O IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), grupo que reúne educadores e formadores da educação popular, acadêmicos, sindicalistas de diferentes categorias e gestores de políticas públicas, afirmou em nota enviada a Opera Mundi nesta quinta-feira (24/09) que o acordo feito pela Volkswagen do Brasil para indenizar funcionários da fábrica perseguidos pela ditadura está “aquém do que foi negociado nos últimos cinco anos” e é uma tentativa “rasa e distorcida” de fazer uma retratação.
“O acordo firmado está aquém do que foi negociado nos últimos cinco anos e corre o risco de rebaixar o parâmetro das reparações que serão exigidas em novas inciativas de responsabilização de empresas que cometeram graves violações de direitos humanos na ditadura”, afirma o grupo.
A montadora quer, para o IIEP, “fazer uma retratação rasa e distorcida, em que trabalhará a cumplicidade com a ditadura como um desvio de conduta de alguns funcionários, e não uma cooperação sistemática e orgânica com a repressão durante mais de três décadas”.
“O que incomoda a Volkswagen é a imagem e o marketing. As doações feitas serão tratadas pela empresa como uma benevolência e não como uma reparação por sua cumplicidade com a ditadura. Nesse sentido, ela sairá limpa dessa história”, afirmam, lembrando que a Volkswagen “fez todas as manobras e protelações possíveis.”
Assinam a nota Adriano Diogo, presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo entre 2012 e 2015; José Luiz Del Roio, ex-senador italiano e diretor do Instituto Astrojildo Pereira; Rosa Cardoso, comissionária da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) e coordenadora do grupo de trabalho Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical; e Sebastião Neto, coordenador do IIEP.
De acordo com o instituto, uma proposta semelhante ao acordo fechado esta semana com o Ministério Público já havia sido apresentada em abril. Na época, afirma o grupo, a recusa foi unânime.
O grupo diz que, em que pese o fato de os autores da representação tenham manifestado seu desacordo com a proposta no último mês, não houve comunicação por parte do Ministério Público até esta segunda (21/09), quando o MP comunicou que o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) seria assinado.
“Aqueles que acompanharam o Inquérito, apresentaram a documentação, reuniram testemunhas e lutaram pelo desenvolvimento do caso não foram ouvidos. Além de tudo, foi imposto um sigilo sobre as cláusulas do acordo. Sequer foram informados da data em que o TAC seria firmado. Surpreendentemente, a imprensa alemã noticiou a assinatura do acordo com os valores e cláusulas combinadas”, explicam.
Memorial
A principal proposta do IIEP, de criar um Espaço de Memória dos Trabalhadores, foi, segundo o grupo, “diluída”.
“A empresa negou recursos para o projeto de Lugar de Memória das Lutas dos Trabalhadores, em local público de ao menos 500 metros quadrados, já em negociação avançada com a Prefeitura de São Paulo. Além disso, como confirmado por nota publicada hoje pelo Ministério Público Federal, o acordo final prevê o repasse de R$9 milhões ao Fundo de Defesa Direitos Difusos (FDD) do Estado de São Paulo e ao FDD Federal, que pertence ao Ministério da Justiça. Os termos eram inaceitáveis para as organizações envolvidas no processo e contrariavam toda a negociação ao longo destes cinco anos”, diz o texto.
“Serão repassados R$ 6 milhões para o Memorial da Lula pela Justiça, encampados pela OAB-SP, que tem com escopo central a atuação dos advogados de presos e perseguidos políticos na Justiça Militar. (…) Ou seja, os recursos são para a conclusão do Memorial, não para a memória das lutas dos trabalhadores, que terá apenas um pequeno espaço, de aproximadamente 50 m², inviabilizando, evidentemente, qualquer concepção acumulada entre os lutadores por verdade, memória, justiça e reparação, a exemplo de iniciativas em outros países onde houve de fato passos dados em torno da justiça de transição”, afirmam.
Em nota divulgada na noite de quarta (23/09), a Volkswagen do Brasil disse que “quer promover o esclarecimento da verdade sobre as violações dos direitos humanos naquela época [da ditadura]”, mas alegou que “não foram encontradas evidências claras de que essa cooperação [com os militares] foi institucionalizada na empresa”. A VW alega ser “a primeira empresa estrangeira a enfrentar seu passado de forma transparente durante a ditadura militar no Brasil”.
Colaboração com o regime
A própria Volkswagen, após pressão de acionistas e das vítimas da ditadura, iniciou uma investigação interna que concluiu que a montadora colaborou ativamente com o regime militar.
Na época, o historiador Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld – contratado pela própria Volks – disse que a empresa “compartilhava seus objetivos econômicos e de política interna” com os militares. “A correspondência com a diretoria em Wolfsburg evidenciou até 1979 um apoio irrestrito ao governo militar que não se limitava a declarações de lealdade pessoais”, afirma.
Segundo Kopper, a chefia da segurança da Volks tinha relações diretas com os agentes da repressão e as ações da ditadura eram de conhecimento tácito da diretoria da empresa. Opera Mundi acompanha o caso extensivamente há mais de cinco anos, desde que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) passou a investigar os arquivos brasileiros da Volkswagen.
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“Em 1969, iniciou-se a colaboração entre a segurança industrial e a polícia política do governo (DEOPS), que só terminou em 1979. Essa colaboração ocorreu especialmente através do chefe do departamento de segurança industrial Ademar Rudge, que, devido a seu cargo anterior como oficial das Forças Armadas, sentia-se particularmente comprometido com os órgãos de segurança. Ele agia por iniciativa própria, mas com o conhecimento tácito da diretoria.”
“O delegado Lúcio Vieira, da polícia política, comunicou aos seus superiores sobre a boa colaboração com o departamento de segurança durante as investigações contra os comunistas na VW. Os comunicados do departamento de segurança sobre folhetos e jornais ilegais encontrados ajudaram a polícia política a apurar informações sobre atividades comunistas na VW, fechando o círculo dos suspeitos”, afirmou o historiador.
Reprodução/ARD
Acordo fechado pela Volkswagen está aquém do que foi negociado, diz IIEP
Ex-funcionário confirmou torturas
Em 2018, o ex-funcionário Lúcio Bellentani (1944-2019) deu uma entrevista a Opera Mundi em que relatou a tortura que sofreu dentro da fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo em junho de 1972.
Bellentani foi preso e agredido em uma sala no Departamento Pessoal da VW e só tomou conhecimento da acusação depois de um ano detido. Bellentani era membro do Partido Comunista Brasileiro e ativista sindical quando foi preso e torturado.
“Estava na minha bancada de trabalho quando fui surpreendido com um cano de metralhadora nas costas, me pegaram, me algemaram e me conduziram para o departamento pessoal, e lá eu comecei a ser espancado e torturado, dentro da empresa. Depois fui para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], onde permaneci por 8 ou 9 meses, sem registro, sem coisa nenhuma”, conta.
“Depois de um ano preso, quando foi o julgamento, fui absolvido por falta de provas. Posteriormente, fui condenado em Brasília a dois anos de prisão e acabei cumprindo um ano e oito meses, sob a acusação de ativismo sindical e organização de uma célula do Partido Comunista dentro da empresa”, diz.
Fritz Stangl
Segundo a CNV, o responsável pela criação do aparato repressivo dentro da Volkswagen do Brasil teria sido Fritz Paul Stangl, criminoso nazista que fugiu para o Brasil depois da Segunda Guerra Mundial.
No capítulo dedicado à repressão aos operários, intitulado ‘Violações de direitos humanos dos trabalhadores’, a CNV escreve que Stangl, preso no Brasil em 1967 e extraditado para a Alemanha, foi o “funcionário da Volkswagen do Brasil responsável pela montagem do setor de vigilância e monitoramento” da unidade do ABC paulista. O aparato acompanhava de perto o dia a dia da fábrica e, especialmente atento às atividades sindicalistas consideradas “subversivas”, estava em constante contato com órgãos da repressão do governo brasileiro na ditadura.
O relatório de Kopper, no entanto, diz que a conclusão da CNV está “incorreta”. “A VW do Brasil o contratou para tarefas de manutenção sem conhecimento do seu histórico e somente após a sua prisão ficou sabendo dos seus crimes de guerra”, afirma. A figura de Stangl é descrita em um capítulo exclusivo do relatório.
Leia a íntegra da nota do IIEP
São Paulo, 23 de setembro de 2020.
NOTA DE ESCLARECIMENTO: ACORDO DO MINISTÉRIO PÚBLICO COM VOLKSWAGEN É FECHADO SEM REPARAÇÃO DA EMPRESA POR SUA CUMPLICIDADE COM A DITADURA
Antecedentes
A Volkswagen é a primeira empresa a fechar um acordo institucional por cumplicidade com graves violações de direitos humanos perpetradas na ditadura brasileira, graças à pressão enorme de muita gente e o trabalho contínuo de anos, além do acolhimento do Ministério Público, na sua função institucional.
O Caso Volkswagen tem origem nas audiências da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva, presidida pelo Deputado Adriano Diogo, realizadas em conjunto com o GT Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical, coordenado pela então presidenta da Comissão Nacional da Verdade (CNV), Dra. Rosa Cardoso da Cunha. O GT apresentou 43 recomendações à CNV, visando à busca por reparações coletivas pelas violações de direitos humanos cometidas contra a classe trabalhadora. Em 2015, o Fórum de trabalhadores por verdade, justiça e reparação, apresentou denúncia ao Ministério Público Federal, apoiado por todas as 10 Centrais Sindicais brasileiras e personalidades de Direitos Humanos em setembro de 2015. O trabalho de pesquisa e sistematização da legislação internacional sobre o tema foi realizado pelo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas).
Recursos para memorial dos trabalhadores serão destinados a outros fins
O acordo firmado está aquém do que foi negociado nos últimos cinco anos e corre o risco de rebaixar o parâmetro das reparações que serão exigidas em novas inciativas de responsabilização de empresas que cometeram graves violações de direitos humanos na ditadura.
Em abril deste ano, foi apresentada aos autores da representação que resultou na abertura do inquérito um acordo semelhante ao divulgado hoje à tarde pela imprensa alemã e repercutido acriticamente no Brasil. Já naquele momento, a recusa foi unânime.
A empresa negou recursos para o projeto de Lugar de Memória das Lutas dos Trabalhadores, em local público de ao menos 500 metros quadrados, já em negociação avançada com a Prefeitura de São Paulo. Além disso, como confirmado por nota publicada hoje pelo Ministério Público Federal hoje (23/09), após as 18h, o acordo final prevê o repasse de R$9 milhões ao Fundo de Defesa Direitos Difusos (FDD) do Estado de São Paulo e ao FDD Federal, que pertence ao Ministério da Justiça. Os termos eram inaceitáveis para as organizações envolvidas no processo e contrariavam toda a negociação ao longo destes cinco anos.
Também serão repassados 6 milhões para o Memorial da Lula pela Justiça, encampados pela OAB-SP, que tem com escopo central a atuação dos advogados de presos e perseguidos políticos na Justiça Militar. O valor é “suficiente para a conclusão de sua implantação na sede da antiga auditoria militar em São Paulo” (nota publicada no site do MPF). Ou seja, os recursos são para a conclusão do Memorial, não para a memória das lutas dos trabalhadores, que terá apenas um pequeno espaço, de aproximadamente 50 m², inviabilizando, evidentemente, qualquer concepção acumulada entre os lutadores por verdade, memória, justiça e reparação, a exemplo de iniciativas em outros países onde houve de fato passos dados em torno da justiça de transição.
Muito embora os autores da representação tenham manifestado formalmente o desacordo com a proposta, durante as últimas quatro semanas, não houve qualquer comunicação por parte do Ministério Público. Apenas nesta última segunda feira, dia 21, foi enviado despacho comunicando que seria assinado o acordo porque era uma prerrogativa do Ministério Público definir os termos do TAC, citando a legislação pertinente.
Aqueles que acompanharam o Inquérito, apresentaram a documentação, reuniram testemunhas e lutaram pelo desenvolvimento do caso não foram ouvidos. Além de tudo, foi imposto um sigilo sobre as cláusulas do acordo. Sequer foram informados da data em que o TAC seria firmado. Surpreendentemente, a imprensa alemã noticiou a assinatura do acordo com os valores e cláusulas combinadas.
Somos favoráveis aos repasses de recursos para trabalhos de Direitos Humanos, como a Vala de Perus, e um fundo para investigar outras empresas cúmplices do regime ditatorial, de acordo com o que sempre propusemos, desde o início. Mas a principal proposta dos signatários – um Espaço de Memória dos Trabalhadores – foi absolutamente diluído.
Também foi divulgado que serão repassados 16,5 milhões para a Associação de Vitimados pela Volkswagen – Heinrich Plagge. A demanda desses trabalhadores vitimados foi aceita em março de 2018 como uma das cláusulas de negociação, o que consideramos justo. Contudo, esse dinheiro será transferido em caráter de “doação” pela empresa, como uma benevolência da Volkswagen.
Outra questão é a obrigação de retratação e pedido de desculpas da empresa à sociedade. A empresa quer fazer uma retratação rasa e distorcida, em que trabalhará a cumplicidade com a ditadura como um desvio de conduta de alguns funcionários, e não uma cooperação sistemática e orgânica com a repressão durante mais de três décadas.
O que incomoda a Volkswagen é a imagem e o marketing. As doações feitas serão tratadas pela empresa como uma benevolência e não como uma reparação por sua cumplicidade com a ditadura. Nesse sentido, ela sairá limpa dessa história.
Nesses 5 anos o Ministério Público falava com a Volks e consultava eventualmente os signatários da representação. A empresa fez todas manobras e protelações possíveis. Importante frisar que não é o único caso de impunidade da Volkswagen na sua história brasileira, tendo em vista, por exemplo, o caso de trabalho escravo na Fazenda Rio Cristalino e os incêndios nas florestas do Pará. Não por acaso, Andreas Renschler, membro da diretoria da Volkswagen AG, saudou entusiasmado a eleição de Bolsonaro, ainda em dezembro de 2018. Seguiu a tradição da corporação: em 1971, Werner Shmidt, então presidente da empresa no Brasil, declarou à imprensa alemã que “a polícia e os militares torturam prisioneiros. Dissidentes políticos (…) são assassinados. Mas uma análise objetiva deveria sempre ter em conta que as coisas simplesmente não avançam sem firmeza. E as coisas estão avançando”.
A Lei da Anistia protege os torturadores e sua reinterpretação dorme há 8 anos nas gavetas do Ministro Fux. Os generais da ditadura e torturadores seguem impunes. As empresas e empresários cúmplices da ditadura têm sono tranquilo. Dormem mal os perseguidos e presos políticos e suas famílias.
Adriano Diogo
Presidente da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo – Rubens Paiva (2012-2015)
José Luiz Del Roio
Ex-Senador da República Italiana e diretor do Instituto Astrojildo Pereira
Rosa Cardoso
Comissionária da Comissão Nacional da Verdade (2012-2014) e coordenadora do Grupo de Trabalho Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical (GT-13)
Sebastião Neto
Secretário-executivo do Grupo de Trabalho Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical (GT-13) da Comissão Nacional da Verdade (2013-2014) e coordenador do IIEP