‘Ruptura’ é sobre as ‘metades’ das nossas vidas ganhando consciência de classe
Não se trata de uma série ‘marxista’, mas sua narrativa está repleta de situações facilmente identificáveis por qualquer proletário dos tempos atuais
“Nos deram metade de uma vida e acharam que não iríamos lutar por ela”. Esta frase é dita por um dos personagens de Ruptura (ou Severance, título original da série disponível na plataforma de streaming AppleTV+) no último episódio (o décimo) da segunda temporada de série, que estreou na última sexta-feira (21/03).
A frase está cheia de significados e faz parte de uma série que nos apresenta um mundo onde as pessoas, a partir de um chip implantando em seus cérebros, podem dividir suas vidas pela metade.
Nesse mundo, quando a pessoa entra no trabalho, o chip aciona uma nova consciência, que não se recorda da vida exterior e passa oito horas trabalhando, até que, quando vai embora, o mesmo chip desliga a consciência do trabalho e reativa a do mundo exterior, que nada se lembra do que aconteceu no trabalho.
A premissa remete ao conceito da alienação do trabalho descrito por Karl Marx. O mecanismo pelo qual o capitalismo retira do trabalhador sua ligação com o fruto do seu trabalho é levado aqui às últimas consequências, apagando até mesmo os rastros desse trabalho da memória do funcionário.
Por conta dessa alegoria, quando a primeira temporada foi ao ar, há três anos, muitos fãs da série teorizaram que o nome de um dos personagens principais, Mark S, seria um acrônimo invertido pra Marx. Essa definição nunca foi confirmada pelos autores e é pouco provável que a obra produzida pela plataforma pertencente a uma das maiores big techs do planeta tenha essa intenção, mesmo se tratando de uma produção que todo proletário deveria assistir.
Outro ironia da obra é o tom fortemente crítico que ela apresenta sobre as atividades da Lumon, a megaempresa fictícia em volta da qual toda a trama se desenvolve, meio bigpharma meio bigtech, cujas atividades mostradas na tela ilustram bem como empresas desse tipo criam inovações com a finalidade de extrair o máximo lucro possível dos seus funcionários, como é o caso do chip que divide suas mentes, mas não somente de pessoas, também de cidades e povoados aos quais é oferecida uma prosperidade eterna, até a retirada da última gota da riqueza, e depois fica à população local apenas a desesperança.
Ruptura não é uma série “marxista” – por exemplo, ela não mostra uma tentativa de tomada da Lumon por parte dos trabalhadores, nem dos internos nem dos externos, apesar de algumas pequenas rebeliões –, mas sua narrativa está repleta de situações facilmente identificáveis por aqueles que conhecem o ambiente corporativo, e algumas das suas propostas a respeito da exploração capitalista podem ser compreendidas até mesmo por um operário do chão de fábrica, ou um hiper precarizado prestador de serviços de plataformas digitais.
A ideia de dividir uma personalidade não está distante da realidade que qualquer assalariado vive sem precisar do fictício chip divisor de consciências mostrado na série.
A dinâmica do mundo contemporâneo nos obriga a dividir nossas mentes em várias versões, principalmente em função do trabalho, que tentamos separar ao máximo da nossa vida pessoal, e alguns dividem ainda mais suas personalidades, tendo uma pra família, outra pros amigos, ou várias pra diferentes grupos de amigos.

Zach Cherry, Britt Lower, John Turturro e Adam Scott, em cena da série ‘Ruptura’
Na série, essas diferentes versões de cada pessoa são transformadas em personagens diferentes. O interno é metade de um personagem, metade de uma vida. Sua consciência é ligada quando ele entra pra trabalhar, e desligada quando o expediente acaba, pra voltar a ser acionada na jornada seguinte, fazendo com que ele não conheça outra vida senão a vida do trabalho. Já o externo é a metade do personagem que não conhece essa vida do trabalho e que escolheu aprisionar sua outra metade numa realidade inteiramente dedicada a esse emprego, pra que ele possa ter a sensação de viver sem trabalhar.
Contudo, o que acontece quando o interno, que vive apenas o mundo do trabalho, desenvolve seus próprios propósitos, uma consciência de classe que nasce da exploração que está sofrendo e mesclada ao extinto de autopreservação?
Ao longo de 19 episódios (nove na primeira, exibida em 2022, e 10 nesta segunda, lançada em 2025), Ruptura faz uma reflexão sobre esse dilema, com uma narrativa densa e esteticamente agradável sobre um “trabalho importante e misterioso”, como seus próprios personagens o descrevem, e que é melhor não saber de antemão se você pretende ver a série.
Não se trata de um fast food audiovisual. Parte do prazer em assistir Ruptura está em descobrir as respostas conforme elas vão sendo contadas. O roteiro paciente e meticuloso convida o espectador a desfrutar das muitas nuances, dos detalhes nas entrelinhas e elementos semióticos presentes numa obra onde, ademais, a fotografia, a montagem e a direção são impecáveis.
A trilha sonora inclui uma vinheta de abertura intrigante, e que é daquelas músicas que grudam nossa memória, mas também traz referências musicais que passam por Billie Holiday, The Who, Charles Bradley, Mel Tormé e até uma versão instrumental de Wave, uma das clássicas canções de Tom Jobim – utilizada perfeitamente num episódio que serve pra “contar o que os olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode entender…”.
Todos os elementos técnicos são maravilhosos, mas não superam as brilhantes atuações, tanto na primeira quanto na segunda temporada, com destaque pra Adam Scott, Brit Lower, Dichen Lachman, Zack Cherry e Tramell Tillman – este último faz seu primeiro papel de destaque numa grande produção estadunidense e entrega uma performance que permite questionar por que se demorou tanto pra descobrir um talento tão incrível.
O elenco tem alguns nomes conhecidos, como Patricia Arquette, John Turturro e Christopher Walken, todos com interpretações que podem ser incluídas tranquilamente entre as melhores de suas longas carreiras.
Talvez o nome mais surpreendente, porém, seja o que assina a direção: Ben Stiller, aquele ator conhecido por protagonizar comédias escrachadas, como Entrando Numa Fria, Zoolander e Quem Vai Ficar com Mary?, aparece aqui dirigindo uma trama de mistério, com momentos dramáticos abordados com imensa sensibilidades. Também há pitadas de comédia durante a série, mas de um tipo muito diferente daquela dos filmes que abundam em seu currículo.
Resgato a citação no parágrafo inicial desta crítica pra recomendar Ruptura, uma série que mostra muitas vidas pela metade lutando por serem mais que somente trabalhadoras e trabalhadores. Lutando por seus próprios anseios, contra suas próprias contradições, por seus próprios amores.
