Quarta-feira, 11 de junho de 2025
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Aposentada da música em seus últimos onze anos, Rita Lee (1947-2023) dedicou a última década de vida a uma breve e produtiva incursão na literatura de tons autobiográficos, que originou os divertidos e leves Uma Autobiografia (2016) e Dropz (2017), mas também o póstumo, doloroso e inacabado Outra Autobiografia (2023). A saga prossegue no novo e novamente leve O Mito do Mito – De Fã e de Louco, Todo Mundo Tem um Pouco (lançado, como os anteriores, pela Globo Livros), que, como dizia Rita numa antiga canção, brinca de ser sério e leva a sério a brincadeira de contar o que se esconde por baixo dos panos da fama, do glamour e da idolatria.

A propaganda do segundo livro póstumo é irresistível e foi escrita como prefácio pela própria autora. “Pedi que cuidasse do lançamento, mas com uma condição: só depois de morta. Artista morto vale mais, tem uns que viram até mito. Além do mais, não quero ninguém me perguntando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais. Escritora-mistério”, assim ela cria o suspense, na “nota da autora” que abre a edição. A promessa de que o inédito se revelará no pós-morte não é para tanto, e O Mito do Mito não chega a acrescentar grandes revelações para lá daquelas contundentes incluídas no volume de 2016 e desdobradas em mais dois, agora três, aventuras autobiográficas.

Como Rita Lee também explica, a suposta ficção recém-lançada foi esboçada em 2005, abandonada, retomada e reescrita até se concretizar como algum último desejo da autora. Aqui, a protagonista em primeira pessoa se dirige a um casarão sinistro no centro de sua São Paulo natal para se consultar com o doutor Eric von Kasperhauss, um misterioso guru-médico-bruxo-psicoterapeuta com quem dialoga sobre assuntos diversos ao longo de 174 ligeiras páginas.

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A trama é mero pretexto para que a narradora/estrela pop seja entrevistada por uma figura mais assemelhada a um repórter que a um psicólogo. Por intermédio do doutor Kasparhauss, a Rita Lee ficcional (ou não) entabula um diálogo íntimo e novamente biográfico consigo própria – e com a plateia presente. É como se fosse um laboratório, inicialmente não-publicado, para as autobiografias que viriam mais tarde. 

O tom confessional ostenta uma diferença crucial em relação aos livros anteriores, e O Mito do Mito avança sobre um propósito acima de outros quaisquer: investigar a natureza espelhada dos ídolos e dos fãs. Rita escancara logo de início que cada ídolo também tem seus próprios ídolos, e com base nisso descreve seu próprio comportamento como fã obsessiva, antes e depois de se tornar, ela própria, a idolatrada. Atém-se a ídolos antigos, por vezes fictícios, quase sempre estrangeiros e mortos: Peter Pan, Hebe Camargo, David Bowie, Beatles, Brigitte Bardot, Sonia Braga, Leila Diniz e James Dean. Conta que sempre manteve, por exemplo, paredes forradas de fotos desse último, morto aos 24 anos, quando a então fã tinha oito anos de idade.

Rita Lee ao vivo em Araçatuba no dia 23 de maio de 2009.
(Marco Senche / Wikicommons)

No bailado em que a protagonista vai pulando da condição de fã para ídolo e vice-versa, insinuam-se algumas declarações menos humorísticas que confessionais. “Sim, é um clichê na vida do famoso a situação fuma-bebe-cheira-injeta. É uma regra com raras exceções porque a quantidade de sucesso pode vir a ser inversamente proporcional à sua felicidade pessoal”, a narradora desnuda o mito, para pouco depois banalizá-lo: “Artista não é diferente de outro humano no quesito fuma-bebe-cheira-injeta, só que quando o faz aparece no jornal”. 

No meio do caminho, surgem pequenas surpresas e peças fora de lugar (“eu adoro ver cadáver!”), das mais frívolas às mais profundas, mas sempre saborosas. A trágica cantora e compositora Maysa surge na vida infantil de Rita não como ídola, mas como cliente do consultório de dentista do patriarca da família Lee. A narradora faz volteios para despistar maledicências e discorrer sobre supostos gênios que gravaram letras suas sem creditar autoria, sobre a chatice de um fã enciclopédico chamado Renato Russo ou sobre o tamanho do pênis de Paul McCartney. Mais direta, afirma que a prisão por porte de maconha, em 1976, foi represália pelo depoimento que ela prestou à Justiça como testemunha ocular do assassinato de um fã por um policial durante um show dos Mutantes. Tal como a autora de “Ovelha Negra” (1975) e “Doce Vampiro” (1979) fazia com James Dean, o fã que morreu jovem tinha as paredes forradas de fotos de Rita Lee.

Ambígua, Rita descreve tipos mais ou menos grotescos de fãs. Alguns a certa altura revelam instintos homicidas: “Teve uma outra que começou a mandar diariamente uma rosa vermelha junto de um bilhete escrito com sangue dizendo ‘um belo dia eu vou matar você'”. Outros, também artistas, declaram-se fãs para sugar privilégios e energias da ídola-colega: “Chata, arroz de festa de todos os shows, buscando um prestígio que ela jamais terá”. Entre um gracejo e outro, não deixa de passar recados para os vivos, como quando insere uma única crítica entre uma chuva de elogios aos filhos: “Os três ainda comem animais”.

Abrigada pela irreverência, a Rita escritora embaralha e desembaralha as cartas do jogo das celebridades e vai descrevendo as diversas personagens de um parque de diversões que é também um circo de horrores (o ídolo, o fã, o jornalista, o executivo de gravadora, o crítico, a artista jovem – ela própria – que se finge de secretária da artista ao telefone, o empresário etc.): “A fama de grosso e intolerante recai infalivelmente sobre o empresário, papel este muitas vezes exercido pela mãe/esposa ou pelo pai/marido ou pelo herdeiro. Enquanto isso, deus fica no pedestal do criativo e do educado, alheio a tudo que possa estar acontecendo, fazendo-se de coitadinho alienado. Não se iluda”.

Em meio à grande transparência que marca os escritos tardios de Rita Lee, a sutileza e a contundência andam de mãos dadas. “Artista é tela para toda projeção”, sentencia, enquanto atesta que as aparências sempre enganam, que os papéis de cada um no grande circo são sempre transitórios e que todo mundo tem um pouco não só de fã e de louco, mas de artista, vilão, mocinha, detrator, gênio, fofoqueiro, chata, vampiro e assim por diante. 

(*) Pedro Alexandre Sanches é Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)