Em três dias, ao menos três barcos com mais de 1.000 estrangeiros afundaram ao sul da Itália, deixando centenas de mortos no mar Mediterrâneo. Na madrugada deste domingo (19/04) um pesqueiro com 700 imigrantes sem documentação naufragou nas águas do Canal da Sicília, próximo ao norte da Líbia, provocando “a pior tragédia vista no Mediterrâneo”, segundo a Acnur, a agência da ONU para refugiados. No dia seguinte, duas outras embarcações com respectivamente 300 e 150 pessoas afundaram.
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Agência Efe
Resgatados dias depois de naufrágio que matou 600 pessoas, cerca de 550 imigrantes chegam a Salerno, na Itália
A sucessão de tragédias incentivou a Comissão Europeia a propor um plano de ação em dez pontos, para limitar o número de vítimas — estratégia que “não passa de uma grande hipocrisia”, segundo o documentarista italiano Stefano Liberti, que acompanha há anos os fluxos migratórios no Mediterrâneo. Autor do livro “A sud di Lampedusa: Cinque anni di viaggi sulle rotte dei migranti” (Ao sul da Lampedusa: cinco anos de viagens na rota dos migrantes; 2008; sem edição brasileira) e diretor, junto com Andrea Segre, do documentário “Mare chiuso” (Mar fechado; 2012), ele crê que a estratégia europeia de considerar os traficantes como principais responsáveis é um erro. Liberti argumenta ainda que o aumento no número de mortes nos naufrágios está relacionada à diminuição dos recursos destinados pela União Europeia ao tema.
“Eles são apenas o subproduto das políticas europeias de fechamento de fronteiras”, assegura Liberti, em entrevista concedida de Roma a Opera Mundi. “Se os migrantes sobem nos barcos e arriscam a morte no mar é porque eles não têm outra escolha. Eles não são forçados por traficantes”, completa, explicando que um refugiado sírio fugindo das bombas não tem permissão para pedir um visto em uma embaixada europeia, bem como uma criança fugindo da ditadura eritreia não pode tomar um avião para chegar à Europa.
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Leia abaixo a entrevista concedida pelo documentarista e estudioso dos fluxos migratórios no Mediterrâneo Stefano Liberti:
Opera Mundi: Diante da tragédia, a diplomacia europeia convocou uma reunião especial dos ministros do Interior e das Relações Externas, com a idéia de se concentrar na punição dos traficantes. Como o senhor avalia esta estratégia?
Stefano Liberti: Eu acho que as pessoas confundem as causas com as consequências. No discurso oficial da União Europeia, parece que os migrantes partem pelo mar, porque eles são forçados pelos traficantes. A verdade é que existem traficantes porque há uma demanda. Os contrabandistas são o subproduto das políticas europeias de fechamento de fronteiras: se a viagem vira ilegal, alguém vai montar um negócio para organizar ainda assim esta viagem para quem quer ou precisa viajar. Quando o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, diz que os contrabandistas são os traficantes de escravos do século XXI, quer convencer o público de que os migrantes são vítimas de tráfico. É absolutamente falso: com poucas exceções, os migrantes que viajam por mar, o fazem de maneira voluntária e consciente. Eles sabem o que eles vão enfrentar — o risco de morrer. Mas eles não têm escolha, já é a única forma que eles têm de vir para a Europa e garantir o seu futuro.
OM: Pelo menos 1.650 pessoas foram engolidas pelo Mediterrâneo desde o início do ano, como explicar este número tão alto?
SL: O aumento do número de mortes está ligado à redução dos esforços de socorro colocados pela União Europeia, e em especial pela Itália. No mesmo período de 2014, de janeiro a abril, 56 imigrantes morreram no mar, 30 vezes menos do que este ano. O que mudou? Em 2014, estava em curso a “Operação Mar Nosso” (Mare Nostrum), que o governo italiano tinha lançado após o duplo naufrágio de outubro 2013 em que desapareceram 600 migrantes. A missão solicitava o uso da Marinha Militar com o objetivo de procurar os barcos que estavam em perigo e salvá-los. Em pouco mais de um ano foram resgatadas 170 mil pessoas. No final de 2014, a Itália decidiu fechar a Operação Mar Nosso, que foi substituída pelo projeto Triton, coordenado pela agência europeia de fronteiras, chamada Frontex. Triton é uma missão com menos recursos financeiros (um terço do orçamento da antiga Mar Nosso) e com um mandato mais estreito (os veículos de emergência não podem ir além das 30 milhas náuticas).
OM: Por que o governo italiano encerrou a Operação Mar Nosso?
SL: Itália pediu repetidamente para transformar a Operação Mar Nosso em uma missão europeia com divisão de custos. Bruxelas escolheu outro caminho, porque alguns Estados-membros, e até a própria Comissão Europeia, não concordavam com a abordagem italiana de uma grande missão de resgate. O premiê britânico, David Cameron, disse que os navios europeus no Mediterrâneo eram os fatores de atração, que incentivam as pessoas a emigrar. Tanto é assim que a Grã-Bretanha nem sequer colocou um centavo para financiar Triton. Agora, a verdade está lá para todos verem: os navios de resgate italianos já se foram, mas as pessoas continuam tentando chegar à Europa. A única diferença é que morrem mais.
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Stefano Liberti codirigiu o documentário 'Mar Fechado' (2013), sobre os fluxos migratórios do Mediterrâneo
OM: Qual é o destino de quem consegue chegar à Itália ou é interceptado no mar?
SL: A Itália se tornou um país de trânsito. A maioria dos migrantes que chegam por mar, especialmente aqueles que têm recursos financeiros, como os sírios, vão diretamente para o norte da Europa, onde eles têm melhores condições de aceitação e uma maior possibilidade de inclusão profissional e social. No ano passado, 70 mil sírios chegaram à Itália. Destes, apenas 2 mil pediram o asilo, os outros sumiram. É preciso lembrar que o governo italiano, no momento em que lançou a Operação Mar Nosso, optou deliberadamente por deixar ir embora os migrantes sem identificá-los. Esta foi uma violação da Convenção de Dublin, segundo a qual o migrante deve pedir formalmente o asilo no primeiro país europeu em que ele chega, e onde ele deve ser identificado com impressões digitais. Durante vários meses, a Itália não identificou as pessoas que chegavam e as deixava continuar a viagem para a Alemanha, a Suécia ou a Dinamarca.
OM: Que acontece com os migrantes sem recursos financeiros?
SL: Os migrantes que têm menos recursos econômicos — em particular aqueles que vêm da África subsaariana — estão sendo colocados em centros de acolhimento onde ficam vários meses esperando que seus pedidos de asilo sejam examinados. As condições de acolhimento são muito ruins na Itália, os centros são muitas vezes improvisados e não preveem qualquer atividade para os migrantes, que passam assim meses e meses em um limbo de incerteza. Esta é também a razão pela qual aqueles que podem vão embora.
OM: Qual é a reação da opinião pública italiana e dos principais partidos?
SL: O tema das chegadas de imigrantes em situação clandestina é muito alardeado pela Liga do Norte, o partido xenófobo italiano. Mas, no nível do debate político, a polêmica não cresce muito, até porque os principais partidos de esquerda e direita fazem parte do governo e, portanto, compartilham a responsabilidade sobre as escolhas políticas. A opinião pública tem uma visão um pouco distorcida da situação e frequentemente acusa os requerentes de asilo de desviar recursos e empregos normalmente destinados à população nativa. Mas depois de ver os locais de desembarques, muitos também se tornam atores de grandes episódios de solidariedade.
OM: Alguns políticos italianos defenderam a intervenção militar na Líbia, a fim de garantir a volta de um Estado de Direito capaz de controlar suas fronteiras. Pode funcionar?
SL: Eu acho que o governo italiano gostaria de voltar a usar a velha política, aquela que delegava para os estados do Norte de África o controlo dos fluxos migratórios, de tal maneira que eles bloqueem as pessoas antes mesmo de sua saida. Esta é a grande contradição da política italiana e europeia: nós fazemos tudo para parar os migrantes que saem, mas quando chegam nós lhes concedemos o asilo político, reconhecendo assim que o seu pedido de proteção era legítimo. A verdade é que se a Líbia voltaR a funcionar como um Estado de Direito — o que parece muito improvável num futuro próximo — os fluxos migratórios vão encontrar outras rotas. Por exemplo, poucas pessoas sabem, até porque é menos impressionante do que as chegadas por mar, que agora a rota da Europa Oriental através dos Bálcãs é quase mais usada do que a do Mediterrâneo. Sempre que uma rota se fecha, outra se abre. É um fenômeno que não pode ser interrompido apenas fechando fronteiras.
Assista ao trailer, em italiano, do documentário 'Mar Fechado' (2012), codirigido por Stefano Liberti:
OM: Fabrice Leggeri, o diretor da agência Frontex reconheceu na última segunda-feira (20) os limites da operação Triton, dizendo que a “União Europeia não tinha competência para salvamento no mar, mas, mesmo assim, contribuía para salvamento no mar com seis navios”. O que a UE pode fazer para acabar com essa tragédia?
SL: A União Europeia deve proporcionar meios para o acesso legal às pessoas que vêm em busca de asilo. Quando analisamos a nacionalidade de chegadas nos últimos anos, vemos que eles são na sua maioria cidadãos de países em guerra (Síria, Nigéria, Mali) ou cidadões de regimes ditatoriais (Eritreia, Gâmbia). Eles têm direito à proteção. E, de fato, conseguem esta proteção quando pisam em território europeu. Mas, para chegar, eles têm que atravessar o mar (e às vezes até o deserto), arriscando suas vidas. Por que não permitir que façam os pedidos de asilo nas embaixadas europeias em países de trânsito? No entanto, no futuro imediato, para evitar mais mortes, a União Europeia deve criar uma enorme operação de resgate como era Mar Nosso, com os recursos e o mandato adequados para a situação de emergência atual.
OM: De acordo com vários políticos, a chegada destes migrantes fortalece os partidos de extrema-direita. A Europa pode continuar a ser uma terra de asilo?
SL: A Europa é um continente cada vez mais velho e que se recolhe sobre si mesma diante do medo do outro. Os partidos xenófobos crescem e o populismo está ganhando mais apoio. Na realidade, porém, se olharmos para os números, vemos que o medo de uma invasão é totalmente exagerado. Em 2014, chegaram à Itália por mar 170 mil migrantes. A União Europeia como um todo tem uma população de 500 milhões de habitantes. É uma proporção muito baixa. Eu acho que alguns partidos políticos escalam esse medo de invasão para fins eleitorais, mas provocando danos culturais gigantescos que vamos a pagar por vários anos.