Atualizada às 19h25
A confirmação da vitória de Joe Biden nos Estados Unidos permite um respiro para os norte-americanos pobres e para o mundo que passou quatro anos assombrado com a falta de respeito e de limites éticos nas políticas interna e externa. Mas está longe de ser uma ressurreição democrática.
Biden venceu as primárias democratas ao se tornar uma espécie de polo aglutinador dos grupos mais conservadores do Partido Democrata. O consenso em torno dele veio mais do medo entre os democratas de um eventual governo Bernie Sanders do que num cálculo seguro de que ele poderia vencer Trump.
Para a direita democrata, Sanders punha mais medo do que Trump, e a passagem relâmpago do bilionário Michael Bloomberg pela disputa da indicação democrata mostra como os bilionários norte-americanos estavam dispostos a dar alguns anéis para tirar o protagonismo da oposição a Trump da figura de Sanders e de seus apoiadores.
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A jogada arriscada colocou um candidato sem carisma e, economicamente, muito próximo a Trump, como candidato a presidente. Embora as pesquisas iniciais apontassem Biden à frente, a consistência desses dados era frágil e o caminho para a construção de um segundo mandato para o presidente republicano estava traçado.
De certo modo, tudo caminhava para que Trump fosse reeleito, talvez com uma redução pequena na maioria que tinha no Senado.
Esse era o cenário até o advento da pandemia da covid-19. Com a pandemia, a condução desastrosa nos Estados Unidos e nos países alinhados ao trumpismo, como é o caso do Brasil, revelaram o que significa o desgoverno norte-americano e da sua capacidade de se colocar como “líder” do mundo ocidental. Trump não aprendeu nada durante a pandemia, e Biden, por seu lado, mais surfou na onda do que foi responsável por colar essa incompetência na testa de Trump.
jlhervàs/FlickrCC
Biden será capaz de desmontar a bomba ultradireitista armada por Trump?
É possível dizer que, não fosse a pandemia, é muito provável que Trump fosse reeleito. Na tarde de sábado, com a apuração ainda em andamento, o atual presidente tinha cerca de 70,5 milhões de votos, quase 8 milhões de votos a mais do que os 62.984.825 votos populares que ele obteve em 2016.
Ou seja, Trump conseguiu mobilizar em 2016 pelo menos 12% mais eleitores do que quatro anos atrás. Seu poder de mobilizar eleitores cresceu, e não diminuiu, apesar do desastre que significou para os Estados Unidos e para o mundo.
Pode-se dizer que Biden também terá mais de 10 milhões de votos a mais do que Hillary em 2016, o que explica a vitória apertada apesar do crescimento de Trump. E esse é o grande desafio do Partido Democrata: que Biden irá governar?
Se Biden for o Biden de centro, como prometido nas primárias, teremos um presidente que não responderá aos anseios de uma gestão anti-Trump que mobilizou esses milhões de eleitores democratas a mais. Se o Biden presidente não responder à radicalidade da base do partido que organizou e colocou milhões de eleitores em condições de votar, certamente sua capacidade de levar eleitores às urnas em 2024 será reduzida.
Por outro lado, se Biden entender que foi eleito por uma esquerda democrata que topou, talvez pela última vez, ceder a liderança do processo a um candidato centrista em nome de um projeto maior, de derrotar Trump, e governar de olho a organizar o partido e o governo em torno de pautas democráticas em questões de classe (urgentes), raça e gênero (questões em que há mais consenso interno), é possível que grandes placas tectônicas se movam na política norte-americana.
O que fica claro nesse resultado é que a estratégia Joe Biden de atrair o eleitor republicano de centro, ainda que em alguns Estados tenha tido algum efeito, não foi a responsável pela derrota de Trump. Quem venceu Trump foram a organização popular que permitiu a milhões de novos eleitores votarem na Pensilvânia, a política de incentivar o voto pelo correio onde ele fosse possível, a atuação da rede de militantes jovens e radicalizados da esquerda democrata.
O eleitorado racista, misógino e que vê em Trump sua imagem e semelhança, num movimento radical de direita que faz o Tea Party de alguns anos atrás parecer um clube de gente cordata e razoável, não apenas manteve seu lugar no mundo, como expandiu-se.
Sim, Trump perdeu as eleições, mas as ideias que ele representou tão bem continuarão a assombrar os Estados Unidos. Biden pode ter sido o candidato capaz de vencer Trump, mas a dúvida que fica é se ele será o presidente capaz de desmontar a bomba ultradireitista que segue armada, assombrando os Estados Unidos e o mundo.