Retomo a publicação de um trecho significativo de uma longa reportagem que fiz em 1995 como trabalho de conclusão de curso da ECA-USP sobre a economia boliviana. O primeiro trecho: Eleições na Bolívia: como surgiu Evo MoralesBolívia, 1995: breve histórico do neoliberalismoBolívia antes de Evo: a estabilidade vale mais que a revoluçãoBolívia, 1995: um partido da revolução.
Aymara e professora primária, Vilma Plata, 36, quando fala, faz lembrar o sentido da palavra coragem. Trotskista, militante do POR, Vilma é diretora de relações – todas, sindicais, internacionais, com a imprensa, etc. – da poderosa Federação dos Trabalhadores em Educação Urbana do Departamento de La Paz.
Vilma foi presa pela primeira vez em 1985, quando iniciaram os protestos contra o Decreto Supremo 21.060. A última, em março de 1995. Para a “comemoração” dos dez anos do neoliberalismo, Vilma deu uma das contribuições mais espetaculares. Quando libertada, em junho, após uma greve de fome e uma rebelião no presídio feminino de La Paz, Vilma ainda conta ter derrubado o subsecretário de Política Penitenciária, Johnny Maraton.
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Ela, para narrar essa história, volta a 1985. Lá atrás, diz ter aprendido que “a penitenciária é a universidade do revolucionário”. Na cadeia, achava-se mais importante que as demais, por ser uma líder sindical respeitada, diz. E recusou-se a limpar só com as mãos – sem bucha ou luvas – os vasos sanitários. Correu ao telefone e denunciou o caso à imprensa.
Após o barulho, que livrou Vilma das latrinas, o governo cortou o telefone para as presidiárias. Telefone que era “a vida” das presidiárias. Consequência: a militantes passou a ser responsabilizada pelo fim daquela ligação das detentas com o mundo.
“É preciso ganhar respeito das companheiras. Porque há luta de classes dentro da prisão também”, explica.
– As camponesas fazem quase todos os serviços. Aquelas que vêm da classe média e as traficantes acabam quase não trabalhando.
A história da prisão de 1995 de Vilma começa no dia da mulher, 8 de março. Nesse dia, as bolivianas tomaram, com as suas panelas, as ruas de La Paz para protestar contra aumentos nos preços dos alimentos. A polícia tentou reprimir o panelaço, mas as mulheres revidaram. Com paus, pedras e as próprias panelas, deixaram vários policiais feridos. Vilma e outras dirigentes foram fichadas.
No dia 13, os professores organizavam a chegada de marchas de todo o país a La Paz. Por volta das 19 horas, a federação dos professores, que fica a quatro quadras do Palácio do Governo, foi cercada. Quatorze dirigentes foram levadas à Polícia Técnica Judiciária. Uma semana depois, Vilma e mais dois integrantes da direção do sindicato foram transferidos para penitenciárias.
Na sua volta, Vilma, já reconhecida como uma das principais lideranças sindicais do país, foi saudada pelas cerca de 200 colegas de prisão, algumas delas companheiras da primeira passagem de Vilma pela cadeia. O passado ensinou Vilma a não apenas aceitar o serviço literalmente sujo como também a colaborar com os filhos das companheiras, que tinham de fazer o dever de casa na prisão.
Vilma já estava havia quase dois meses no presídio, o primeiro estado de sítio já havia sido decretado e a COB, na sua avaliação, não se empenhava o suficiente para tira-la de lá (o acordo que a central assinou com o governo para a liberação dos sindicalistas aprisionados antes e depois do estado de sítio excluiu os que estavam nas penitenciárias, ou seja, os três professores). A líder dos professores concluiu que, se nada fizesse, seria condenada a três ou quatro anos de prisão, entre outros motivos, pela fabricação de coquetéis molotov.
Os companheiros professores de Vilma iniciaram, então, uma greve de fome. Ela ficou de fora, porque não estava, ainda, recuperada de um outro protesto do gênero, que durou 17 dias, em novembro de 1994, em apoio aos cocaleros do Chapare.
– Na primeira vez que fiz greve de fome, em março e abril de 1993, perdi dez quilos na primeira semana. Pensei: o que vai ser daqui para a frente? Mas você pára de perder peso, e o corpo começa a comer os músculos. Nesse momento, a batata da perna começa a ficar mole, e a gente vai ficando fraca e já não pode andar. Em 20 dias, não dá nem para falar.
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A greve dos companheiros de Vilma fracassou. Eles foram isolados dos outros presos, e a repercussão buscada não aconteceu. Vilma, então, decidiu agir – ou melhor, não comer, já que no presídio feminino, graças à mobilização das encarceradas, as formas de isolamento – solitárias e muralhas – haviam sido eliminadas. A professora então escreveu uma carta explicando as razões da decisão, explicando que considera injusta a prisão de alguém que lutava em defesa da escola pública.
– Em cinco dias, já estava sentindo os sintomas de vinte, porque ainda estava muito fraca.
Levada a uma audiência judicial, Vilma desmaiou. Era uma terça-feira e, na quinta, haveria uma nova audiência, que definiria a situação da professora. O governo conseguiu adiá-la para a segunda-feira seguinte. Ou seja, mais quatro dias sem comer.
Na quarta, as colegas de cela de Vilma tomaram uma decisão. Se a professora não fosse solta até o meio-dia do dia seguinte, todas se juntariam à greve. Vilma passava o dia em uma das barracas do centro do pátio. Sempre carregada pelas presas, ela voltava às sete da noite para a cela.
Na mesma quarta-feira, para evitar a adesão das outras presas à greve, o governo decidiu agir e tirar Vilma da prisão. Como ocorria todos os dias, depois de levarem a professora de volta à cela, a maioria das presas retornou ao prédio. Sem que elas percebessem, foram trancadas a porta que conduzia ao jardim e a que conduzia às celas. A polícia, então, subiu os três andares do edifício para buscar Vilma. As poucas colegas que não estavam no pátio tentaram reagir, e o corpo da professora, no sexto dia da greve de fome, era disputado por policiais e pelas detentas. Vilma, na medida de suas forças, tentava se agarrar nos móveis pelo caminho.
Os policiais acabaram vencendo, e carregavam Vilma, com a roupa já toda rasgada, praticamente despida e muito machucada, escada abaixo. Quando chegaram ao jardim, no entanto, eles foram surpreendidos. As presas que estavam no pátio arrebentaram a porta e avançaram. Assustados, os policiais largaram Vilma e correram para a rua.
As presidiárias, que tinham tudo para aproveitar a oportunidade e partirem numa fuga em massa, preferiram resistir dentro da prisão. Paus e pedras viraram armas. Botijões de gás, candidatos a lança-chamas. A polícia ensaiou uma invasão, mas avaliou que o risco era grande demais. Chamou o Exército.
Ainda naquela noite, as forças do governo dariam um ultimato às presas. Quando finalmente entraram no presídio, as detentas deixaram o jardim e correram para as celas. Polícia e Exército as seguiram, mas não encontraram Vilma. Enquanto as celas eram destruídas e os gritos de dor ecoavam, a professora estava em uma das barracas do pátio, escondida sob as saias de duas cholas, camponesas que, no colo, seguravam os filhos.
– Vou me entregar, não posso suportar esses gritos – dizia Vilma.
– Que é isso, companheira, tanto trabalho para nada? – respondiam as cholas.
A primeira vez que os soldados, que já haviam desistido da busca no prédio, passaram com suas lanternas pela barraca, ouviram reclamações.
– Vocês estão assustando nossos filhos.
– Desculpem, senhoras.
A segunda vez:
– Levantem-se.
Vilma foi encontrada e levada a uma clínica, onde sua greve de fome foi interrompida pelos médicos. Seus machucados foram devidamente tratados, para que, quando solta, ela não pudesse denunciar a violência sofrida.
Mas Vilma não se deu por satisfeita. Percebeu que seus dentes haviam sido amolecidos por uma pancada e que sua gengiva estava ferida. Aguentou a dor e guardou o ferimento.
Quinze dias depois, o subsecretário de Regime Penitenciário chamou a imprensa para anunciar a liberação de Vilma. Na frente das câmeras de TV, a professora fez a denúncia dos maus-tratos. Johnny Maraton fingiu espanto, mas não conseguiu explicar o caso.
Dois dias depois, ele tinha uma audiência no Congresso justamente para explicar a violação da integridade física das presas no dia da retirada de Vilma. Faltou e justificou: tinha de visitar uma outra presidiária em Santa Cruz de la Sierra. De La Paz, viajou à cidade. Em vez de fazer a visita, liberou alguns presos condenados por tráfico de drogas e, com eles, passou a noite bebendo. A imprensa descobriu o caso, que ficou conhecido como narcofesta.
Maraton acabou caindo – e, ironicamente, amargou dois meses na prisão.