Em 15 de agosto, os governos do Brasil e da Colômbia anunciaram em diferentes canais que a Venezuela deveria realizar novas eleições ou organizar um governo de coabitação com a extrema direita. Essa reviravolta ocorreu após pedirem cautela e aguardado os resultados das investigações iniciadas pela Suprema Corte de Justiça sobre os resultados eleitorais.
Na época, isso distanciou radicalmente o governo das duas nações da posição dos líderes conservadores e centristas da região que, seguindo a posição dos Estados Unidos, reconheceram Edmundo González como o vencedor das eleições de 28 de julho.
O presidente brasileiro Lula declarou sua opinião sobre a solução para o conflito político na Venezuela em uma entrevista à Rádio T: “Maduro tem mais seis meses de mandato. Se ele agir com bom senso, poderá convocar novas eleições, formando um comitê eleitoral com membros da oposição e observadores internacionais”.
Já o presidente venezuelano Nicolás Maduro respondeu rapidamente, rejeitando os pedidos de refazer as eleições feitos por seus colegas no Brasil e na Colômbia. Ele declarou que a Venezuela “tem a soberania de um país independente com uma Constituição, tem instituições e os conflitos na Venezuela de qualquer tipo são resolvidos entre os venezuelanos, com suas instituições, com sua lei e com sua Constituição”.
A editora do Peoples Dispatch, Zoe Alexandra, conduziu uma entrevista com o jornalista brasileiro e fundador de Opera Mundi, Breno Altman, que expõe o contexto do motivo pelo qual o governo brasileiro decidiu convocar novas eleições na Venezuela.
Leia a entrevista completa abaixo:
Zoe Alexandra: Lula e Petro têm defendido a ideia de que a “crise eleitoral” na Venezuela deve ter outra saída, que poderia ser novas eleições ou um governo de “coabitação”. De onde vem essa nova postura? Foi realmente uma surpresa?
Breno Altman: a proposta é de convocar novas eleições ou de constituir um governo de coabitação que leve a novas eleições. Essas duas propostas não são propriamente uma novidade e já tem dias que circulam nos diálogos entre os governos brasileiro e colombiano e também nas consultas que o governo brasileiro tem feito à União Europeia e Estados Unidos
Não é surpreendente que o Brasil e a Colômbia estejam tentando mediar entre oposição e chavismo, entre Estados Unidos e União Europeia, de um lado, e China e Rússia, de outro. Essa postura de mediação implica uma busca desenfreada por uma solução que possa ser aceita por ambas as partes.
Agora, isso está se tornando cada vez mais complexo. Há um resultado no processo eleitoral na Venezuela que o chavismo defende, tanto do ponto de vista institucional quanto do ponto de vista da mobilização popular. O que a extrema direita quer é apoio internacional para tentar impor sua suposta vitória na Venezuela.
Antes das eleições, vimos que Lula já estava fazendo declarações críticas a Maduro. Como você pode explicar essa escalada nas relações? Como foram as relações entre Lula e Maduro no passado?
A relação entre Lula e o chavismo sempre foi de aliança e divergência. Eles sempre se mantiveram no mesmo campo de alianças e na construção de um bloco contra hegemônico na América Latina e no mundo. Mas sempre houve diferenças.
Em primeiro lugar, porque são processos diferentes. O chavismo representa uma tentativa de mudança revolucionária dentro da legalidade da democracia, mas uma mudança revolucionária na Venezuela, uma transição do poder do Estado das classes latifundiárias para as classes trabalhadoras, a construção de um sistema econômico social diferente do capitalismo. Pelo menos esses são os objetivos claramente definidos pelo chavismo.
O processo no Brasil é diferente. É um processo que não questiona a democracia liberal, muito menos a economia de mercado capitalista. É um processo de mudança, de inclusão social e econômica dentro dessa ordem capitalista e sem romper com o Estado democrático liberal, sem ter como objetivo a transição do poder da burguesia para as classes trabalhadoras.
Isso sempre levou a divergências. Enquanto o chavismo sempre teve claramente uma atitude anti-imperialista, o governo brasileiro, com Lula ou Dilma, teve uma posição mais mediada, dependendo das condições concretas do Brasil e da estratégia que foi elaborada para essas circunstâncias concretas. No período atual, há um agravamento das tensões devido à situação específica do governo Lula.
Para muitas pessoas, o fato de governos progressistas terem se posicionado contra um governo popular foi chocante. Você pode nos ajudar a entender algumas das dinâmicas internas e externas que levaram a esse desenvolvimento?
Acredito que o governo e o presidente Lula estão preocupados com as eleições municipais brasileiras programadas para outubro. E ele acredita que defender o governo Maduro vai tirar votos do PT e dos partidos aliados, principalmente nas grandes capitais, especialmente em São Paulo.
Temos que levar em conta que a lógica da política externa brasileira é a do não alinhamento ativo, ou seja, buscar construir negociações com os Estados Unidos, União Europeia, China e Rússia, buscando uma situação intermediária em que seja possível obter vantagens para o Brasil e América do Sul.
Nessa lógica, a política externa brasileira evita passos que possam levar a uma ruptura nas relações com os Estados Unidos, embora as relações econômicas e políticas do Brasil sejam privilegiadas com a China e outros países contra hegemônicos.
Em nenhum momento o Brasil assume uma posição alinhada com o imperialismo norte-americano. Tampouco deseja adotar medidas que representem uma ruptura com os Estados Unidos e a União Europeia. Nessa política externa brasileira, que está em curso de um não alinhamento ativo, há também uma aposta de que as relações entre América do Sul, governos europeus liderados pela social-democracia, liberalismo, especificamente França e Alemanha, e também as relações com o Partido Democrata nos Estados Unidos podem ajudar a constituir e reforçar esse papel intermediário não alinhado do Brasil e também podem ajudar a constituir uma aliança que ajude a esquerda brasileira a combater a extrema direita em nosso país.
Acho que as tensões entre Lula e Maduro têm a ver com isso, ou seja, com as necessidades do governo do presidente Lula ou com a maneira como o presidente Lula vê essas necessidades, para evitar uma ruptura com os Estados Unidos e a União Europeia.
De um ponto de vista externo e de um ponto de vista interno, evitar uma cisão, que seria perigosa para essa frente ampla e a aliança entre esquerda e liberais que foi formada para eleger o presidente Lula contra Bolsonaro. Apoiar a Venezuela poderia colocar em risco essa frente ampla. O presidente Lula está calculando que se ele apoiar abertamente a Venezuela, reconhecendo a vitória de Maduro, isso também pode causar danos eleitorais.
Você pode falar sobre as semelhanças entre os apoiadores de Bolsonaro no Brasil e os da extrema direita na Venezuela?
Acho que a extrema direita venezuelana, assim como Bolsonaro, está reagindo às eleições e ao resultado eleitoral na Venezuela de maneira semelhante, inclusive à adotada pelo Partido Republicano nos Estados Unidos. Em outras palavras, está tentando criar uma situação de caos, violência, um golpe, uma situação de motim contra o resultado eleitoral. Tanto para tentar anular o resultado quanto para tentar estabelecer pela força um governo controlado por eles e, no limite, criar um ambiente permanente de mobilização desse grupo para manter a extrema direita permanentemente em ação, disputando as ruas, redes, desestabilizando o governo, se construindo como uma alternativa seja pela via eleitoral no momento seguinte, seja como uma alternativa golpista.
Temos que entender o que é a extrema direita no mundo de hoje. É a expressão política de um setor da burguesia, seja ela brasileira, norte-americana, venezuelana ou europeia, que promove as reformas liberais necessárias para a recuperação da taxa de lucro do capital em um momento de crise estrutural, reformas que vão reduzir salários, que vão reduzir direitos, que vão reduzir serviços públicos, que vão precarizar as relações de trabalho, que vão ter consequências para a divisão internacional do trabalho.
No caso dos Estados Unidos, isso significa fechar seu mercado para as economias de outros países. No caso do Brasil, isso significa a vontade da burguesia brasileira ou de setores da burguesia venezuelana de se inserir cada vez mais profundamente no sistema imperialista ligado aos Estados Unidos. Essa extrema direita acredita que essas reformas só podem ser feitas com a redução da democracia, soberania popular e com a construção de governos autoritários, ditatoriais e que rompem com os instrumentos democráticos.
Uma vitória da extrema direita na Venezuela representaria o surgimento de um governo extremamente autoritário, provavelmente uma ditadura que esmagaria as conquistas do chavismo. Esse foi o papel do governo Temer e do governo Bolsonaro após a derrubada do governo Dilma em 2016.
Eles têm uma identidade ideológica, uma identidade programática e reagem contra o resultado eleitoral da mesma forma. Bolsonaro, a dupla González-Corina e Trump estão reagindo de forma antidemocrática, provocando violência, provocando tumultos, tentando estabelecer uma relação de forças que empurra o país para um cenário de golpe de Estado ou de fortalecimento do papel dessa extrema direita.