cidade colorida abre um dos curta-metragens, Soft Skin (de Khamees Masharawi), feito com crianças em um acampamento de refugiados. Essa representação da destruição e da violência nos desenhos esboça o paradoxo das infâncias vividas em meio à guerra, esmiuçado nos depoimentos das crianças. Uma delas conta: “Meu irmãozinho tem um ano. Ele só sabe falar ‘papai’ e imitar o som da ambulância, uiuiuiui”. Outras relatam não conseguirem mais dormir, depois que suas mães escreveram seus nomes em várias partes de seus corpos: “Mamãe escreveu no meu braço. Ela tem medo por causa dos aviões. Se as bombas matarem a gente, seremos identificados”. A crueza dos relatos infantis mostra a intensidade dos traumas de crianças crescendo com a saúde mental devastada.

Crianças fazendo um curta em stop-motion em um acampamento de refugiados (Reprodução de Soft Skin / Histórias do Marco Zero (2024))
Crianças fazendo um curta em stop-motion em um acampamento de refugiados (Reprodução de Soft Skin / Histórias do Marco Zero (2024))

Esse medo é justificado pela proximidade da morte que se repete em todos os curtas e, frequentemente, mais de uma vez em cada um deles. Em 24 Hours (de Alaa Damo), por exemplo, um homem sobrevive a três soterramentos em um só dia. Dois dos resgates foram filmados e trazem imagens inacreditáveis de um enterrado vivo sobre escombros a poucos centímetros de distância de seus parentes que não resistiram ao ataque. Sem tempo para o luto, é preciso encontrar forças para sobreviver.

Receba em primeira mão as notícias e análises de Opera Mundi no seu WhatsApp!
Inscreva-se

Histórias do Marco Zero mostra ainda os desafios para a sobrevivência para além das bombas. É preciso também lutar contra a escassez de todos os recursos, como vemos em Recycling (de Rabab Khamees). Sem a necessidade de qualquer diálogo ou narração, tudo é dito na sequência de ações da mulher filmada. Com dificuldade, ela dá banho na filha pequena em um balde. Em seguida, usa a água do balde para lavar o chão. Por fim, usa uma pá para recolher a água do chão e a reutiliza para dar descarga na privada. Em outro curta, Hell’s Heaven (de Kareem Satoum), sem colchão, travesseiro ou cobertor, resta ao homem dormir em um saco de defunto: o paraíso no inferno uma noite de frio deitado no chão gelado da rua.

Homem dormindo em saco para corpos. (Reprodução de Hell’s Heaven / Histórias do Marco Zero (2024))
Homem dormindo em saco para corpos. (Reprodução de Hell’s Heaven / Histórias do Marco Zero (2024))

O compilado de curtas aproxima o cinema de Gaza da Eztetyka da Fome, formulada por Glauber Rocha na década de 1960 no Brasil. O longa apresenta cineastas trabalhando com quaisquer ferramentas disponíveis, entre celulares, webcams e vídeos de redes sociais. A variedade de qualidade técnica de filmagem, as imagens tremidas, desfocadas e os vários formatos de gravação são um sintoma estético da escassez de recursos. Assim, a carência vivida pelos personagens filmados no documentário transborda para a forma fílmica, unindo o conteúdo ético ao conteúdo estético, de modo que a própria forma fílmica defende por si só um cinema politicamente engajado com a luta de resistência. É o que o cineasta brasileiro defendia como sendo o único modo possível de comunicação da verdadeira miséria, um passo no longo processo de compreensão da dinâmica colonial.

De forma metalinguística, alguns dos curtas trazem uma reflexão sobre os processos de realização cinematográfica em Gaza e evidenciam o esforço monumental dos palestinos para contar suas histórias. Em Sorry Cinema, o diretor Ahmad Hassouna conta seu sonho de virar cineasta. Trabalhando dia e noite durante quatro anos, conseguiu fazer um filme, que foi selecionado e premiado em um festival. Nenhum membro da equipe, contudo, conseguiu sair de Gaza para receber o prêmio. Se antes ele corria para fazer cinema, agora corre para sobreviver.

Nessa luta, o ato de comer é resultado de uma série de batalhas, que começa com a disputa para conseguir um dos poucos alimentos que caem do céu, despejados pelas ações humanitárias. E a escassez é tanta que dezenas de homens correm para catar com as mãos a farinha no chão, misturada com areia, que escapou dos sacos que arrebentaram ao serem jogados dos aviões. Ao final do curta, a claquete de cinema é a última madeira que resta para acender uma fogueira para cozinhar – filmar se torna secundário na luta pela sobrevivência.

Diretor usa a claquete de cinema como lenha para fazer comida. (Reprodução de Sorry Cinema / Histórias do Marco Zero (2024))
Diretor usa a claquete de cinema como lenha para fazer comida. (Reprodução de Sorry Cinema / Histórias do Marco Zero (2024))

A corrida de Hassouna para alimentar sua família ilustra a reflexão da diretora Reema Mahmoud no primeiro curta, Selfie: “Quando não morremos de bombas, morremos de fome ou doenças”. Também ecoa mais adiante no desabafo de outro homem em Offerings (de Mustafa Al-Nabih): “Tínhamos tantos sonhos, trabalhávamos, éramos ambiciosos. Agora minha ambição é achar um lugar seguro para dormir”. Nas quase duas horas de filme, cada curta-metragem se soma aos anteriores, complexificando nossa compreensão da realidade brutal de Gaza, de um cotidiano de extrema desumanização.

Apesar de bastante diversos em termos técnicos, estéticos e poéticos, os curtas são unificados pelo sentimento do luto e do medo, e por um cenário comum, que se resume a escombros de edificações destruídas e barracas de acampamentos de refugiados. Histórias do Marco Zero escancara o que António Guterres, secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), classificou na última semana como “campo de extermínio”.

Exibido no Brasil no É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários na mostra paralela nomeada como O Estado das Coisas, o filme permite uma constatação do estado de Gaza e sobretudo das pessoas sobreviventes, que seguem lutando arduamente para não morrer. Diante das barreiras linguísticas e midiáticas no ocidente, o filme destoa ao trazer para as telas um Gaza para além dos números. São testemunhos de vida, firmeza e sobrevivência que revelam nomes, rostos, o cotidiano e a criatividade dos palestinos em meio ao luto e à luta. É uma preciosa oportunidade de contato com um documento cru e palpável construído a partir de um ponto de vista interno, em primeira pessoa, por aqueles que estão totalmente imbricados no coração do genocídio. Nesse contexto, como afirma Atef Abu Saif, no livro Diários de Gaza, “contar histórias é uma forma de não desaparecer. Não é um luxo, mas um modo de expressão do combate”.

Cartaz de "Histórias do Marco Zero". (Foto: Reprodução)
Cartaz de “Histórias do Marco Zero”. (Foto: Reprodução)

Os 22 curta-metragens que compõem Histórias do Marco Zero e seus respectivos diretores são:

Selfie (Reema Mahmoud)
No Signal (Muhammad Alshareef)
Sorry Cinema (Ahmad Hassouna)
Flash Back (Islam Al Zrieai)
Echo (Mustafa Kallab)
Everything Is Fine (Nidal Damo)
Soft Skin (Khamees Masharawi)
The Teacher (Tamer Najm)
Charm (Bashar Al-Balbeisi)
A School Day (Ahmed Al-Danf)
Overburden (Ala’a Ayob)
Hell’s Heaven (Kareem Satoum)
24 Hours (Alaa Damo)
Jad and Natalie (Aws Al-Banna)
Recycling (Rabab Khamees)
Taxi Waneesa (E’temad Weshah)
Offerings (Mustafa Al-Nabih)
No (Hana Awad)
Farah and Mirayim (Wissam Moussa)
Fragments (Basil Al-Maqousi)
Out of Frame (Nidaa Abu Hasna)
Awakening (Mahdi Karirah)