“Ainda tenho um milhão de coisas para fazer”, diz Wagner Carvalho, diretor artístico do teatro Ballhaus Naunynstrasse em Berlim, poucas horas antes da estreia da noite.
Wagner não é somente responsável pela direção artística da casa – o único teatro negro da Alemanha, segundo o jornal alemão FAZ. Na falta de mão de obra, é Wagner quem também faz transferências bancárias, escreve candidaturas para bolsas, prepara orçamentos e, quando é preciso, passa o aspirador de pó nas salas do prédio antigo do bairro de Kreuzberg. “Às vezes até incomoda”, diz, sorrindo.
A importância das questões financeiras da casa é destacada por um calendário de editais na parede, que se estende por inúmeros post-its. O Ballhaus Naunynstrasse, um teatro pequeno que existe num antigo salão de bailes desde 1982, depende de recursos externos para sobreviver.
“O histórico dessa casa é um histórico de muita conquista”, comenta Wagner. “Às vezes acontece de a gente ter muitos projetos financiados. E tem vezes que não temos dinheiro, e aí, a gente tem que se virar.”
De Belo Horizonte a Berlim
Foi esse talento de saber “se virar” que trouxe Wagner para o teatro e de Belo Horizonte para Berlim, nos anos 1990. O mineiro começou a fazer teatro e dançar balé com 12 anos de idade. Aos 20 anos, já dirigia o Núcleo de Estudos Teatrais, uma escola de teatro livre em Belo Horizonte. Em função desse trabalho, Wagner ganhou uma bolsa para estudar alemão no Instituto Goethe.
Ainda na ditadura militar, Wagner percebeu que, para ele, o teatro é político. “O teatro me trouxe a consciência política e a consciência de existência enquanto homem negro na sociedade brasileira”, afirma.
Seu processo de politização começou com o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, cuja obra aspira à transformação social e à igualdade através do teatro. Foi por causa dele que Wagner viajou à Alemanha pela primeira vez, em 1991, com uma bolsa do Instituto Goethe. “Eu vim para a Alemanha para conhecer Brecht”, conta.
Teatro pós-migrante
Em 1992, Wagner decidiu que queria ficar na Alemanha. Nos primeiros anos, ele dava aulas de dança, canto e teatro, enquanto estudava teatro na Universidade Livre de Berlim. Em 2003, organizou o primeiro festival de dança contemporânea brasileira em Berlim, o Brasil Move Berlim.
Começou a trabalhar como freelancer no Ballhaus Naunynstrasse em 2009, que na época era dirigido por Shermin Langhoff. Um ano antes, Shermin tinha introduzido um novo conceito artístico na casa, pelo qual ela hoje é conhecida na cena cultural alemã: o teatro pós-migrante.
“O teatro pós-migrante é o teatro onde a gente coloca em cena histórias que não foram contadas anteriormente, sob uma perspectiva não branca”, explica Wagner.
“O termo chama atenção para o que já está aqui há décadas – que é o caso das histórias de descendentes de imigrantes turcos, curdos, armênios, etc. –, para que haja a possibilidade de sair do papel de antagonista e assumir o papel de protagonista, dizendo: ‘nós estamos no palco contando as nossas histórias.’ Isso é o que transforma.”
Um projeto premiado em tempos de insegurança
Desde que Carvalho assumiu a direção do teatro em 2013, o programa da casa tem focado em histórias principalmente negras e queers. Perspectivas que ainda são raras na Alemanha: Carvalho e a afro-alemã Julia Wissert, que desde 2020 dirige o Teatro Dortmund, são até hoje os únicos diretores de teatro negros no país em um mercado onde homens brancos ainda são a maioria, segundo o jornal alemão Die Zeit.
É por isso que Wagner entende o Ballhaus Naunynstrasse também como um espaço de resistência. O slogan na sua camisa, título de um festival de teatro que acontece uma vez por ano na casa, confirma isso: Black Berlin Black – Resistência.
O esforço de Wagner para manter um espaço dedicado às experiencias marginalizadas vem sendo reconhecido. O Ballhaus Naunynstrasse, escolhido como espaço que “honra a democracia”, ganhou no início do ano um prêmio nacional de teatro, o Theaterpreis des Bundes, dotado com 200 mil euros. Em abril, Wagner entrou na lista dos 100 personagens mais influentes na cena cultural de Berlim do jornal alemão Tagesspiegel.
Para Wagner, os prêmios são muito significativos, pois vêm em tempos que pessoas marginalizadas estão cada vez mais ameaçadas na Alemanha, devido ao contexto político. Pesquisas atuais mostram que o apoio ao partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD) está crescendo, chegando a 19% das intenções de voto nas pesquisas mais recentes.
“Nosso teatro é diverso”
Os prêmios também mostram a importância de uma sociedade diversa, defende Wagner. “É necessário que tenha um espaço como esse para ressaltar histórias de pessoas que foram excluídas do papel de protagonistas de suas próprias histórias e de outras histórias durante séculos.”
O diretor sonha com um teatro em que qualquer pessoa possa assumir qualquer papel, independente da aparência. “O meu desejo, o desejo da casa, é de se tornar supérflua, no sentido de que não será mais necessário dizer que estamos fazendo teatro pós-migrante. Estamos fazendo teatro – qualquer pessoa pode fazer teatro”, diz.
Na noite em que falou à DW, dia de Iemanjá, Wagner trouxe para o público berlinense a obra Caminho das águas, da coreógrafa baiana Fernanda Costa. O público observava de cima as dançarinas, que se moviam ao som das ondas sob luzes azuis e um palco decorado com panos brancos.
No final da peça, Carvalho, que segue o candomblé desde a infância, desceu ao palco para as palavras finais, endereçadas em inglês à plateia, junto com uma saudação em iorubá à orixá: “Hoje eu gostaria de dizer: Odoyá Iemanjá.”