A partir das 20h desta terça-feira (05/11), uma grande parte dos estados norte-americanos começou a fechar suas urnas e deu início à apuração dos votos, que levará a descobrir que será o vencedor das eleições presidenciais deste ano nos Estados Unidos.
O processo de contagem dos votos no país norte-americano tende a ser muito mais demorado que o brasileiro, já que não existe um ente federal responsável por centralizar as informações, cada estado utiliza seu próprio método e muitos deles ainda fazem a contagem manual de cédulas. Vale lembrar que o sistema de Colégio Eleitoral, pelo menos nos últimos anos, tem favorecido os republicanos que são barulhentos, como Trump.
Foi assim, por exemplo, que George W. Bush venceu Al Gore em 2000, emplacando a desastrosa “guerra contra o terror”. Foi assim, também, que Trump venceu a democrata Hillary Clinton em 2016. E do mesmo jeito, ele tentou vencer Biden pelo tapetão, ou melhor, ligando para a principal autoridade eleitoral do estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, e ordenando que ele “encontrasse” 11.780 votos em seu favor durante a eleição daquele ano.
Quem vazou o telefonema foi o jornal The Washington Post, em janeiro de 2021. Até agora, Trump não respondeu por nada. O vale tudo impera e por isso é tão importante para os democratas cacifar a legitimidade com uma votação popular expressiva.
Kamala Harris fecha comício cheio de celebridades
As igrejas, bibliotecas, escolas e outros órgãos públicos abriram as portas às 7h (horário local) nesta terça aos milhões de eleitores dos Estados Unidos. Até agora, apenas de votos antecipados, foram mais de 78 milhões, quase a metade dos 154 milhões de votos registrados na eleição de 2020.
Com a expectativa de alta participação popular e clamando a todos que votem, a vice-presidente e atual candidata democrata, Kamala Harris, despediu-se da corrida eleitoral em um showmício na noite de segunda-feira (04/11) na Filadélfia, com a participação da pop star Lady Gaga, da banda de hip hop The Roots, do rapper americano Fat Joe, do latino Ricky Martin, da apresentadora Oprah Winfrey, entre outros.
No telão, enquanto todos aguardava a chegada dela, uma série de inserções com a participação, em outros comícios, de mais pop star: Katy Perry, Jon Bon Jovi e muito, mas muito discurso, da candidata e de Tim Walz, seu vice-presidente e ex-governador de Minnesota, que fez uma impecável defesa dos direitos reprodutivos das mulheres norte-americanas.
Cada inserção, naturalmente, foi dirigida a um público mais do que específico, em particular, dois grupos da população norte-americana: os negros, que representam 13,4% da população, e os hispânicos e latinos, que são 18,5%, segundo dados do Censo de 2020. São eles, em particular os homens – as mulheres estão em peso com a democrata – que podem pender a balança para um lado ou para outro.
Nas filas, a empolgação e um público muito mais diversificado do que o presente no comício de Donald Trump no Madison Square Garden, uma semana antes. Famílias inteiras e uma diversidade racial e étnica, em proporção igual de mulheres e homens, muitos jovens e a população LGBTQIA+ em peso. Todos sob o slogan “Freedom”, porque aqui onde eles se autointitulam “América”, a liberdade é vendida como algo possível, pelo menos, a liberdade “para os norte-americanos que trabalham duro”.
Trump, em praticamente todas as falas na segunda, foi apresentado como uma ameaça, não só aos direitos individuais, mas também à democracia. Conversando com as pessoas na fila, porém, a percepção foi muito mais de um voto pró-Kamala – inclusive em várias falas com ênfase nela como a melhor escolha, sua trajetória e, sobretudo, as promessas de ampliação de direitos –, do que um voto anti-Trump.
Mas isso, obviamente, dentro do showmício democrata, um oásis de não-pão, mas muito circo. Nas ruas, pelo menos entre os taxistas e os moradores da Susquehanna, ao norte da cidade, o anti-trumpismo será o grande vitorioso, caso Harris vença. E “ela pode”, entoou a multidão, provocada várias vezes pelo DJ Cassidy, a quem coube animar o público e mantê-lo acordado até a chegada da democrata.
Já passava das 23h30 quando ela subiu no palco montado na escadaria do Museu de Artes da Filadélfia, popularmente conhecida como “a escadaria do Rock”, em referência ao filme protagonizado por Sylveste Stallone nos anos 80.
Harris não trouxe nenhuma novidade em relação ao discurso até aqui. Reprisou os compromissos de campanha e vendeu o sonho americano estendido a toda a classe média norte-americana, que se fortalece (promete) caso vença. Defendeu a proteção do Estado para a ampliação do acesso à habitação e saúde, em particular. Aos imigrantes, falou em respeito e na possibilidade deles crescerem na América.
Após um périplo de comícios nos “swings states”, onde disputa voto por voto a preferência dos indecisos com o republicano Trump, ela escolheu a Filadélfia, cidade mais populosa da Pensilvânia, para encerrar a sua campanha. A decisão mais do que se justifica.
Segundo pesquisas, que tiveram destaque nas últimas semanas, o Partido Democrata vem perdendo o apoio dos jovens negros e latinos, seduzidos pela retórica de sucesso e pela postura caricata do bilionário novaiorquino.
Sondagem da GenForward realizada em meados de outubro, a pedido da Universidade de Chicago, revelou um apoio a Trump de um quarto dos jovens negros e 44% dos jovens, enquanto a vice-presidente contaria com o apoio de 58% dos homens negros e de 37% dos homens latinos.
Entre as mulheres, mais sensíveis às políticas democratas e fortemente ameaçadas em suas liberdades reprodutivas, ela obtém maioria entre as negras (63%), as asiáticas (60%) e as latinas (55%). As mulheres brancas dos Estados Unidos apareceram divididas nas pesquisas: 44% pró Harris e 40% pró Trump.
O voto dos negros
Terra natal de Benjamin Franklin, do jazz e do crème de la crème da cultura norte-americana, “Philly”, como é chamada a Filadélfia, pulsa a luta civilizatória dos movimentos negros dos Estados Unidos, de ontem e de hoje. Em 2020, após o assassinato de George Floyd, asfixiado pela polícia branca de Minneapolis, a cidade viveu um levante puxado pelo movimento Black Lives Matter, que derrubou estátua por estátua do racismo entranhado na América.
Podendo se tornar a primeira mulher negra presidente dos Estados Unidos, Harris aproveitou o histórico de luta da cidade para sensibilizar a população cuja maioria é negra, 39% ante 33,5% de brancos. Na Filadélfia que tem 22,7% de sua população abaixo da linha da pobreza, os negros são os mais afetados.
Em 2020, 12% dos negros dos Estados Unidos votaram em Trump. Segundo levantamento do Guardian, entre 15 e 20% dos homens negros votam em republicanos, acompanhados de apenas 5 e 9% de mulheres negras. E a tendência está aumentando junto aos jovens. Para eles, Harris prometeu futuro, educação, suporte para os jovens, recursos para a compra da primeira casa e emprego.
O racismo e a truculência de Trump também ganharam a pauta, em particular, na fala contundente de Oprah Winfrey sobre a ameaça às liberdades democráticas caso o republicano volte à Casa Branca.
Conversar com as pessoas nas ruas pode não confirmar os dados, mas ajuda a entender os argumentos. E, neste caso, os números batem. Entre os homens mais velhos, a reação quando perguntei sobre Trump foi enfática. “Eu sou negro, claro que voto em Kamala”, disse-me um taxista nascido em Nova York, há oito anos na Filadélfia, com os olhos arregalados no espelho retrovisor.
O repúdio ao bilionário também foi manifestado por um morador do bairro negro onde me encontro que me disse, com ênfase, que “Trump é um diabo” e sua eleição, sem dúvidas, irá piorar e muito “a vida dos negros em todo os estados da América”.
O mesmo me disse um rapaz, na faixa dos 30 anos, segurando uma placa de Harris com seus braços magros e compridos. Ele frisou que, com o republicano, a violência contra os negros vai aumentar, lembrando dos quatro anos de “desorganização trumpista no poder” e do apoio imperdoável do bilionário aos supremacistas de Charlottesville, na Virginia.
Estava convencida de que por aqui Trump não teria vez, quando abordei dois jovens negros que ouviam música na porta de casa. Ambos vão votar em Trump porque ele é rico, é um homem de negócios e vai trazer muito mais empregos do que a candidata democrata. O mesmo que ouvi nas filas do Madison Garden. Aproveitei para questionar sobre o governo Biden, mas eles foram unânimes ao dizer que a vida concreta deles não mudou absolutamente nada nos últimos anos.
Outra sondagem, da NAACP, também de outubro, aponta que um a cada cinco negros mais jovens apoiariam Trump ante a falência dos governos democratas. Em meio a isso, o ex-presidente democrata Barack Obama, que obteve 93% de votos negros nas eleições de 2012, entrou em ação em defesa de Harris.
Os latinos
Outro grupo que sempre esteve com os democratas, mas vem apresentando tendências republicanas, é o dos hispânicos e latinos legalizados e residentes nos Estados Unidos. E contra isso, os democratas até bailaram e trouxeram o super latino Ricky Martin que chamou a comunidade toda para votar em Harris nesta terça-feira.
Os hermanos, aliás, estão por todos os cantos. Nas máquinas onde se compra o bilhete do metrô ou se tira dinheiro, há sempre a opção do espanhol, além dos próprios latinos em massa no setor de serviços. É de uma esperteza tamanha a estratégia trumpista de botar o pânico nas costas dos imigrantes. A velha retórica, essencialmente xenofóbica, mas que vem sendo encapada pelos imigrantes com green card, em uma tentativa triste, e tão comum, de se afastar da pecha de ilegal.
Na Filadélfia, hispânicos e latinos representam 15,5% da população. Nos Estados Unidos, são 18,5%. No todo, 65 milhões de pessoas, sendo que somente 36 milhões podem votar. “Os imigrantes sem documentação não votam”, lembra Alex Morales, CEO da IBD Advisors, que auxilia empresas latino-americanas e europeias nos Estados Unidos.
Questionado sobre como a comunidade latina apoia Trump, Morales aponta que, de um modo geral, as pessoas “querem ver um líder forte e Trump passa essa segurança”. Destacando a importância dos latinos para a economia norte-americana, ele observa que se trata de uma população muito mais “pró-business”, composta por “pessoas que chegaram no país e que estão montando os seus negócios próprios, construindo as suas bases de vida”.
Para este grupo, a fala de Trump é atrativa. Bem como a tática de diferenciar os imigrantes legais dos ilegais. Morales, no entanto, avalia que pelo menos para a parcela de imigrantes ilegais hoje no país, os democratas “são muito melhores e mais humanos”.
Questionado se nós, da América Latina, devemos temer um próximo governo Trump, ele pensa que não. “O único país que irá sofrer com a Presidência de Trump é o próprio Estados Unidos, com sua política de empoderar o branco norte-americano, inclusive, com rifles. Isso criará problemas”, prevê.
(*) Tatiana Carlotti é repórter do Fórum 21, com passagem por Carta Maior (2014-2021) e Blog Zé Dirceu (2006-2013). Tem doutorado em Semiótica (USP) e mestrado em Crítica Literária (PUC-SP).