O típico político norte-americano tem uma cara bem conhecida: homem, branco, protestante. Com algumas poucas exceções para meio que confirmar a regra – Obama, por exemplo -, quase todos os candidatos a presidente dos Estados Unidos, desde que o país foi fundado, seguiam este padrão.
Em 2016, no entanto, o partido Democrata indicou uma mulher à presidência: a ex-secretária de Estado Hillary Clinton. Mas o que você talvez não saiba é que ela não foi a primeira mulher a disputar a presidência ou a vice. Na verdade, isso já havia acontecido cento e quarenta e quatro anos antes.
As mulheres só tiveram direito ao voto garantido em todos os Estados Unidos há exatos 100 anos. Em 18 de agosto de 1920, após anos de batalha do que ficou conhecido como movimento sufragista, foi aprovada a 19ª emenda à Constituição norte-americana e as mulheres puderam votar em todo o país.
Mas isso não quer dizer que, desde muito antes, elas já não tentassem chegar ao cargo mais alto da república. Sim, eu estou falando de 1872, quando a líder sufragista Victoria Woodhull se lançou à presidência pelo recém-formado Partido dos Direitos Iguais.
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Entre historiadores, no entanto, a candidatura de Woodhull é avaliada com alguma polêmica. Por mais que a candidatura fosse para valer, ela só tinha 34 anos de idade na época em que anunciou que concorreria. A idade mínima para assumir a presidência era 35, que ela completaria só seis meses depois da posse.
De qualquer forma, Woodhull abriu o caminho. 16 anos depois, em mil 1884, outra líder sufragista, Belva Lockwood, liderou uma chapa 100% feminina, tendo como vice Marietta Stow. Quatro anos depois, Lockwood tentou de novo, mas, dessa vez, com um homem na vice.
Só que ainda ia levar 76 anos até que um dos dois grandes partidos – no caso, o Republicano – visse uma mulher tentar se candidatar à presidência. Sim, o partido republicano, de Nixon, Reagan e Trump.
A senadora Margaret Chase Smith, do Maine, concorreu nas primárias republicanas de 1964 e, apesar de aparecer nas urnas em somente seis Estados, fez bonito em um deles: em Illinois, onde fica Chicago, conseguiu 25% dos votos em ficou em segundo lugar.
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Para os padrões republicanos, Margaret era até moderada, chegando a criticar a perseguição do senador Joseph McCarthy contra qualquer um que ele achasse (ou dissesse) que era comunista.
No final, o indicado do partido foi o então senador ultraconservador Barry Goldwater, que perdeu de lavada para o presidente democrata Lyndon Johnson.
Quatro anos depois, Charlene Mitchell se tornou a primeira mulher negra a concorrer à presidência pelo Partido Comunista dos Estados Unidos. Teve pouco mais de 1.000 votos e figurou nas cédulas de dois Estados.
E, em 1972, foi a vez de o partido Democrata a entrar nessa história. A deputada por Nova York Shirley Chisholm fez história e concorreu nas primárias presidenciais do partido, tornando-se a primeira mulher negra a fazer isso por um dos dois grandes partidos. Além disso, ele foi a primeira mulher a participar de um debate presidencial.
A candidatura de Chisholm, por mais frustrada que tenha sido – George McGovern foi o candidato democrata -, marcou época na política norte-americana. Ela é usada como símbolo até hoje dentro do partido, quando ele precisa se aproximar do eleitorado negro feminino.
A determinação de Chisholm pode ser resumida em uma de suas frases mais famosas: Se eles não te dão um lugar à mesa, traga uma cadeira dobrável.
Depois de Chisholm, outros partidos menores indicaram várias mulheres a presidente ou vice. Um bom exemplo disso foi a candidatura em 1980 e 1984 de Angela Davis a vice-presidente pelo Partido Comunista.
Em 1984, os Democratas indicaram a deputada nova-iorquina Geraldine Ferraro como vice na chapa de Walter Mondale. Foi a primeira mulher a concorrer por um dos dois grandes partidos na vice-presidência.
Era uma tentativa de mudar um pouco a história da eleição, que se encaminhava para uma vitória do então presidente Ronald Reagan. Mas não deu certo: Reagan obteve o maior número de votos eleitorais da história.
Foi em 2008 que uma mulher entrou para a disputa pela indicação democrata com reais chances de vitória: a então senadora Hillary Clinton, que também havia sido primeira-dama nos anos 1990. Quando a campanha começou, parecia inevitável que Hillary seria a candidata democrata.
Mas faltava combinar com o outro candidato – no caso, Barack Obama. Em 2008, o Partido Democrata tinha então duas candidaturas simbolicamente muito fortes: um homem negro, num país de passado escravocrata, e uma mulher que pela primeira vez podia ser encarada como favorita, tanto nas prévias como na eleição em si.
Depois de uma disputa acirrada, com trocas de acusações de ambos os lados, o movimento de Obama foi mais forte e ele acabou levando a indicação democrata para disputar a presidência contra o republicano John McCain.
McCain, por sua vez, percebeu o que estava por vir. O apoio a Obama só crescia e o democrata arrastava multidões por onde passava. Em uma estratégia parecida com a de Mondale em 84, McCain surpreendeu e escolheu a até então desconhecida (e ultraconservadora) governadora do Alasca, Sarah Palin, como vice-presidente.
Foi um furacão – mas que durou pouco. A série de gafes cometidas por Palin durante a campanha levou-a a ser assunto de todos os programas de comédia da TV norte-americana. A derrota foi inevitável. Palin até tentou se cacifar anos depois para concorrer sozinha, sem sucesso.
Com a vitória de Obama, Hillary virou secretária de Estado e, em 2016, mais uma vez, parecia que era a vez dela. Parecia fácil, mas a esquerda democrata veio com um nome forte: Bernie Sanders, que, por muito pouco, não venceu Hillary, que precisou mobilizar toda a máquina da burocracia democrata para derrotá-lo.
Hillary Clinton se tornou assim a primeira mulher a ser indicada à presidência por um dos dois grandes partidos. E realmente parecia que era a vez dela: as pesquisas mostravam que ela teria uma eleição garantida frente ao candidato republicano Donald Trump.
E, como nós já explicamos aqui neste vídeo, deu tudo errado: a rejeição à ela e ao ex-presidente Bill Clinton, as fake news de Trump e a misoginia turbinada pelas redes sociais, além do problemático sistema eleitoral dos Estados Unidos, fizeram com que Hillary, mesmo tendo mais votos que Trump entre os eleitores, fosse derrotada entre os delegados.
A candidatura de Hillary em 2016 e as confusões de Trump deram força a diversas candidaturas femininas em 2020 entre os democratas. Nas primárias, seis mulheres tentaram a indicação.
Quem largou na frente, no entanto, foi Bernie Sanders. Novamente o establishment democrata se mobilizou e foi derrotando uma a uma, buscando se unificar em torno de Biden, ex-vice de Obama. Com o apoio de Obama e de Hillary, Joe Biden venceu as primárias e prometeu indicar uma mulher para a vice. A escolhida, depois de muita especulação, foi a senadora pela Califórnia Kamala Harris – que havia inclusive desferido um ataque muito marcante contra o próprio Biden durante um debate nas primárias.
Kamala é a primeira negra e descendente de indianos a concorrer à vice-presidência por um dos dois grandes partidos. Não era, no entanto, a mais progressista das opções, sendo criticada inclusive por parte do movimento negro por não ter atuado contra a política prisional norte-americana.
Como o próprio Biden mostrou, ser vice-presidente tem suas vantagens dentro do partido: em caso de vitória do democrata, Kamala vira favorita à indicação para as eleições de 2024, caso Biden não concorra, ou 2028. Vamos acompanhar.