Adoniran Barbosa (1910-1982) gemeu no túmulo do samba durante o programa Roda Viva da segunda-feira, 28, quando o candidato a prefeito Guilherme Boulos discorreu sobre a “esculhambação” da operação-tartaruga promovida pelas empresas privadas de transporte contra a população da cidade de São Paulo. Os cidadãos apinhados no ponto de ônibus e viajando como sardinhas em lata mencionados por Boulos caberiam com folga em um dos vários sambas sobre a dificuldade de se locomover compostos por Adoniran: “Iracema”, “Trem das 11”, “Samba do Metrô”. O compositor foi não apenas um poeta do transporte, como também da moradia, o que mais uma vez se comunica com as origens e a militância do candidato do PSOL à prefeitura da “cidade que mais cresce no mundo”. Esse era o epíteto dado a São Paulo por arautos do capitalismo, enquanto Adoniran escrevia sambas sobre (falta de) moradia como “Saudosa Maloca”, “Abrigo de Vagabundos”, “No Morro do Pioio”, “No Morro da Casa Verde”, “Despejo na Favela”.
Adoniran Barbosa está há muito entronizado como uma das glórias do samba e da música popular brasileira, de tal modo que parece ter sido sempre assim. Não foi. Desde que teve um primeiro samba gravado, em 1935, até a estreia como cantor de um LP inteiro de composições de sua autoria, em 1974, o “poeta do Bixiga” esperou na fila durante nada menos que 39 anos. Enquanto isso, fazia carreira bem-sucedida como humorista e ator da Rádio Record (do conglomerado hoje pertencente ao bispo neopentecostal), esporadicamente como ator de cinema e TV. Quando o comediante radiofônico gravou “Saudosa Maloca” na própria voz, em 1951, simplesmente ninguém lhe deu ouvidos.
O primeiro futuro clássico adoniraniano só ganhou existência pública cinco anos depois, quando gravado com mais humor e menos melancolia pelo quinteto Demônios da Garoa, numa fase pródiga em conjuntos de nomes inspirados na dualidade católica entre o bem e o mal (Anjos do Inferno, Diabos do Céu). Pouco antes, a Rádio Record estreara o estrondoso programa de humor e crônica social Histórias das Malocas, roteirizado pelo jornalista Osvaldo Moles e estrelado por Adoniran. Era 1954, ano do Quarto Centenário da “cidade que mais cresce”, quando a industrialização, a verticalização e a expansão da frota automobilística eram vendidas aos paulistanos como o paraíso na Terra. Para celebrar a data redonda, a oficialidade paulistana de então deu ao cantor carioca Silvio Caldas a missão de interpretar “História Paulista”, hino-exaltação aos “heróicos bandeirantes” e a seus “intrépidos” descendentes. O (res)surgimento de “Saudosa Maloca” em 1955 funcionou como uma espécie de resposta ao desaforo e, ironicamente, entrou para a história, enquanto “História Paulista” se perdia no fiapo do tempo.
“Se o senhor não tá lembrado/ dá licença de contar/ que aqui onde agora está/ esse edifício arto/ era uma casa veia, um palacete assobradado/ foi aqui, seu moço/ que eu, Mato Grosso e o Joca/ construímo nossa maloca”, compôs Adoniran ainda em 1951, inspirado pela demolição do Hotel Albion, na Rua Aurora, no centro de São Paulo, e pelo desalojamento dos sem-teto que se abrigavam por lá à noite. “Peguemo tuda nossas coisas/ e fumos pro meio da rua espiá a demolição/ que tristeza que eu sentia/ cada tauba que caía doía no coração”, lamentava, com certa resignação, o porta-voz do movimento sem-teto possível naquele momento.
Como demarcou o historiador Francisco Rocha no livro Adoniran Barbosa – O Poeta da Cidade (Ateliê Editorial, 2002), Adoniran vocalizava ali (e em inúmeras canções) o avesso da adoração fetichista pelo que era (e é) considerado o “progresso”: “Sua escrita subverte a ordem imposta pelo esforço de modernização na medida em que narra através do olhar dos excluídos”.
Não por acaso, outro insucesso do cantor-compositor, “Conselho de Mulher” (1953), atrelava o progresso ao trabalho: “Pogréssio, pogréssio/ eu sempre escuitei falá/ que o pogréssio vem do trabalho/ então amanhã cedo eu vou trabaiá”. Parecia uma exaltação ao trabalho nos moldes de Getúlio Vargas ou da “cidade que mais cresce no mundo”, mas era uma arapuca, apropriadamente concluída num breque: “Agora escutando o conseio da muíé/ amanhã vou trabalhá/ se Deus quisé/ mas Deus não qué”. Era um operário do rádio, e não um “vagabundo” ou “sem-teto”, quem mandava o recado indigesto, com alguma rebeldia retórica por trás da resignação.
Além de todos os obstáculos, também a prosódia de Adoniran atentava contra a norma “culta”, mais um fator a separá-lo do “bom gosto” médio da MPB ao longo das décadas. Não deve ser coincidência que Caetano Veloso e Gilberto Gil jamais tenham se entrosado com a poética de Adoniran, ou que Chico Buarque só o tenha gravado em 2011, como convidado num disco oferecido ao mestre morto pelo discípulo Carlinhos Vergueiro. Ao ceder, Chico escolheu cantar “Bom Dia Tristeza” (1957), a única melodia adonirânica com letra assinada (sem “erros” de português) pelo bossa-novista Vinicius de Moraes. A genial cantora carioca Aracy de Almeida, futura jurada ranzinza do carioca apaulistanado Silvio Santos, foi a gaiata que promoveu a parceria involuntária, entregando um poema que recebeu do diplomata Vinicius para o plebeu Adoniran musicar. Era uma atípica parceria paulista-carioca, entre o compositor de “Saudosa Maloca” e o literato que, segundo rezam várias lendas, teria cunhado para São Paulo a expressão “túmulo do samba” e não apreciava o estilo “errado” de Adoniran.
Se o sucesso de “Saudosa Maloca” coincidiu com o Quarto Centenário paulistano, o segundo surto de sucesso do Adoniran-compositor precedeu o Quarto Centenário carioca. Lançado pelos Demônios da Garoa em 1964, o samba de transporte “Trem das 11” só emplacou no carnaval do ano seguinte, quando participou do Concurso Oficial de Músicas Carnavalescas do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. “Moro em Jaçanã/ se eu perder esse trem/ que sai agora às 11 horas/ só amanhã de manhã”, cantaram os Demônios, que, surpresa!, saíram vencedores do concurso carioca. O “pogréssio”, afinal, também acometia Copacabana, Ipanema e adjacências. Em 1966, quando o poder público paulistano decidiu derrubar a estação do Jaçanã, Adoniran foi convidado a apreciar o início da demolição – e aceitou.
O último suspiro de sucesso como cantor e compositor começou em 1965, quando Elis Regina, aos 20 anos, convidou o artista de 55 anos para participar do programa musical O Fino da Bossa, na TV Record, a mesma que havia engolido a Rádio Record e seu elenco. Prosseguiu em 1973, quando Gal Costa gravou ao vivo uma versão pungente de “Trem das 11”. E teve auge em 1974, quando o produtor musical João Carlos Botezzeli, o Pelão, que vinha promovendo as estreias em LP de luminares do samba como Nelson Cavaquinho e Cartola, decidiu fazer o mesmo com Adoniran e produziu seu primeiro álbum completo.
O segundo LP Adoniran Barbosa, em 1975, trazia uma rara composição inédita, “Triste Margarida”, cujo subtítulo era “Samba do Metrô”: “Eu disse a ela que trabalhava de engenheiro/ que o metrô de São Paulo estava em minhas mãos/ e que se desse tudo certo/ seria a primeira passageira na inauguração/ tudo ia indo muito bem/ até que um dia, até que um dia/ ela passou de ônibus pela via 23 de Maio/ e da janela do coletivo me viu/ plantando grama no barranco da avenida”. O metrô paulistano havia começado a operar comercialmente em 1974, após nove anos de construção, e lá estava Adoniran, mais uma vez, comentando o que ficava atrás dos tapumes e interpretando a voz rouca dos excluídos.
Não foram outros, por sinal, os protagonistas de dez entre dez sambas de moradia e/ou transporte de Adoniran. “Iracema” (1956) morreu atropelada na Avenida São João. “Abrigo de Vagabundos” (1958) retomou Mato Grosso e Joca, mas não era exatamente um abrigo de “vagabundos”: “Eu arranjei o meu dinheiro/ trabaiando o ano inteiro numa cerâmica/ fabricando pote/ e lá no arto da Mooca/ eu comprei um lindo lote/ dez de frente e dez de fundos/ construí minha maloca”. O narrador de “O Morro do Pioio” (1959) foi eleito governador do Morro do Piolho, do qual era fundador. “No Morro da Casa Verde” (1959) era onde nascia, brotava e florescia o samba dos “colegas de maloca”. Para lá da história dramática que contava, o samba “Despejo na Favela” (1969) foi desclassificado num dos vários festivais da canção da TV Record – dos quais, aliás, o compositor foi despejado em todas as suas tentativas de participar.
Em 1980, no terceiro e último álbum de Adoniran, repleto de convidados especiais, brilhou Elis Regina, no dueto de “Tiro ao Álvaro” (1960). Nascida num bairro operário de Porto Alegre, ela se tornou pioneira no ato de fazer a MPB assimilar enfim os “erros” de português do mestre iletrado. “De tanto levar frechada do teu olhar/ meu peito até parece sabe o quê?/ tauba de tiro ao álvaro/ não tem mais onde furar”, Elis cantou, em interpretação luminosa para mais uma tragicomédia de Adoniran. Ele não havia regravado “Tiro ao Álvaro” nos dois primeiros LPs, talvez inibido porque “Samba do Arnesto”, lançado em 1953, tinha sido vetado pela ditadura e excluído do disco de 1974, devido aos “erros” de linguagem.
A voz rouca e incômoda de Adoniran Barbosa passou a ganhar novo status somente a partir de 1975, quando o acadêmico Antonio Candido assinou um texto elogioso na contracapa do segundo LP. A morte acentuou a canonização de sua obra musical, tantas vezes rejeitada, talvez não por causa do português “ruim”, mas sim da avacalhação anti-heróica com que o autor reagia às joias da coroa do capitalismo descontrolado. Sem-teto e sem-transporte, a persona musical criada por João Rubinato (seu nome de batismo) bateu em teclas que candidatos ditos socialistas, como o ex-líder no MTST Guilherme Boulos, ainda têm que bater em 2024 – sob rejeição idêntica à de 70 anos atrás, estampada nas feições dos entrevistadores da estatal paulista TV Cultura.
(*) Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, Pedro Alexandre Sanches é autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)” (Boitempo, 2004)