No dia 20 de julho, uma pessoa ainda não identificada jogou spray de pimenta no banheiro masculino de um sindicato histórico na Cidade da Guatemala. O local abrigava a festa de aniversário de um grupo de ativistas de direito transgênero após a 19ª Parada Anual LGBTIQ+ na cidade. Dois ativistas, que estavam no banheiro naquela hora, foram diretamente atingidas pelo gás. Outras pessoas abandonaram a festa com irritação nos olhos e gargantas.
Três horas depois, à 1h15 da manhã, oito policiais armados forçaram a entrada em outro evento pós-parada que acontecia no escritório de um grupo que defende o acesso a remédios essenciais para pessoas vivendo com HIV. Sem mandado, eles entraram no prédio com a desculpa de que a hora-limite para venda de álcool (que não se aplica para eventos privados) termina à 1h. Uma vez dentro, testemunhas me disseram, os policiais intimidaram os presentes e pressionaram os organizadores a encerrar a festa.
“O que eles estavam fazendo era ilegal. Eles foram violentos e estavam armados com pistolas de alto calibre”, disse Aldo Dávila, o segundo membro abertamente LGBTIQ+ do Congresso guatemalteco, que foi eleito em junho e vai assumir o cargo em janeiro. Além de fazer parte da equipe do comitê de organização da parada, e ex-diretor do grupo que dava a festa, Dávila estava entre os presentes naquela noite.
Ele me disse que a polícia afirmou estar especificamente procurando por “O Deputado”. Mas, mesmo depois de se apresentar, e se identificar, os policiais permaneceram no prédio por meia hora, tentando encerrar o evento. E então: mais spray de pimenta. A polícia o jogou no ar, as pessoas fugiram do prédio, ambulâncias foram chamadas, e diversas pessoas foram levadas para um hospital próximo.
A homossexualidade não é ilegal na Guatemala, e, desde os anos 1990, ao fim da guerra civil de 36 anos que o país atravessou, a comunidade LGBTIQ+ ficou mais visível dentro da sociedade. Mas o casamento entre pessoas do mesmo sexo e uniões civis não são legais; pessoas LGBTIQ+ não estão especificadamente incluídas na maioria das leis antidiscriminação; movimentos religiosos ultraconservadores são politicamente influentes; e crimes de ódio continuam crescendo violentamente na comunidade.
Na noite de 20 de julho, um grupo de pessoas também foi assediado pela polícia na rua, em frente a um bar que é conhecido na região por ser LGBTIQ+ friendly. Juntos, esses incidentes foram vistos pelos ativistas com quem falei como uma aceleração extrema nas já crescentes agressões contra a comunidade, em meio a um discurso de ódio que virou mainstream e campanhas eleitorais homofóbicas.
Os ativistas afirmam que o papel da polícia nos eventos daquela noite foram particularmente preocupantes. E alertaram que o pior ainda está por vir, já que, neste final de semana, os guatemaltecos votam no segundo turno das eleições presidenciais, nas quais ambos os candidatos, Sandra Torres (partido UNE) e Alejandro Giammattei (partido Vamos), assumiram posições públicas contra os direitos LGBTIQ+.
Nas campanhas, os dois candidatos se comprometeram a passar a intitulada “Lei de Proteção da Família” para proibir a possibilidade de casamento igualitário, criminalizar “sodomia” e toda a educação em questões de diversidade sexual, além de banir abortos em todas as circunstâncias. Este projeto, rascunhado por grupos religiosos conservadores, está esperando a terceira (e final) votação no Congresso.
No último ano, esse projeto de lei se tornou “futebol político”, disse Sandra Morán, a primeira deputada abertamente lésbica, que está deixando o Congresso no final de 2019 após ser preterida para a reeleição pelo partido. Ela me disse que este projeto foi apresentado ao Congresso diversas vezes, durante momentos-chave, para distrair as pessoas de outros assuntos, tais como a luta contra a corrupção, ou mesmo para angariar apoio conservador ao atual governo.
Dávila também descreveu como o discurso de ódio contra a comunidade estava sendo usada para criar divisões e polarizar os eleitores nos campos políticos mais extremos. “Eles precisam de um inimigo interno, para manter a população dividida e, agora que nós não estamos mais em guerra, nossa comunidade é um alvo fácil”, diz.
“Estratégia Bolsonaro’”
“Somos organizados e articulados. Eles querem nos silenciar e estão usando a polícia para tal”, acrescenta Lola Vásquez, vice-diretora do grupo OTRANSactivists, cujo 15º aniversário, no mês passado, foi interrompido pelo ataque anônimo de spray de pimenta. “Eles perseguem nossa comunidade para obter ganhos políticos”, disse, mas reforçou: “há vidas reais que estão sendo afetadas”.
“Eu chamo de ‘a estratégia Bolsonaro’”, diz Jorge López Sologaistoa, outro membro do comitê organizador da parada e diretor da OASIS, um grupo de apoio à comunidade LGBTIQ+ – o primeiro do gênero – fundado no começo dos anos 1990. Com isso, ele quer dizer que existe uma “estratégia continental, de norte a sul”, começando com a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, seguido do surgimento de líderes linha-dura, conservadores e populistas no Brasil, El Salvador e Costa Rica.
GayGuatemala/Facebook
Parada LGBTIQ+ na Cidade da Guatemala: repressão policial pós-evento preocupa ativistas
“Eles todos tinham fortes plataformas religiosas, antiaborto e antigay, e usaram um discurso conservador e odioso contra a comunidade LGBTIQ+ para fomentar apoio”, explicou López, respondendo à instabilidade econômica com “políticas de segurança de mão firme”. Ele enfatiza: “então isso não é só sobre a Guatemala, está acontecendo em toda a região.”
Ataques de todos os lados
Pouco antes das celebrações do Orgulho LGBTIQ+ deste ano, pessoas da comunidade foram atacadas publicamente por quase todos os partidos políticos e influentes grupos de lobby religiosos. Seus discursos foram amplificados por meio das redes sociais, disse Vásquez, descrevendo “comentários cada vez mais violentos, incluindo ameaças para atacar ou matar pessoas LGBTIQ+.” Houve também relatos de violência física extrema.
Em março, José Roberto Díaz, voluntário de 18 anos de um grupo de direitos LGBTIQ+ chamado Trabalhando Juntos, foi morto em Huehuetenango, uma cidade nas montanhas do oeste do país. No mês seguinte, Betzi Esmeralda Có Sagastume (também com 18) e Kelli Maritza Villagrán (26), um casal lésbico, foram encontradas mortas em El Progreso, a cerca de uma hora de carro da Cidade da Guatemala. Em ambos os casos, os corpos foram encontrados com ofensas homofóbicas marcadas na pele.
Segundo a deputada Morán, o fato de que os crimes contra LGBTIQ+ não serem nominalmente reconhecidos pela lei guatemalteca significa que não há registro oficial desse tipo de ato – além de haver pouco apoio político a iniciativas para preveni-los. Isso, apesar de se saber por um monitor da sociedade civil que, no ano passado, entre 24 e 33 membros da comunidade LGBTIQ+ foram mortos no país.
Dávila também cita casos de espionagem, arrombamentos e assédios nos escritórios de grupos de direitos humanos, incluindo o Gente Positiva, que era a sede da festa do dia 20 de julho, invadida pela polícia para tentar encerrá-la – apesar de o Escritório do Ombudsman para Direitos Humanos ter emitido uma ordem de proteção específica instruindo a polícia a proteger o grupo e garantir sua segurança.
Quando chegou a época da Parada, as pessoas estavam nervosas. Ativistas com quem eu falei estavam preocupadas que grupos de pressão conservadores, além de igrejas evangélicas, tentariam obstruir ou cancelar a marcha. Rumores se espalharam de que ativistas religiosos planejavam provocar confrontos durante o evento – e que a polícia poderia responder com spray de pimenta para desmobilizar o ato.
Na Guatemala, o direito ao protesto é protegido pela Constituição e grupos da sociedade civil não precisam de permissão para fazer assembleias públicas ou manifestações, mas precisam informar o Ministério do Interior sobre datas planejadas, horas e rotas.
Eles também podem pedir apoio de segurança à Polícia Nacional Civil (PNC), o que a organização da parada fez. Normalmente, leva de 24 a 72 horas para que os pedidos sejam aprovados, de acordo com ativistas com quem falei. Neste ano, no entanto, duas semanas se passaram e não houve resposta.
O Ombudsman de Direitos Humanos, Jodrán Rodas, apelou à Corte Constitucional para emitir uma resolução explicitamente apoiando a livre movimentação da marcha na capital – o que ela fez, alguns dias antes de 20 de julho.
No final, a marcha foi adiante como planejado, com poucos problemas e confrontos, em meio ao apoio público e participação de agências da ONU e das embaixadas de Canadá, Reino Unido e Estados Unidos. Ao contrário do que aconteceu depois, naquela noite.
Após a polícia invadir a festa no escritório, ela permaneceu do lado de fora do prédio por uma hora – saindo do local pouco antes de representantes do Ombudsman de Direitos Humanos chegarem. Ativistas me disseram que, três dias depois, vários grupos de direitos LGBTIQ+ denunciaram formalmente o que aconteceu naquela noite ao Ombudsman, assim como ao procurador público para Direitos Humanos.
A Parada da Guatemala de 2019 será lembrada não por suas expressões de felicidade usuais – mas pelos ataques que aconteceram em todo o centro histórico da capital contra pessoas LGBTIQ+ e organizações.
Os ativistas com quem falei dizem que esperam que as ameaças aos direitos e à igualdade aumentem nos próximos meses – incluindo a iminente possibilidade de que a “Lei de Proteção da Família” seja aprovada pelo Congresso, ou até mesmo vindas do próximo governo, revertendo muitos dos ganhos em direitos humanos que foram feitos no país desde a assinatura dos acordos de paz em 1996.
(*) Texto publicado em openDemocracy. Tradução: Rafael Targino