Desde a Nakba, como é conhecida a o episódio histórico ocorrido em 1948, quando foi decretado o Estado de Israel e a Palestina dividida entre árabes e judeus, o cinema palestino vem desempenhando um papel fundamental. Diversos são os filmes que retratam ou aludem à “catástrofe” (tradução do termo árabe “Nakba”), momento no qual cerca de 15 mil palestinos foram mortos, entre 700 e 800 mil foram expulsos de suas terras e entre 400 e 500 vilas palestinas foram destruídas.
É durante os anos 1960 e início dos 1970 que a relação entre cinema e resistência palestina se torna bastante explícita, a partir da criação de um grupo de cineastas diretamente implicados na luta pela libertação da Palestina. Mustafa Abu Ali, integrante deste grupo, chegou a afirmar em entrevista dada para o livro Les Cinémas des Pays Arabes que “a resistência palestina acredita que a ação por meio do cinema é uma extensão natural da ação armada”. Filmes deste período tentavam criar uma linguagem cinematográfica compatível com a revolução e suas necessidades. Além disso, registravam a luta enquanto ela se desenrolava, produzindo imagens das atrocidades cometidas, como dos bombardeios israelenses em campos de refugiados palestinos.
Grande parte dos filmes deste período se perderam com a invasão israelense no Líbano em 1982, quando o arquivo cinematográfico da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), que vinha sendo construído desde 1960, desapareceu. Essa história é contada pela diretora Azza El-Hassan em seu filme Kings and extras – digging for Palestinian image (2004). Em um road-movie da Palestina para a Jordânia, Síria e Líbano, El-Hassan segue pistas contraditórias e confusas sobre o paradeiro do arquivo perdido.
O cinema palestino, contudo, segue resistindo ainda hoje e se constituindo como ferramenta fundamental para a apresentação da luta por libertação da Palestina para públicos não familiarizados com a Ocupação israelense. Ele desempenha um papel fundamental na consolidação da narrativa palestina frente às manipulações discursivas que fazem parecer que a limpeza étnica é na verdade uma autodefesa e que apresentam a resistência palestina como terrorismo. Em meio a este cenário, o cinema vem garantindo o direito à auto expressão e auto representação do povo palestino, fomentando a empatia e a alteridade.
O cinema palestino neste um ano de guerra

À luz dos acontecimentos recentes, o cinema palestino adquire uma carga ainda mais importante enquanto espaço de resistência criativa, informação e denúncia. No último ano, desde a eclosão da guerra em 7 de outubro, o cinema palestino ganhou destaques em mostras e festivais ao redor do mundo, seja por sua presença, seja por sua ausência. O Palestinian Film Institute (PFI) vem denunciando o silenciamento da indústria cinematográfica frente ao genocídio e/ou posturas reprodutoras de dinâmicas coloniais contra os palestinos. Em novembro de 2023, cerca de dez diretores retiraram seus filmes do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, seguindo os incentivos do PFI, após comentários críticos da organização do festival a um protesto palestino organizado na abertura do evento.
Já em fevereiro de 2024, o instituto soltou uma nota repudiando o silenciamento do Festival Internacional de Cinema de Berlim “sobre o horrível e contínuo genocídio na Palestina”: “Há muito tempo, a Berlinale tem se posicionado como um espaço político e tem defendido publicamente os direitos humanos e lutado contra a opressão e a censura. Seu silêncio sobre a Palestina é interpretado como cumplicidade institucional com o perpretador de seu genocídio” (trecho do texto “Chamado urgente à comunidade cinematográfica internacional sobre a Berlinale”, tradução livre). Recentemente, em agosto de 2024, o PFI publicou o “Protocolo da indústria em tempos de genocídio” que apresenta demandas contundentes a serem seguidas pela indústria cinematográfica e pelos festivais de cinema.
Em contrapartida, o instituto ressalta também a importância de iniciativas como a do Festival de Cannes de 2024, que apresentou quatro documentários work-in-progress (filmes em andamento de produção), que puderam receber uma consultoria personalizada com especialistas da indústria no Marché du Film.
No Brasil, filmes palestinos também vêm sendo programados, a exemplo da seleção de cinco longas recentes, de 2024, na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que começa na semana que vem e se estende do dia 17 a 30 de outubro. Serão exibidos Contos de Gaza (Mahmoud Nabil Ahmed), Happy Holidays (Scandar Copti), No Other Land (Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham, Rachel Szor), Obrigado por Escolher o Nosso Banco (Laila Abbas) e Rumo a uma Terra Desconhecida (Mahdi Fleifel).

A programação da Mostra Internacional inclui ainda uma retrospectiva do cineasta Michel Khliefi, que durante anos foi o único diretor a realizar filmes em território palestino, influenciando toda uma geração que se seguiu. Sua obra é marcada por um retrato da vida cotidiana, evidente nos três filmes que serão exibidos: A Memória Fértil (1981 – recém restaurado), Núpcias na Galiléia (1987 – considerado o primeiro longa-metragem realizado na Palestina por um diretor palestino e laureado com o Prêmio da Crítica Internacional em Cannes) e O Conto das Três Jóias Perdidas (1995).
Em agosto deste ano, a Palestina foi destaque na 17ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, organizada pelo Instituto da Cultura Árabe e realizada no CineSesc, em São Paulo. O filme escolhido para a abertura, O professor (Farah Nabulsi, 2023), é uma denúncia contundente à violência cometida pelo exército israelense contra o povo palestino. Foi exibido também Lyd (Rami Younis, Sarah Friedland, 2023), um documentário de ficção científica que mistura o passado, o presente e o futuro da cidade de Lyd, primeira capital da Palestina. Com a fundação do Estado de Israel em 1948, os moradores foram massacrados e mais de 50 mil deles expulsos e exilados em campos de refugiados. O longa será reprisado gratuitamente na Cinemateca Brasileira, no dia 11 de outubro, na programação extra da Mostra.
Ainda em São Paulo, filmes palestinos podem ser conferidos no cineclube Al Ard (“A Terra”, em português), que acontece quinzenalmente às terças-feiras, no Al Janiah, com entrada gratuita. São exibidos clássicos, como O que resta do tempo (2009), longa-metragem do proeminente diretor Elia Suleiman, indicado à Palma de Ouro do Festival de Cannes, e outras obras menos conhecidas e de difícil acesso, com traduções inéditas para o português, como Jenin (Mohammad Bakri, 2002) e Exército vermelho/FPLP: declaração de guerra (Masao Adachi, Kôji Wakamatsu, 1971).
Por fim, é possível conferir ainda a Palestine Film Platform, plataforma online e gratuita do Palestinian Film Institute em colaboração com cineastas e instituições culturais palestinas, que disponibiliza para acesso livre um longa-metragem palestino toda semana. A plataforma contém uma base filmográfica com a catalogação de diversos filmes palestinos e muitos deles também estão disponíveis para visionamento. Os filmes são apresentados com legenda em inglês, francês e árabe.
Ainda na plataforma, se inicia esta semana uma mostra de filmes palestinos produzidos entre 1967 e 1984. Denominada “Provoked Narratives” (“Narrativas provocadas”, em português) a programação é, segundo o PFI, “um convite, nesta época de genocídio e agressão contínua, para entender as narrativas criadas em torno da Palestina como parte de um longo projeto colonial, um projeto de violência. Considerar as maneiras pelas quais a câmera, desde seu início como uma nova ferramenta, desempenhou um papel conflituoso no projeto do império. Considerar como as imagens foram cooptadas e ver como elas também podem resistir” (tradução livre). Os filmes ficarão disponíveis para acesso gratuito até dia 23 de outubro, uma chance de olhar para o arquivo cinematográfico como um ato de resistência um ano após o início do genocídio televisionado em Gaza.