Talvez o termo “great” — quase sempre traduzido de forma livre para “grande” — seja, de fato, o que melhor capture a essência de Donald Trump, o primeiro ex-presidente na história dos Estados Unidos a enfrentar acusações criminais, e vencer as eleições enquanto o faz.
Seu incansável slogan “Make America Great Again“, sustentado por uma retórica de nostalgia e apelo populista, não traduz propriamente a ideia de grandiosidade, mas sim uma suposta eminência que, curiosamente, também corresponde a outra acepção do termo “great” (eminente).
O bordão, em busca de evocar grandeza, mais parece encontrar eco entre grupos que enxergam no republicano a personificação de um ideal perdido, mas que muitos associam mais à bipolarização e até ao fascismo, conforme vem sido discutido pelo próprio New York Times, em diálogo com Robert Paxton, historiador, proeminente estudioso do tema, e autor de Anatomia do fascismo (Paz & Terra, 2023).
A vitória de Trump nas eleições presidenciais de 2024 ocorre no mesmo ano em que ele foi indiciado em quatro processos criminais. Mesmo com as acusações, todas por ele negadas, e descritas em detalhe pelo Washington Post, nada foi capaz de impedir a sua candidatura.
Na verdade, o magnata e 45º presidente dos Estados Unidos, assim como tentou fazer com grande parte das polêmicas que o cercam, conseguiu capitalizar, em certo nível, tais questões, em uma tentativa bem sucedida de reforçar um personagem que vem construindo há cinco décadas.
O verdadeiro aprendiz
Bilionário com fortuna avaliada em U$3,9 bilhões — montante equivalente a 22,23 bilhões de reais — conforme o levantamento mais recente feito pela Forbes, o republicano, antes de ser conhecido por suas declarações incendiárias e polêmicas políticas, havia ganhado fama no mundo empresarial e do entretenimento.
Formado em Economia pela Universidade da Pensilvânia (UPenn) em 1968, logo depois assumiu a presidência dos negócios imobiliários de sua família. Sob seu comando, a empresa foi renomeada para Trump Organization e passou a focar em empreendimentos de luxo, como arranha-céus, hotéis, cassinos e campos de golfe.
Após uma série de fracassos nos negócios durante a década de 1990, Trump encontrou relevância novamente ao licenciar seu nome para empreendimentos e marcas, o que levou ao reality show “The Apprentice“, programa televisivo que apresentou de 2004 até 2015. A série também teve uma versão brasileira, com o empresário Roberto Justus, intitulada “O Aprendiz“.
Embora o republicano tenha cultivado uma imagem de empresário de sucesso por meio de aparições televisivas, ao longo dos anos, ele e suas empresas foram parte de mais de 4 mil processos judiciais, incluindo seis falências empresariais.
Criando um personagem
O político vencedor das eleições de 2024 é um personagem cuidadosamente construído, com mais de uma faceta: o magnata do reality show e o republicano que, em 2015, conquistou rapidamente os holofotes e traçou seu caminho até a Casa Branca, quase uma década atrás.
E antes deles, havia o jovem nova-iorquino, filho de Fred Trump, um construtor de imóveis populares em Nova York, que seguiu os passos do pai, mas com uma diferença: enquanto usava o dinheiro e o negócio da família, decidiu investir em outro seguimento, o de luxo, iniciando seu caminho até a elite de Manhattan.
Seu primeiro grande projeto foi a renovação do antigo Commodore, um hotel decadente que funcionou até 1976. Entre 1978 e 1980, ele transformou o espaço no Grand Hyatt de Nova York, forjando acordos que não existiam e mentindo para a imprensa sobre parcerias que ainda não tinham sido firmadas.
Ao longo das décadas, Trump soube moldar sua narrativa, passando de magnata imobiliário a estrela de TV e, por fim, a político; contudo, o que muitos vem a questionar é se sua “grandeza” se baseia em conquistas reais ou na capacidade de manipular sua imagem pública e as estruturas de poder a seu favor.
Por trás do muro…
Talvez a promessa mais emblemática de Trump em 2016, ano em que conquistou as eleições presidenciais e fez sua estreia propriamente dita na política norte-americana, tenha sido a construção de um muro na fronteira com o México (território com uma extensão de 3.142 km), que, segundo ele, seria a resposta republicana à imigração ilegal.
Entretanto, até janeiro de 2021, apenas 727 km dos 800 km prometidos haviam sido efetivamente concluídos. Além disso, a frustração em torno do financiamento da obra culminou em uma das maiores greves parciais do governo em 2018, quando Trump exigiu que os legisladores alocassem US$ 5,7 bilhões para o projeto.
Logo após assumir a Presidência, seu sucessor democrata, Joe Biden, cancelou a construção do muro.
Além disso, a abordagem truculenta do político em relação aos imigrantes foi acompanhada pela retirada dos Estados Unidos de acordos internacionais importantes, como a Parceria Transpacífica e o Acordo de Paris.
Desde o início de sua gestão (2016-2020), o republicano implementou políticas de imigração rigorosas, incluindo ações que resultaram na separação de famílias e no encerramento do programa DACA, que protegia crianças imigrantes.
Perto do fim de seu mandato, Trump também se viu no centro de um processo de impeachment em 2019, tornando-se o terceiro presidente na história dos EUA a enfrentar tal situação, embora tenha sido absolvido pelo Senado.
Em 2020, em meio à pandemia da covid-19, teve uma administração marcada por declarações inflamadas e infelizes, incluindo tentativas de minimizar o impacto do vírus e romper relações com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Neste sentido, o legado da primeira Presidência do republicano é caracterizado por promessas não cumpridas, polêmicas diplomáticas e um ambiente de polarização que ainda reverbera na sociedade norte-americana.
Invasão do Capitólio
A invasão do Capitólio, orquestrada por apoiadores de Trump, em 6 de janeiro de 2021, é o episódio mais marcante da política norte-americana daquele período. Após um discurso em frente à Casa Branca, manifestantes favoráveis ao republicano invadiram o prédio enquanto o Congresso certificava o resultado do Colégio Eleitoral, que confirmava a vitória de Biden.
Cinco pessoas morreram, incluindo um oficial da segurança do Capitólio. Um dia depois, Trump foi forçado a se retratar pela invasão ao Congresso; o X, antigo Twitter, baniu permanentemente sua conta. Em 2024, seu perfil foi restaurado pelo bilionário e conservador sul-africano Elon Musk, que comprou a rede social, apoia o magnata e doou milhões de dólares para a campanha republicana.
Na época, a medida foi um golpe significativo para o ex-presidente, que foi o líder norte-americano que mais usou a rede social, tendo publicado mais de 25 mil postagens, uma média de 18 por dia durante seu mandato.
Poucos dias antes de deixar o cargo, a Câmara dos Deputados aprovou seu impeachment por “incitação à insurreição”, tornando-o o único presidente dos EUA a ser condenado duas vezes pelo processo. Ele não compareceu à cerimônia de posse do sucessor democrata.
Eleições presidenciais de 2024
Durante a campanha presidencial deste ano, alguns temas foram recorrentes e centrais para Trump, como imigração e aborto, recebendo duras críticas por suas posturas em ambos os assuntos.
No caso do aborto, a questão foi particularmente decisiva, já que o país enfrenta um debate intenso sobre os direitos das mulheres. Durante seu primeiro mandato, Trump abriu caminho para a revogação, em 2022, do Roe v. Wade, que garantiu por décadas o direito ao aborto. Os três juízes indicados por ele à Suprema Corte — Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett — foram decisivos na derrubada da decisão.
No único debate presidencial realizado com sua oponente democrata, a atual vice-presidente dos EUA Kamala Harris, no início de outubro, Trump retomou suas polêmicas declarações sobre imigrantes latinos e, em particular, atacou os haitianos, com afirmações infundadas sobre eles comerem cães.
Mais tarde, em um comício na Califórnia, Trump prometeu realizar “grandes deportações” na cidade de Springfield, Ohio, na qual há uma expressiva comunidade haitiana. “Vamos tirar essas pessoas de lá”, disse.
Os haitianos estão atualmente protegidos contra deportação pelo Status de Proteção Temporária (TPS), válido até fevereiro de 2026, devido à instabilidade política e humanitária no país.
Seguindo em uma postura xenófoba, e na reta final da eleição, o republicano intensificou sua retórica contra imigrantes, prometendo, em um evento em Nova York, impor a pena de morte para imigrantes que cometessem homicídios, em um tratamento mais severo em relação aos cidadãos norte-americanos.
A trajetória de Trump — de filho de um agente imobiliário a magnata, de magnata a celebridade e, finalmente, a político — levanta questões sobre a verdadeira natureza da grandeza que ele pretende representar para aquilo que chama de “América”.
Os EUA, agora à beira de um novo capítulo sob sua liderança, enfrentam os ecos de uma era marcada por polarização, racismo, e retrocessos nos direitos reprodutivos e na imigração.
Neste contexto, a principal questão que se impõe é: tal busca por “grandeza” resultará em avanços que garantam a dignidade e os direitos das mulheres e de outras minorias, ou precipitará um buraco ainda maior nas crises que já assombram a sociedade norte-americana?