BRENO ALTMAN: Presidente Evo Morales, muito obrigado… olá, se congelou…
EVO MORALES: Olá irmão Breno, escuto perfeitamente.
ALTMAN: Olá, muito obrigado por aceitar nosso convite para uma entrevista poucos dias depois da eleição na Bolívia. Vou lhe pedir uma coisinha: para falarmos mais devagar que o normal, para que os brasileiros possam compreender as questões e as suas respostas da melhor maneira possível. Nós brasileiros entendemos mais ou menos bem o portunhol, então, vamos poder seguir adiante. Presidente Evo, o golpe já está derrotado?
MORALES: Agradeço novamente por esta entrevista, irmão Breno. E quero dizer que, com a unidade do povo, com essa convicção revolucionária, com esse alto espírito democrático, pacifista, nós derrotamos democraticamente os golpistas, e especialmente as políticas dos EUA. Estou surpreso pela unidade do meu povo. O povo unido não nos abandonou, e nós não os abandonamos. Esta história foi impressionante e você, irmão Breno, sabe perfeitamente que o que eu disse se tornou realidade, porque criamos um poder e acreditamos no povo. Acreditamos no elemento indígena e acreditamos nas forças sociais deste país. Esse é o resultado que nós temos.
ALTMAN: A direita boliviana e os Estados Unidos aceitarão o governo de Arce?
MORALES: Seja como for, eles vão ter que aceitar esta derrota. No fundo, o que essas eleições disseram? Que não houve fraude. Que sim, houve golpe. O povo boliviano, com quase 55%, disse não à discriminação, não ao racismo, sim à nossa revolução democrática e cultural. Sim ao processo de mudança e sim, fundamentalmente, às políticas econômicas que vêm do povo. O povo é tão sábio. Não aceitar (a derrota), por parte da direita ou dos Estados Unidos, seria rechaçar, desconhecer a vontade (popular), realmente seria um erro.
Tenho certeza que quase todos os candidatos da direita reconheceram o triunfo do companheiro Arce. Arce já é o presidente.
ALTMAN: Na sua opinião, como foi possível ganhar de forma tão ampla menos de um ano depois do golpe? O que impediu, por exemplo a direita de organizar uma fraude judicial ou eleitoral contra o MAS?
MORALES: Inicialmente, a política norte-americana se baseava em que o MAS não podia voltar ao governo, nem o Evo à Bolívia, e a direita boliviana, submissa às políticas norte-americanas, tentaram primeiro proscrever o MAS, e não puderam. Fizeram uma forte campanha para nos dividir, tirar o MAS de perto do Evo e dos movimentos sociais. Mas não conseguirão, porque o povo está consciente da nossa luta. Da luta coletiva, da luta social, da luta sindical, programática e ideológica. E o mais interessante é que, quase exatamente um ano depois, nós voltamos ao governo, e não com violência, mas em democracia e graças à consciência do povo.
Nós não usamos a Bíblia, como eles usaram a Bíblia, a Bíblia, para fomentar o ódio ao próximo, (usaram) a Bíblia para roubar, (usaram) a Bíblia para matar… e assim estaríamos retornando aos tempos da inquisição. No entanto, esse povo unido e organizado disse “vamos vencer e vamos voltar”, e voltamos! Para mim, isso foi algo único no mundo, irmão Breno. Um ano após o golpe, voltamos, com paciência, também com resistência. Com consciência, mas também com luta. Felicito o meu povo. Felicito o movimento indígena, que foi impressionante. Imagine você, depois de tanta luta sindical, social e comunitária, e também eleitoral, após de deixar o governo, não é fácil estar fora, mas sinto que o povo não me abandonou.
Este triunfo também diz que “Evo volta”. Esse é o resultado dessas eleições, e por isso é tão importante falar dessa experiência pessoal. Não claudicar em nossa ideologia. Não duvidar dos nossos movimentos sociais. E, especialmente, sempre estar unidos, sempre será (assim) o triunfo do povo, e essa unidade sempre significará derrota das políticas do capitalismo.
ALTMAN: A pergunta que eu faço, delicada, mas inevitável: Você acha que sua candidatura à reeleição no ano passado foi um erro?
MORALES: Todos os momentos cruciais foram ligados à minha candidatura. Inicialmente, depois do golpe, pensei que talvez tivesse sido um erro. mas agora se demonstra, e por que se demonstra? Que com o Evo, em nosso processo de mudanças, não se viveu jamais o que foi destruído na Bolívia em 11 meses, então o povo tinha razão. Não é que o Evo se impôs como candidato, o povo é que me levou a ser candidato. Encontramos saídas jurídicas, técnicas, e agora todos dizem que se tivéssemos continuado naquele processo, a Bolívia não estaria como está neste momento. E o povo tem razão, nós ganhamos no primeiro turno.
Teríamos enfrentado a pandemia com programas sociais, e também tínhamos experiência em gestão pública. Não haveria esta situação econômica no país. Eu me convenci de que as pessoas não se equivocaram, mas a direita, em pouco tempo, levou a nossa querida Bolívia para onde?
ALTMAN: O que você espera do governo de Luis Arce, presidente?
MORALES: Arce é um companheiro de confiança, em quem tenho muita confiança. Em 2005, nós chegamos ao governo sem experiência em gestão pública, nem ele, nem Evo, nem Álvaro (García Linera), nem David (Choquehuanca), ninguém. Eu só tinha experiência como sindicalista. Para ser dirigente sindical, você participa de palestras e seminários, mas para ser presidente do Estado plurinacional não há palestras ou seminários.
Errando e errando nós fomos aprendendo. Eu cometi erros, sou um ser humano, mas nós nunca traímos o povo. E, assim como o Lucho (Arce), nós aprendemos, e o Lucho agora tem experiência. Em 2005 e em 2006, o Lucho também não tinha experiência. Em 2005, nos deixaram um país destroçado, e em quase 14 anos, nós demonstramos que a Bolívia tem muito futuro e muita esperança. Um trabalho em conjunto.
Segundo, agora eles novamente deixaram um país destroçado. Mas agora nós temos experiência em gestão pública, e nós vamos recuperar a Bolívia, trabalhando de forma unida, de forma organizada, e para isso o que temos que fazer? Temos que fazer um acordo nacional. Um pacto de unidade entre os partidos da direita, empresários, trabalhadores e o Estado. Um grande acordo nacional, primeiro, para uma política de reconciliação, e, no aspecto econômico, para uma reconstrução, para levantar nossa economia.
E nós acompanharemos o Lucho como sempre, junto com os movimentos sociais e a militância. O Lucho é o presidente e tem que governar com a sua equipe. Nossa obrigação como militantes, como ex-autoridades e como movimentos sociais, é acompanhar para que ele faça uma boa gestão, e será uma boa gestão, apesar da terrível situação econômica que vivemos por culpa dos golpistas.
ALTMAN: Como a Bolívia pode se recuperar da crise e da pandemia, presidente?
MORALES: Bom, com a presença do estado, não?
Eu acho isso um pouco engraçado. Os que antes pediam “mercado, mercado, mercado”, agora pedem “Estado, Estado, Estado” por causa da pandemia. É interessante escutar essas mensagens. Mas, com a cooperação com Cuba, com a China, com alguns países europeus, com a Rússia, nós vamos enfrentar a pandemia.
Segundo, com um bom investimento, porque nós investimos tanto em temas de saúde, e decidimos que, no momento em que haja uma vacina para esta pandemia, nós vamos distribuir gratuitamente para todos os bolivianos, todos os 11 milhões. Os futuros parlamentares já trabalham com esta recomendação, de avançar nessa linha de como garantir essa vacina correspondente.
Um trabalho conjunto entre as instâncias do Estado inteiro, os estados subnacionais, os governadores, não? Tenho certeza que o Lucho conversará com os nove governadores de departamento, com todos os prefeitos, e os movimentos sociais, para indicar conjuntamente o que todos temos que fazer pra enfrentar esta pandemia. Embora ela tenha diminuído bastante na Bolívia, onde o povo aprendeu a se curar sozinho.
O povo cura o povo. É uma experiência interessante, diante da ausência do Estado durante esses dias tão difíceis que vieram com a pandemia.
ALTMAN: Qual foi o segredo para o desenvolvimento da Bolívia durante o seu governo? E você acha que acha que é possível repetir a mesma política econômica de antes do golpe?
MORALES: Em 2005, quando chegamos às eleições, nós tínhamos 3 propostas: No aspecto político, a reconstrução da Bolívia; No aspecto econômico, a nacionalização de recursos naturais e dos serviços básicos ou das empresas estratégicas; E no aspecto social, a redistribuição de riqueza.
A refundação, por meio de uma assembleia constituinte, teve problemas. Nós lutamos por 3 anos, e nesses 3 anos, nós derrotamos o referendo revogatório, derrotamos o golpe de Estado, derrotamos o separatismo. Assim nós refundamos a Bolívia, (que passou) do Estado colonial ao Estado plurinacional. Somos tão diversos, nossa diversidade é a riqueza da nossa identidade. A diversidade é a fonte da nossa unidade.
E na questão econômica foi mais simples: Nós chegamos no governo e analisamos a questão dos recursos naturais e a partir disso começamos a mudar a situação econômica do país. E a questão da nação se respeita.
E também começamos a dar valor agregado aos nossos recursos naturais. Agora, com o Lucho Arce, vamos aprofundar a industrialização. Então, nosso modelo econômico obteve resultados importantes, mas também na parte social, como sempre, (houve) uma presença do Estado (ao lado) dos setores mais humildes, com as transferências, bolsas e financiamentos.
Também vivemos momentos difíceis, como, por exemplo, em 2008, quando o preço do petróleo caiu e isso também afetou o gás. Em 2014, sem nenhum problema, ganhamos esta batalha, e o fizemos com crescimento econômico. Em 13 anos, nos primeiros seis anos, a Bolívia foi o primeiro país em crescimento econômico na América do Sul, com grandes conquistas econômicas que vieram da luta do povo.
As nacionalizações, e, agora, tomamos medidas importantes na questão da industrialização em nosso programa de governo visando o bicentenário, priorizando a substituição da importação pela industrialização. Muito bem planejada e implementado em alguns setores.
Isso vai continuar com o Lucho como presidente.
ALTMAN: Presidente, houve erros em seu governo que não deveriam ser repetidos agora? Se houve erros importantes, quais seriam?
MORALES: Quem sabe, nós não atendemos todas as demandas que o povo queria Essas demandas, algumas esperam por 180 anos. Outras demandas, algumas de 50, 60 70 anos atrás, em diferentes departamentos, a maioria já foram executados, ou estão sendo executados.
Só quero dizer a vocês só mais um dado: Quando cheguei ao governo, só havia 1.080 quilômetros de estradas pavimentadas na Bolívia. Na nossa gestão, chegamos a mil, perdão, a 5.300 km quilômetros pavimentados, que nós deixamos no ano passado. E estavam em construção mais 2.300 km. Quer dizer, 2.700 quilômetros no ano passado, alguns inclusive já entregamos. Em minha administração. Então, esse tipo de investimento vai continuar para que a Bolívia continue se desenvolvendo.
ALTMAN: Presidente, você foi derrubado pelas elites do país, no golpe do ano passado, apesar daquele crescimento econômico e da melhora de vida dos bolivianos. O que se pode e se deve fazer para evitar que ocorra o mesmo com o governo de Arce? Caso os poderes fáticos tentem derrubá-lo, como aconteceu no ano passado?
MORALES: A unidade. Aqui (na Bolívia) existe uma grande vantagem: Eu fiquei surpreso com a participação das novas gerações, das juventudes. Uma coisa é ter experimentado o fel do neoliberalismo, e outra coisa é ter experimentado o mel do processo de transformação. Agora que os mais jovens viram como se vive com a direita e com a ditadura, eles puderam refletir e ver que estavam errados.
O fator fundamental deste resultado (de 2020) foi a participação dos jovens, porque já não apenas ouviram falar, eles viram. Como estávamos com a nossa revolução e como ficamos depois, com o golpe de Estado. Isso foi importante. Então, esse resultado vai permitir que esse tipo de golpe de Estado não aconteça mais.
O povo vai defender a democracia, e defendendo a democracia se defende a pátria, e defendendo a pátria se defendem também seus recursos naturais. Porque, o que é que estava em jogo no dia 18 de outubro? Voltar ao passado com os privatizadores ou continuar no rumo do futuro, com os nacionalizadores. E nós, os nacionalizadores, ganhamos quase 55%. Essa é uma grande vantagem que temos.
ALTMAN: Como impedir que os meios de comunicação, setores do Exército e da polícia, do sistema judiciário e dos empresários voltam a atacar o poder com um golpe de Estado? É preciso mudar algo na estrutura política do país?
MORALES: Esse será o debate posterior. Por enquanto, nós devemos consolidar nosso processo de mudanças. Estamos com o Lucho na presidência, e em todo caso (vamos fazer) como sempre fizemos, agora como algo permanente, porque para mim a democracia não acaba no dia da eleição. Para mim, a eleição é todos os dias, fazendo acordos com os diferentes setores.
Se falamos do setor empresarial, na nossa gestão, setor empresarial que criou empresas para fazer dinheiro, seja bem-vindo, fez dinheiro. Outra coisa é o empresário que usa a empresa para fazer política, ou que faz política para fazer crescer suas empresas, aí nós temos diferenças. Empresários bolivianos que quiserem fazer empresas sejam bem-vindos, serão respeitados, e também seus investimentos, mas não têm que se meter sobre temas econômicos, até porque eles viram como nós demonstramos que, com nosso modelo econômico, a Bolívia tem muito melhor futuro.
Por exemplo, em 2005, o investimento público, quanto era? Pouquinho mais de 600 milhões de dólares. Nos últimos anos da nossa gestão nós programamos mais de 8 bilhões de dólares de investimento público. Apesar de que, quando eu fui candidato em 2005, o que a Embaixada dos EUA dizia? Que se Evo fosse presidente não haveria crescimento, nem cooperação. Que falso. Bom, é preciso se lembrar disso, não?
Então, outros setores sociais foram chamados ao diálogo, e vamos fazer isso novamente, chamar os policiais, os militares, porque eles sabem que antes estavam melhor, e alguns se sentem culpados por terem levado a Bolívia a um desastre econômico. Talvez não por causa deles, mas sim por culpa dos seus ex-comandantes. Que eles conhecem.
Agora, evidentemente há um problema pendente na questão da Justiça… certamente haverá encontros nacionais para fazer o sistema de Justiça melhorar. Sabemos que há problemas, mas com diálogo e com a participação de diversos setores e também dos órgãos subnacionais e outras estruturas do Estado sempre se pode melhorar e será uma tarefa para o governo do companheiro Lucho Arce.
ALTMAN: Você acredita que os militares e civis que participaram do golpe no ano passado devem ser processados e punidos?
MORALES: Isso não corresponde a mim (responder), nem corresponde ao órgão executivo. Isso corresponde à esfera judicial. Tampouco posso dizer que vamos processá-los, mas quero que você saiba de algo, Breno: Pessoalmente, eu não tenho caráter vingativo, nem rancoroso. Inclusive, alguns dos meus companheiros podem me questionar (por isso).
Os indígenas, desde os tempos da colônia, sempre buscaram integração. Nosso líder Túpac Katari dizia, nos tempos da colônia, que nós, os povos indígenas, deveríamos nos organizando junto com eles, os mestiços, os crioulos, deveríamos nos organizar e defender juntos o nosso território.
Como se planeja uma integração? Zárate Willca, já durante a República, também disse que temos que fazer aliança com os brancos de bom senso. Os brancos como o Breno, fazemos aliança. Para trabalhar pela Bolívia, pelo nosso território, já no tempo da república.
Eu venho dessas famílias. Integração? Integração! Unidade? Unidade! Nesses momentos, respeitando as nossas diferenças de caráter ideológicas e programático, diferenças de interesses setoriais e etc., primeiro tem que haver um pacto pela Bolívia. Temos que priorizar a Bolívia, pois já demonstramos que a Bolívia tem muito futuro, o qual precisamos retomar, e vamos fazer isso com o Lucho e o David, vencedores das eleições, e por isso digo que será questão de tempo para nos organizar, e isso acontecerá depois que o companheiro Lucho tome posse como presidente.
ALTMAN: Presidente, você voltará à Bolívia? Quando?
MORALES: É questão de tempo. Será um acontecimento importante. O companheiro Lucho já tem um programa econômico para lançar. Para isso, estava planejando em conjunto, repito, os empresários por sua parte. O Estado, por sua parte…
ALTMAN: Mas minha pergunta era: você voltará à Bolívia?
MORALES: Desculpe?
ALTMAN: Você vai voltar à Bolívia? Você regressará à Bolívia? Quando?
MORALES: Cedo ou tarde eu terei que voltar. E vamos voltar! Nós falamos sobre isso. Primeiro, eu não sou nenhum delinquente. Não sou nenhum meliante. Os processos que tive são de 1989. Acusações de “terrorismo”, “sedição”, “conspiração”, às vezes narcotráfico, às vezes assassinato… nunca demonstram nada.
Ninguém jamais me processou por corrupção. Pegaram informações e tentaram montar, semear provas, agora, usaram o tema da corrupção, tentaram me ligar à corrupção. Não conseguiram, e não vão conseguir. Apesar de todos esses problemas legais, eu sempre ganhei contra todos os que me processaram.
É parte dessa estratégia de guerra suja: propagar mentiras para gerar violência. Usar mentiras para discriminar, para marginalizar as pessoas. Mentiras para proscrever. O povo sabe exatamente que o programa da direita é baseado apenas em atacar, o Evo, agora o Lucho, tantos processos…
Se a direita não tem programa, faz isso, e o povo sabe que o MAS tem programa. Por isso temos essa grande surpresa de ganhar com mais de 50% das intenções. Com isso, o povo boliviano disse tudo.
ALTMAN: Você pensa em assumir algum cargo no governo Arce?
MORALES: Jamais! Jamais! Eu vou retornar ao Trópico de Cochabamba, e ficarei lá, no trópico.
ALTMAN: E o que fará lá?
MORALES: Agricultura, como sempre. Fazer uma piscina de tambaquis, para um dia lhe convidar para comprar do meu. Vou te mandar o convite, espero que me visite.
Se não vou jogar uma mandinga, para que vá me visitar no Trópico de Cochabamba.
ALTMAN: Perfeito! Presidente, você teme relações conflitivas com Bolsonaro e com Piñera, depois da eleição de Arce? Como acha que serão as relações de Arce com o Brasil?
MORALES: Breno, nas reuniões que tivemos com Bolsonaro, com Macri e com Piñera, sempre houve amizade, apesar de termos profundas diferenças ideológicas e programáticas. Porque em toda a América do Sul, com qualquer presidente eleito democraticamente, seja de esquerda ou direita, devemos trabalhar em conjunto, respeitando nossas diferenças.
Nós vamos pedir aos movimentos sociais para recriar a Unasul. Temos que relançar a Unasul. Um centro de integração: na política a Unasul, na economia o Mercosul. Nós, sul-americanos, não podemos ficar isolados. Repito, se respeita que o povo eleja um partido de esquerda ou direita, se respeita. Mas existem instituições como a Unasul que são muito importantes para os sul-americanos.
E com a Unasul podemos relançar também a Celac, que é outro organismo de integração para os países da América Latina e do Caribe. Obra de Fidel, obra de Chávez, obra de Lula, obra de Correa, obra de outros presidentes e que nunca podemos abandonar, porque é importante.
É importante a Unasul para construir, avançar, e para isso vamos nos entender com todos, sejam de direita ou esquerda, se respeita isso, e inclusive está na ata constitutiva da Unasul, sobre o desrespeito ou o respeitar aos presidentes eleitos pelos seus povos. Não se aceitam os que assumiram por golpe de Estado. Aí sim, talvez tenhamos diferenças. Mas se foram eleitos pelo povo, mesmo que sejam de direita (tudo bem), assim como eles têm que respeitar o nosso presidente Lucho Arce.
ALTMAN: Houve decisões em relação ao Brasil por parte do governo de Jeanine Áñez, que você acha que deveriam ser revisadas por Lucho Arce?
MORALES: Que tema, por favor?
ALTMAN: Eu lhe pergunto: houve decisões do governo Jeanine Áñez relativas ao Brasil, por exemplo, sobre a questão do gás, que o governo Lucho Arce terá que revisar e mudar?
MORALES: Bom, eu não tenho muita informação técnica (sobre o tema), apenas jornalística, não sei quais são esses acordos, o Lucho criou uma comissão técnica para poder ver porque ocorreram essas mudanças, não?
Agora, um governo de transição não tem autorização para alterar contratos nem políticas. A missão de um governo de transição, com base na constituição, é o de garantir a eleição. Mas se fizeram mudanças, oportunamente, legalmente e constitucionalmente, isso será revisto.
ALTMAN: Perfeito… Presidente, qual poderia ser a influência das eleições dos EUA para a Bolívia? Ao seu ver, é melhor que ganhe Biden ou Trump? A principal aliança do seu país deve ser com a China ou com os EUA?
MORALES: Vejamos… primeiro, o gringo deu um golpe de Estado contra o índio, marcado por violência, por racismo, com discriminação e com tanta agressão. Nós, os índios, nos recuperamos democraticamente. Agora, quero dizer, democraticamente, que nessa luta eleitoral, os índios derrotarão o gringo que nos golpeou. Disso eu tenho certeza.
Embora eu tenha muitas dúvidas sobre a democracia nos EUA. Não importa quem ganha, não muda quase nada. O povo norte-americano vota nas eleições, mas quem governa não é o partido que ganha, nem o presidente, quem governa são as multinacionais. A política dos EUA é a política do capitalismo, mas se alguns são muito mais racistas ou menos racistas, ou se são mais capitalistas ou menos capitalistas, isso é o povo que terá que dizer algo sobre, mas nós temos certeza que o gringo que deu o golpe no índio terá que acertar suas contas nas próximas eleições.
ALTMAN: A principal aliança do seu país, repito, da questão que fiz antes, deveria ser com a China ou com os Estados Unidos? Qual deveria ser a política internacional da Bolívia?
MORALES: Na política exterior, a Bolívia sempre terá relações diplomáticas com todo mundo. Agora, evidentemente, priorizando os governos amigos, governos progressistas, presidentes solidários e mais humanos. No nosso caso, vamos retomar relações diplomáticas com Cuba, com a China, com a Rússia, isso é normal.
E se os EUA querem ter relações diplomáticas, bem vindos, mas que nos respeitem. Não vamos aceitar mais nenhuma conspiração e vamos defender a soberania e a dignidade do povo. Além disso, que respeitem a nossa diversidade, porque a diversidade é a riqueza da nossa identidade. A diversidade é a fonte da nossa unidade. Portanto, é nossa obrigação fazer respeitar a nossa soberania, mesmo mantendo relações diplomáticas também com os EUA.
ALTMAN: Presidente nos últimos meses, as forças progressistas ganharam no México, na Argentina e agora na Bolívia. Venezuela e Cuba resistem ao cerco dos EUA. Chile e Colômbia se rebelam contra o neoliberalismo… A esquerda latino-americana, na sua opinião, está retomando a ofensiva política?
MORALES: Esse triunfo na Bolívia, tenho certeza, não serve apenas para os bolivianos. Serve também para os latino-americanos. Temos demonstrado isso através do movimento indígena, e dos movimentos sociais, que em comunidade se pode fazer muita história, e uma bela história para a humanidade. Tenho certeza que haverá surpresas no Equador, tenho muita confiança. E também em certa rebelião dos povos, das juventudes, como vemos nos meios de comunicação, no Chile, na Colômbia…
Está voltando essa luta pela libertação dos nossos povos, e por isso digo que está muito perto, para mim, o relançamento da Unasul, que depois continuará crescendo, com os países vão se libertar democraticamente.
ALTMAN: Presidente, qual você acredita que deva ser o projeto da esquerda para a América Latina?
MORALES: Na questão política, a libertação, não? Integração. Também na questão política, deixar de ser submisso à política norte-americana. E na economia, o principal é que os países da América Latina sejam donos dos seus recursos naturais.
E ainda falta uma tarefa: a de como avançarmos em ciência e tecnologia. Nós podemos garantir a libertação política e ideológica, podemos garantir a libertação social, cultural… nós garantimos, por exemplo, a libertação econômica, que acompanha uma libertação política e cultural. Mas ainda nos falta a libertação na ciência e na tecnologia. E essa é uma das nossas fraquezas.
E por isso nós decidimos, na Bolívia, que nós vamos industrializar o lítio. E este golpe (de Estado) também foi um golpe ao lítio. Senadores e empresas privadas norte-americanas reconheceram que participaram e que financiaram o golpe de Estado na Bolívia. Mas isso não é repercutido em todos os meios de comunicação. É como já disseram antes, a luta da humanidade é sobre quem controla os recursos naturais, de quem são os recursos naturais.
E na Bolívia, graças à luta do movimento indígena e dos movimentos sociais, diferentes setores, decidimos nacionalizar, recuperar. É o pecado que nós promovemos junto com os movimentos sociais. E foi com essa recuperação que mudamos a situação com em todo o país.
Que a política da América Latina, na parte econômica deve ser, fundamentalmente, sobre como ter controle sobre nossos recursos naturais. Porque tantas tentativas de intervenção, de golpe, de invasão dos EUA à Venezuela, com ameaças jurídicas ao irmão Nicolás Maduro. É pelo seu petróleo.
Então, os países da América Latina temos a obrigação de defender nossos recursos naturais. Esses recursos naturais que estão sob a definição do Estado, que são recursos naturais que são do povo.
E no aspecto social, tenho certeza de que os serviços básicos devem ser um direito humano e não um negócio privado.
Agora, que estamos enfrentando a pandemia, quero dizer que a saúde deve ser um direito humano. A vida não pode ser uma mercadoria. Essa é a diferença profunda que temos com o sistema capitalista e com a direita, não só a boliviana como a latino-americana. Como a vida pode ser uma mercadoria? Como pode a saúde ser um negócio privado? Se tivermos responsabilidades, com as políticas econômicas, com os programas sociais, com as reivindicações para defender a soberania e a dignidade… Bom, com tudo isso, a América Latina seria dignificada, seria um modelo de continente.
ALTMAN: Você acha que essas mudanças tão importantes são possíveis dentro do capitalismo, no contexto da América Latina?
MORALES: Nós (na Bolívia) já demonstramos. Somos parte de uma economia plural, onde o Estado lidera o investimento, acompanhado o setor privado, respeitando, mas também acompanhando os setores associativos. Onde o Estado encabeça os investimentos há resultados. Os estados não podem ser só reguladores, como quer o FMI: Um estado anão, um estado mínimo, obrigando a enxugar o estado. Um estado que não investe não produz. Um estado que não investe não gera divisas. Como vai atender as demandas do povo?
Os privados têm o seu direito, têm o seu espaço, os privados só pagam impostos. O lucro é para os privados, isso está sendo respeitado, mas quando o Estado investe, também paga impostos, e o lucro é para o povo. Eu falo pela minha experiência. Para diminuir a pobreza e a desigualdade, entregamos bolsas e auxílios para as pessoas mais humildes. E como se pagam essas bolsas e auxílios? Com os lucros das empresas públicas. Então é possível, porque este golpe de Estado também foi sobre o modelo econômico.
Eu quero dizer depois que assumirmos o governo da Bolívia nós mostramos que outra Bolívia é possível. Sem ATPDEA, sem Conta do Milênio, sem USAid e especialmente sem o FMI. Nós nos libertamos das receitas do FMI. Se seguimos alguma receita agora é a receita do povo e não do FMI. É possível.
Agora, obviamente, cada país tem sua própria particularidade. Na Bolívia, ficou demonstrado, e eu dizia aos privados: Vocês também têm responsabilidade social. E quando o crescimento econômico era de mais de 4,5%, nós dávamos até 14º salário, tanto (para os trabalhadores do) Estado, quanto (para trabalhadores) privados. Quando se injeta mais recursos no povo, há movimento econômico e mais crescimento.
E se também tiver uma campanha de “compro (produto) boliviano”, “compre produto nosso”, melhor ainda. Podemos ampliar o mercado interno, substituímos a importação, e podemos até ampliar o mercado externo. Uma política para que a Bolívia siga crescendo economicamente.
ALTMAN: Presidente, estamos chegando no final da nossa entrevista. Então vou fazer mais duas últimas questões. A primeira: Você disse que, quando voltar à Bolívia, pretende ir a Cochabamba, para trabalhar como agricultor e se vincular novamente aos movimentos populares. Não tem a intenção de se candidatar a nenhum outro cargo público?
E acha que poderia ter algum papel internacional? O que você pretende fazer politicamente, presidente?
MORALES: Não, eu nunca pensei… nunca pensei numa atividade internacional. Bom, quando eu era dirigente (sindical) sempre havia umas conferências. Isso é normal, convites para decidir, mas (convite) para ser autoridade, nunca. Tenho muito interesse de voltar à minha região, à zona do Trópico de Cochabamba, e compartilhar minha experiência na luta sindical e com as novas gerações. Compartilhar minha experiência na gestão pública com as novas gerações. Os processos revolucionários precisam de novos elementos, novas gerações.
Aonde me convidarem eu estarei presente, com carinho, nos organizaremos, esta é a nossa missão.
ALTMAN: Presidente, a última pergunta: o ex-presidente Lula fará 75 anos no próximo dia 27 de outubro. Você gostaria de deixar os seus parabéns a ele?
MORALES: Sim… meu respeito e minha admiração ao irmão Lula. Temos muitas lembranças. Eu o conheci quando participei do Foro de São Paulo, Fórum (Social Mundial) de Porto Alegre, eu corria atrás do irmão Lula para cumprimentá-lo, antes de ele ser presidente. Era difícil cumprimentá-lo porque era sempre muito requisitado.
Depois fomos companheiros juntos, debatendo como presidentes. Creio que ele é o primeiro presidente operário da América do Sul, e nisso nós nos parecemos. Eu sou o primeiro presidente que veio do movimento indígena, e indígena sindical. Então aproveito de parabenizá-lo pelo seu aniversário. Eu faço aniversário no dia 26 e ele no dia 27, até nisso nós nos parecemos. Desejo muita sorte, muito sucesso ao irmão Lula, que continue contribuindo sempre, com suas reflexões, para o bem da Pátria Grande. Desejo muito sucesso, irmão Lula. Até breve! E até breve, Breno!
ALTMAN: Obrigado pela entrevista, presidente Evo. Foi uma honra poder entrevistá-lo e parabéns a você, e a todos os companheiros pela vitória impressionante na Bolívia. É uma vitória para toda a América Latina e uma vitória que, particularmente, anima todos nós, brasileiros, para resistir contra o governo de direita aqui, e voltarmos também! Temos que voltar (ao poder) também no Brasil. Muito obrigado, presidente!
MORALES: Muito obrigado! Até breve!