Vale a pena ver de novo? Quem é fã de cinema sabe que a sequência de um filme quase nunca é melhor que o título original e, aparentemente, a política norte-americana está mostrando que esta regra vale para além do entretenimento. Prestes a dar início ao seu segundo mandato, Donald Trump dispensa o suspense e entrega um verdadeiro show de horrores ao indicar profissionais polêmicos e pouco qualificados para cargos de liderança.
Diretamente dos estúdios da FoxNews, o apresentador Pete Hegseth sai da frente das câmeras para atuar como Secretário da Defesa do país com a maior força militar do planeta, com um orçamento de US$ 842 bilhões (quase R$ 5 trilhões).
Apesar de se dizer cristão fervoroso, Hegseth teve uma filha fora do segundo casamento, com uma produtora da FoxNews com quem vivia um caso extramarital. Vale lembrar que o primeiro casamento do apresentador também acabou por conta de sua infidelidade.
Hegseth carrega no braço uma tatuagem Deus Vult, associada a supremacistas brancos e nacionalistas cristãos. Para aumentar a lista de polêmicas nas quais o possível Secretário da Defesa [norte-]Americana está envolvido, ele foi a um podcast e reforçou sua opinião de que mulheres não deveriam estar em combates.
Trump pode até concordar, mas selecionou uma mulher para comandar a Segurança Nacional: Kristi Noem é a escolhida para a chefia de Homeland Security. Com 52 anos, a governadora da Dakota do Sul vai responder pela integridade dos Estados Unidos, incluindo suas fronteiras, ameaças cibernéticas, terrorismo e resposta a emergências.
Noem terá ao seu lado o “czar das fronteiras”, Tom Homan, que pela segunda vez deixou sua aposentadoria a pedido de Trump. Defensor da deportação em massa, ele é um dos defensores da separação de famílias imigrantes como tática de persuasão. Homan foi um dos contribuidores do Projeto 2025, um plano de governo ultraconservador – mas que Trump nega ter qualquer tipo de envolvimento.
O ultradireitista radical e senador da Florida Marco Rubio será secretário de Estado, cargo equivalente ao de chefe da diplomacia (ministro das Relações Exteriores). Ele já se disse favorável a exercer máxima pressão sobre a China, grande potência rival dos Estados Unidos, Irã, Venezuela e Cuba – país de onde sua família desertou. Rubio também é fervoroso defensor de Israel e é favorável ao fim da guerra na Ucrânia.
A ex-democrata Tulsi Gabbard foi a escolhida pelo presidente eleito para ocupar o cargo de Diretora de Inteligência Nacional. Veterana militar, ela começou na política em 2002, aos 21 anos, no Havaí.
Ela anteriormente defendeu causas ligadas aos democratas, como assistência médica estatal, mensalidade universitária gratuita e controle de armas. Essas questões fizeram parte de sua corrida para a nomeação presidencial democrata, em 2020, da qual ela acabou desistindo e apoiando Joe Biden.
Em 2022, ela deixou o Partido Democrata e inicialmente se registrou como independente – acusando seu antigo partido de ser uma “cabala elitista de belicistas” movida por “covardes”.
Se aprovada para o cargo pelo Congresso dos EUA, Gabbard tem a missão de administrar um orçamento de mais de US$ 70 bilhões (R$ 400 bi), supervisionando 18 agências de inteligência, entre elas a CIA, o FBI e NSA.
Para chefiar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos, Donald Trump não escolheu um médico ou cientista – mas um advogado: Robert F. Kennedy Jr.. O herdeiro de uma das famílias mais importantes do país propôs inúmeras políticas destinadas a revisar a segurança alimentar e as diretrizes ambientais, promover medicamentos holísticos e reestruturar o financiamento público para a pesquisa de vacinas.
A Agência de Proteção Ambiental fica sob responsabilidade de Lee Zeldin, que deixou claro que derrubar regulamentações relacionadas ao meio-ambiente já no primeiro dia de trabalho.
O Procurador Geral indicado por Trump é Matt Gaetz, figura controversa que, entre outras coisas, levou ao congresso um ativista de extrema direita negacionista do holocausto.
A parte menos surpreendente e mais preocupante da lista dos indicados por Trump é a nomeação de Elon Musk e Vivek Ramaswamy como líderes do Departamento de Eficiência Governamental, um painel com ambições ousadas de cortar custos governamentais e reestruturar agências federais. O problema é que tanto Musk, como Ramaswamy, são empresários bilionários, com grandes conflitos de interesse.
Para o cientista político Mickey Huff, a participação dessas figuras em órgãos estatais é bastante preocupante. “O que a gente costuma ver sob governos neoliberais é a infiltração e a influência das agências regulatórias, que foram desenhadas para trabalhar em prol do interesse público, mas que acabam servindo o interesse de empresas privadas, de onde os reguladores vêm”, explica.
De fato, sob a justificativa de cortar custos, Elon Musk poderia extinguir, por exemplo, pastas ou iniciativas que fiscalizam o X (ex-Twitter), a Space X ou outras de duas empresas.
“John Kennedy disse, em 1958, que quem controlasse os novos meios de comunicação, controlaria a política Americana. E, puxa, como ele estava certo”, continua Huff.
E o Brasil com isso?
Repetindo o slogan de “fazer a América grande de novo”, Trump deve reprisar seu primeiro governo, focando mais no que acontece dentro de suas fronteiras do que fora delas. As relações internacionais serão pautadas pelos interesses econômicos norte-americanos – e isso deve, inevitavelmente, afetar Brasília.
Para proteger o produto interno, o republicano prometeu criar novas taxas ou elevar as tarifas existentes para bens importados, cobrando mais, sobretudo, de produtos chineses. “Muita gente acha que o maior parceiro comercial do Brasil é a China, mas isso é verdade somente para o agronegócio. Para as manufaturas, o maior cliente do Brasil é os EUA – daí a importância dessa relação comercial”, explica o economista brasileiro radicado em Nova York, Bruno Corano.
Ainda de acordo com Corano, a diplomacia entre Brasília e Washington depende muito mais do governo brasileiro e suas investidas.
O cientista político Christian Lohbauer, concorda: “o Brasil não está entre as principais agendas internacionais dos Estados Unidos. Certamente eles estão mais interessados na Venezuela, Cuba e México, já que têm temas mais tensos e profundos com esses países”. Tendo em vista o perfil das lideranças de Brasília e Washington, Lohbauer acredita que a relação entre os países fique ainda mais distante, mesmo torcendo pelo contrário.
“Acho que o governo brasileiro não vai se esforçar para fazer muita coisa, deixando a agenda Brasil-Estados Unidos mais tímida do que antes prevista, o que é uma pena. Deveria ser um dos objetivos principais do Brasil se aproximar dos EUA, mas ele não faz isso há muito tempo, praticamente o século 21 inteiro.”
Já o professor de estudos internacionais da Universidade de Oklahoma Fábio de Sá e Silva acha que a vitória de Trump abre caminho para o bolsonarismo e que isso pode ser uma fonte de tensão, já que os bolsonaristas podem pressionar para uma anistia a Jair Bolsonaro. No mais, Fábio de Sá acredita que o relacionamento entre os dois países passe pelo campo da geopolítica, no sentido de que as decisões estadunidenses provocam reações de outros países.
“Eu acho que o Trump vai comprar briga com quase todo mundo”, aposta o docente, “o apoio que ele vai negar à Ucrânia e o que vai dar à Israel vão provocar reações de diversos países, bem como uma eventual investida dele contra Venezuela. O intervencionismo americano na região da América Latina é sempre mal visto”.
Diferentemente do seu primeiro mandato, Trump tem agora o partido republicano como maioria no Senado e na Casa dos Representantes, o que tira dele certas amarras políticas. “É provável que ele consiga ir mais longe nas suas ambições neste segundo turno, prevê o docente da Universidade de Oklahoma, “eu só não sei quantas frentes de desgaste ele vai conseguir abrir e manter, simultaneamente”.
Sobre as pautas mais ambiciosas e duras, como a deportação em massa e os conflitos na Faixa de Gaza, Fábio acredita que Trump queira mostrar serviço e acenar aos seus eleitores, mesmo que não cumpra a cabo todas as promessas. “Deportar todos os imigrantes que estão no país sem documento, pelo que li, custaria quase US$ 1 trilhão, o que é inviável”, justifica. O republicano afirma, porém, que este projeto “não tem preço” e que vai ser colocado em prática.
Mesmo com uma maior governabilidade, já que tem o Congresso ao seu lado, Trump deve redescobrir logo nas primeiras semanas de mandato que, no jogo político, querer não é poder. Sobre isso, Fábio de Sá evoca uma frase célebre: “O Zé Dirceu tinha uma frase em relação ao Bolsonaro, que ele falava ‘deixa ele sentar na cadeira, que a cadeira é quente; ela esquenta’. Governar é difícil mesmo”.