Sexta-feira, 18 de abril de 2025
APOIE
Menu

Milhares de pessoas marcharam por toda a Argentina, nesta segunda-feira (24/03), no aniversário do golpe de Estado de 1976, que deu início à última ditadura militar (1976-1983) no país e deixou cerca de 30 mil desaparecidos, segundo órgãos defensores dos direitos humanos.

O ato principal aconteceu na emblemática Praça de Maio, onde uma multidão lotou as ruas de Buenos Aires em uma das maiores manifestações dos últimos anos. A participação superou inclusive a do último ano — o primeiro 24 de março sob o governo de Javier Milei, que até então tinha sido a maior mobilização na data.

A data tornou-se um marco na resistência contra as políticas de ajuste econômico, demissões em massa e as declarações negacionistas de autoridades do governo.

Receba em primeira mão as notícias e análises de Opera Mundi no seu WhatsApp!
Inscreva-se

Sob o slogan “30 mil companheiros desaparecidos, presentes!”, os manifestantes uniram a luta histórica pela punição aos crimes da ditadura à forte rejeição às medidas do governo do presidente de extrema direita.

“Milei, lixo, você é a ditadura” foi um dos cantos mais repetidos durante o dia. 

“Mães da Praça, o povo as abraça”

Desde a manhã, organizações sociais, sindicais e de bairro promoveram atividades em várias partes do país. “Não podemos esquecer. Viemos todos os anos para manter viva a memória dos nossos companheiros”, disse Daniel Ghigliazza, 78 anos, ao Brasil de Fato, segurando a foto de um parente desaparecido.

Como faz todo ano, Daniel foi à praça com a esposa e os netos, que hoje fazem parte do centro estudantil da escola deles. Um exemplo das pontes entre gerações que unem as lutas do passado e do presente.

Mais uma vez, a praça virou um mosaico de lutas e memórias. No ritmo lento das Mães da Praça de Maio — as primeiras a chegar, com seus lenços bordados com os nomes dos filhos —, a marcha seguiu em meio a cantos que misturavam palavras de ordem pela memória com protestos contra a situação atual do país. Ao redor da bandeira com as fotos em preto e branco dos desaparecidos, milhares entraram na praça gritando: “Mães da Praça, o povo as abraça”.

Às 16h30, começou o ato principal no palco montado atrás da Casa Rosada, sede do governo argentino. Na frente da multidão, Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio; Taty Almeida e Elia Espen, da Linha Fundadora das Mães da Praça de Maio; e Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, foram os quatro principais oradores que leram o documento de consenso.

“Não esquecemos, não perdoamos e não nos reconciliamos” foi um dos slogans centrais do evento. O texto também pedia o fim das “demissões nos setores público e privado” e “justiça por Pablo Grillo”, o fotógrafo gravemente ferido pela repressão policial durante a marcha dos aposentados em 12 de março.

“Hoje, Pablo Grillo está lutando entre a vida e a morte. Acolhemos sua família e exigimos: justiça por Pablo Grillo e punição para os responsáveis! Fora Bullrich! Revogação do protocolo antipiquete inconstitucional!”, dizia o texto, em referência à ministra da Segurança, Patricia Bullrich, que ordenou a repressão brutal contra a mobilização dos aposentados.

Abuelas de Plaza de Mayo – Sitio oficial/Facebook
Organizações de direitos humanos denunciam que cerca de 30 mil pessoas desapareceram devido a ditadura militar

Com voz firme, Carlotto lembrou a luta incansável para recuperar a identidade dos netos roubados durante a ditadura. “Já resolvemos 139 casos”, afirmou, destacando que “há apenas dois meses, restituímos a identidade de um neto e uma neta que nunca desconfiaram de sua origem”. Ela também convocou a sociedade a ajudar a encontrar os netos que ainda estão desaparecidos.

Já Pérez Esquivel aproveitou para denunciar: “Rejeitamos a destruição da saúde pública, o esvaziamento dos hospitais e o ataque à educação gratuita”.

O documento das organizações foi duro na rejeição às medidas do governo, exigindo a revogação das principais leis e reformas promovidas por Milei.

“Há 48 anos, Rodolfo Walsh publicou sua Carta Aberta à Junta Militar, denunciando a miséria planejada, fruto do plano econômico da época. Conhecemos bem quem se beneficiou do sangue dos 30 mil: os Blaquier, os Noble Herrera, os Pérez Companc, os Rocca, os Macri, a Ford, a Mercedes Benz, os Martínez de Hoz, entre muitos outros”, dizia o texto.

E completava: “Hoje, são esses mesmos grupos econômicos que se beneficiam do governo de Javier Milei e Victoria Villarruel para impor o mesmo modelo de miséria e exclusão para a maioria, com uma concentração absurda de capital e lucros máximos, varrendo direitos conquistados”.

Sigilo de documentos da ditadura é derrubado

No mesmo dia da marcha pela memória, o governo ultraliberal de Milei anunciou nesta a suspensão do sigilo dos arquivos de inteligência entre 1976 e 1983 referentes à ditadura militar no país.

“O presidente instruiu a quebra do sigilo total de toda a informação e documentação vinculadas às Forças Armadas durante o período de 1976 e 1983, assim como qualquer documentação produzida em outro período, mas vinculada ao acionamento das forças”, anunciou o porta-voz da presidência, Manuel Adorni.

Segundo a administração de Milei, a iniciativa tem como objetivo “garantir uma comemoração baseada na transparência e na liberdade de opinião”. Contudo, a medida tem por objetivo apenas equiparar os crimes do Estado argentino com as ações de militantes da esquerda durante o período. 

Horas antes da mobilização, o governo havia divulgado um vídeo polêmico que pedia um “registro completo” dos eventos das décadas de 1970 e início de 1980, incluindo crimes cometidos por guerrilheiros de esquerda.

Sob o eufemismo de uma “memória completa”, a peça reforçava o discurso negacionista: tratava a ditadura como uma medida “necessária” em um contexto de guerra, negando que ela tenha sido um plano sistemático de extermínio contra militantes e trabalhadores organizados.

Na gravação, o ideólogo ultraliberal Agustín Laje, um dos assessores mais próximos de Milei, voltou a contestar — como já havia feito por ocasião da comemoração anterior — o número de 30 mil “desaparecidos”, denunciado em geral por organizações de direitos humanos como as “Mães da Praça de Maio”.

(*) Com Ansa e Brasil de Fato