Segunda-feira, 12 de maio de 2025
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O ano de 2025 começa com boas notícias para o mundo das artes, em especial para os apreciadores e estudiosos do Modernismo. A partir de fevereiro, o acervo do artista plástico e arquiteto de interiores John Graz passa a integrar o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).

No entanto, para o público comum essa informação pode não parecer impactante. Afinal, o que é um acervo?

Como explica a diretora do IEB, Monica Dantas, o acervo de um artista é composto pelo conjunto de suas obras, mas também por publicações e demais documentos que produziu ou guardou ao longo de sua vida e que inspiraram seu trabalho.

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No caso de Graz então, o IEB recebe seus desenhos, guaches e projetos de arquitetura, mas também livros e outras obras que não foram feitas por ele, mas eram de sua posse e contribuíram para sua formação e produção.

O trabalho de tratar um acervo é um processo cheio de detalhes, desde o momento em que ele chega à instituição que vai recebê-lo.

Opera Mundi fez uma visita a todos os locais do prédio onde as obras de Graz farão companhia a acervos de outros artistas, escritores e pensadores mantidos pelo instituto. Segue aqui um passo a passo do que acontece quando o acervo de um artista ao chegar em um instituto, passando inclusive por locais inacessíveis ao público.

Área de tratamento

Guiado por Bianca Dettino, supervisora técnica da Coleção de Artes Visuais, Opera Mundi fez a trajetória de um acervo que chega ao IEB, sendo sua primeira parada a Área de Tratamento.

Caixas, gavetas, mesas de trabalho, diversos tipos de papéis e obras de arte ou até mesmo móveis espalhados definem o primeiro local que passa o acervo. Dettino explica que muitas das obras ali já estão sendo processadas, enquanto outras ainda aguardam após serem tiradas de suas caixas para serem avaliadas.

“Esse local é de trânsito. Como as caixas vêm sujas, tiramos as obras delas e verificamos. Mas de qualquer forma, só fazemos isso após garantir que o acervo está completamente descontaminado”, explica.

Duda Blumer
Gavetas de mapoteca na Área de Tratamento do Instituto de Estudos Brasileiros da USP

A descontaminação tem como objetivo retirar qualquer tipo de sujidade das obras, inclusive insetos como traças e cupins. Para isso, são submetidas a radiação controlada. E, para manter a higienização após esse processo, todas as salas que passam os acervos têm temperaturas equilibradas com ar-condicionado.

“O acervo do John Graz está montado em paspatur (papel em relevo usado na montagem de quadros para não permitir que o vidro encoste na obra), que é uma pré-moldura de exposição. Seu trabalho vai vir muito processado, não é um acervo cru”. Isso significa que o acervo do artista modernista precisará ficar na Área de Tratamento um tempo menor do que o normal.

Feita a catalogação do acervo, ele pode estar pronto para ir para a reserva técnica, ou pode necessitar de restauração. Neste caso, vai para o Laboratório de Conservação e Restauro.

Laboratório de Conservação e Restauro

Para ajudar a imaginação daqueles que nunca entraram em um laboratório de conservação e restauro, ele é bastante similar a um laboratório científico.

Diversas pias grandes espalhadas em bancadas de granito recebem os papéis para banhar livros ou desenhos que precisam de restauração. Leitores e amantes de livros nunca pensariam em aproximar suas coleções de livros à água. Contudo, no IEB e em qualquer outro instituto que recebe livros, essa ação é comum. E diferente do que pensamos, com os produtos certos – como o hidróxido de cálcio – e profissionais capacitados, ela não vai estragar a folha, mas sim, deixá-la com aspecto de nova.

Duda Blumer
Laboratório de restauração do IEB

Após passar pelas várias etapas de “banho” ou tratamento aquoso, a folha vai ficando com um aspecto mais limpo, e é aplainada em estantes de metal que permitem a ventilação por todos os lados, também com o auxílio de um papel filtro para secar e não ser alvo dos fungos.

Duda Blumer
Componentes químicos necessários para o tratamento aquoso das folhas

Em sequência vai para a prensa ser colada. Dettino explica que folhas de livros antigos apresentam furos ou a costura da lombada danificada porque insetos vão atrás da cola para alimentar-se. Por isso, o restaurador vai preenchendo com agulhas os furos possíveis. Quando são rasgos, o livro deve ser submetido a uma máquina para fazer este trabalho preenchendo as lacunas com uma mistura formada por uma espécie de massa de água e papel.

Duda Blumer
Prensa para colar folhas de livros submetidos ao tratamento aquoso

Segundo a especialista, o tempo desse processo depende de cada livro, sua grossura, detalhes – como carimbos e escritas à mão – e da técnica que cada um exige, sugerindo que há livros que precisam de um mês neste procedimento.

“A aquarela, por exemplo, já não dá para fazer isso porque ela vai dissolver. Outros materiais, com tinta composta por ferro, também não, porque enferruja”, explica.

O laboratório também tem uma espécie de incubadora para desenrolar – com a umidade – papéis que vêm enrolados, como plantas de arquitetura; máquinas seladoras, que funcionam a base de calor; mesa para higienização mecânica com aspirador para a sujidade não voltar à obra e microscópio; frigobar para guardar materiais como cola; pincéis; chuveiro e “lava olhos” para qualquer eventual acidente com o restaurador.

A principal máquina objeto de orgulho de Dettino e da equipe do IEB no laboratório é a máquina de corte de papéis, como o paspatur, altamente utilizado nos acervos.

“Em uma tarde, ela faz um trabalho que, à mão, levaria uma semana. Você só precisa programar, uma pessoa operando é necessária, mas é muito ágil”, explica sobre a máquina que também corta os moldes das caixas que guardam as obras tridimensionais.

“A restauração acompanha muito a indústria de instrumentação médica. Precisamos ter materiais que não enferrujam. A restauração é uma coisa muito ingrata porque você perde muito tempo em uma só obra antes dela ir para a Reserva Técnica. É uma batalha inglória porque você fica um mês restaurando um livro e não garante que ele vai para lá”, reflete a supervisora.

Reserva Técnica

Passadas as avaliações e tratamentos necessários, o acervo chega à Reserva Técnica, uma sala com diversas gavetas em mapotecas e trainéis para guardar os acervos.

De modo simplificado, Dettino explica que nos trainéis ficam os quadros, molduras e gravuras, por conta do volume, e nas gavetas os desenhos em papéis, inclusive os utilizam pigmentos soltos como giz pastel e carvão. Estes últimos ficam arquivados em caixas para não correr o risco da pigmentação migrar para o papel neutro que guarda o desenho.

Duda Blumer
Trainéis com obras de acervos do IEB

Nas gavetas e trainéis, as obras são catalogadas de acordo com sua ordem de chegada no IEB. Então começa por Mário de Andrade, depois Graciliano Ramos, Bernardino Lucarelli e Anita Malfatti, conforme os acervos foram sendo incorporados pelo instituto.

“Essa sistemática que a gente usa para a reserva é resultado da soma de trabalho. Não esteve sempre assim, e quando os acervos chegam não recomeçamos do zero” (para seguir o método do IEB), explica a supervisora.

Todos os trabalhos dos acervos são submetidos à mesma ordem de catalogação do IEB: as obras são acondicionadas em papel neutro, dentro de um envelope, com a identificação pela etiqueta, seguindo a ordem alfabética, começando pelo sobrenome.

Duda Blumer
Obras em papel guardadas nas gavetas das mapotecas da Reserva Técnica do IEB

Nos trainéis, onde é possível “empilhar de forma horizontal, sem sobrepor as obras, de modo a aproveitar espaço”, quase todas as obras são do acervo de Andrade, mas nem todas são de autoria dele, podendo ser pinturas que estavam em sua casa, por exemplo.

“Com esse mobiliário, damos conta de uma gama bastante grande de material bidimensional não necessariamente só papel”, afirma Dettino.

“Tudo é uma questão da melhor maneira para ocupar o espaço, porque a Reserva Técnica é sempre um lugar que você tem que ficar lidando com espaço. Quando o acervo chega aqui, ele está condensado, e depois expande”, pontua.

Uma gravura pode ser pequena, mas quando ela é passada para a moldura para ser colocada no trainel, o tamanho delas fica maior do que antes.

A supervisora explica que o trabalho na Reserva Técnica é de “monta e desmonta” até encontrar um método de guarda que faça sentido. A partir disso, o IEB tem uma política de não desmontar o que já está estabelecido, como no caso do acervo de John Graz, em que grande parte das obras já está em paspatur.

Todo esse trabalho não é definitivo, segundo nossa guia. Mas ainda assim é necessário fazer uma ficha catalográfica, que funciona como um mapa da Reserva Técnica, para de forma mais simples, o profissional responsável saiba onde está cada coisa.

Para Dettino, esse “espelho” da reserva também funciona como uma forma de transparência. “Não é um trabalho que eu faço para mim, mas para uma instituição pública”.

A Reserva Técnica é um dos lugares que Opera Mundi pôde acessar, diferentemente do grande público. É um trabalho que tem, no entanto, consequências visíveis para todos. “Ele serve para fazermos um catálogo gráfico de forma virtual”, afirma Dettino sobre os trabalhos já consolidados que ali estão.

O local também tem a temperatura e a umidade monitoradas por um equipamento específico. Dettino explica que há o sistema moderno (os Dataloggers), mas também o analógico, chamado Termohigrágrofo, que utiliza fios de cabelo ou crina de cavalo – neste, o cabelo retrai quando o ar está seco. Além disso, mede a temperatura por meio de um termômetro e uma haste registra qualquer variação de temperatura.

Duda Blumer
Termômetro analógico da Reserva Técnica do IEB

Em outra das salas da Reserva Técnica da Coleção de Artes Visuais do IEB há mobiliário, instrumentos musicais e obras tridimensionais, como esculturas grandes e pesadas. O piano do compositor Camargo Guarnieri, a escrivaninha do historiador e geógrafo brasileiro Caio Prado e o divan do escritor Mário de Andrade compõem a sala, por exemplo.

Duda Blumer
Piano de Camargo Guarnieri na Reserva Técnica do IEB

Além de Dettino, a diretora do IEB, Monica Duarte Dantas, e a vice-diretora, Luciana Suarez Galvão, acompanharam Opera Mundi na visita guiada. Sobre essa sala da reserva técnica, contaram que diversos móveis do acervo de Mário de Andrade estão em uma exposição na Casa Mário de Andrade, deixando um espaço vazio na sala.

Uma das primeiras prateleiras da sala é destinada a brinquedos, de metal e madeira. Também há materiais de autores não identificados, que vêm como parte da coleção de algum artista, mas que não são necessariamente de sua autoria. “Isso inclusive é um campo de estudo, entender porque esta obra faz parte desta coleção”, explica Dettino.

Estante de brinquedos no Arquivo do IEB

Itens do levante paulista de 1932, como anéis, maços de cigarro e outros itens que iam para o front, também são exemplos de obras guardadas na reserva técnica.

Duda Blumer
Anéis da Revolução Constitucionalista

O IEB evita separar os acervos. Assim, se algum artista tem poucos itens tridimensionais em sua coleção, que podem ser colocados em caixas dentro das gavetas das mapotecas, ali eles devem ficar. “Trabalhamos com a Gestão de Risco para Patrimônio, que são basicamente 10 itens e um deles é a dispersão. Neste caso, você não sabe de onde a obra veio e como recuperar suas informações”.

A Biblioteca

As publicações impressas do acervo do IEB são conservadas na biblioteca. No instituto, são três andares interligados, com o objetivo de facilitar o controle de temperatura e umidade – que mantém o ambiente ideal para a preservação de livros tão antigos e valiosos.

Entre as coleções, há as bibliotecas que cada artista tinha em sua própria casa, de modo que há diversos exemplares de livros essenciais à época, como Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado.

A biblioteca do IEB, a segunda maior brasiliana do mundo, depois, apenas, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, guarda raridades, como a obra de Vesalius, De Humani Corporis Fabrica, o mais antigo livro de anatomia humana, de 1543, que impactou, desde a Renascença, as representações dos corpo humana nas artes.

Duda Blumer
De Humani Corporis Fabrica, o livro mais antigo de anatomia humana, de 1543
O Arquivo

Os estudiosos do IEB levaram Opera Mundi a todos os andares do Arquivo, mostrando partituras, e diversas obras que compõem os acervos, como o livro de formatura e fotos de família do geógrafo e escritor Milton Santos, e cartas enviadas pelo imperador do Marrocos à rainha d. Maria I em 1779.

Álbum de formatura de Milton Santos

“Isso é uma transcrição, obviamente os originais não estão em português. Aqui ele está falando sobre comércio de cavalos. É a coisa mais linda”, afirma Adriano de Castro Meyer, um dos arquivistas do IEB.

Duda Blumer
Cartas do imperador do Marrocos para a primeira-dama brasileira

Entre as obras históricas, o IEB abriga o original manuscrito de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. “Não tem porque ficarmos emocionados quando vemos essas obras, mas emociona, mesmo sim”, relatam.

Duda Blumer
Original de Vidas Secas, de Graciliano Ramos

O Arquivo também abriga uma câmara fria que mantém fitas-cassete e discos, incluindo uma coleção de vozes. Por causa desse acervo, é possível saber a voz de Santos Dumont, por exemplo.

Fitas-cassete na Câmara Fria das Reservas do IEB
Laboratório de digitalização

Quando fala-se em acervos digitais ou catalogação virtual, refere-se à possibilidade de acessar as obras digitalizadas pelo site do IEB.

Para isso, é necessário um laboratório de digitalização, com diversas máquinas para que as imagens sejam disponibilizadas no site, que fornecem imagens para os pesquisadores.

Duda Blumer
Máquinas para digitalização dos acervos no IEB

Segundo Dantas, as imagens são fornecidas mediante uma taxa de manutenção para fins comerciais. Essa cobrança é revertida para a contratação de estagiários no IEB.

Sala de consulta

Para os pesquisadores, acadêmicos ou público em geral que deseja consultar os acervos disponíveis no IEB, as salas de consulta – do Arquivo, Biblioteca e Coleção de Artes Visuais – podem ser acessadas mediante agendamento.

Mesas para consulta dos acervos digitalizados do IEB

Há casos em que a obra que a pessoa precisa não está digitalizada ou está na parte restrita da reserva, nestes casos, deverá justificar sua requisição, e caso aprovada, poderá manusear a obra sob supervisão de profissionais do IEB.

Futura sala de exposição

Uma vez tratados e, eventualmente, restaurados, os acervos podem ser expostos em museus e instituições afins, uma vez feitas as tratativas com o IEB.

O espaço já existe, é uma sala envidraçada no lado direito do térreo, com mais de 400 m2, mas que precisa de muitas modificações para conseguir abrigar uma exposição de tal tipo. As professoras Monica Dantas e Luciana Galvão listam as necessidades: retirada  das máquinas de ar condicionado alocadas no espaço; troca dos dutos de ar-condicionado, colocando-os nas laterais; adequação dos sistema de iluminação; troca do piso, atualmente de carpete; aumento do número de câmeras de segurança e readequação dos controles de acesso nas portas.

“Já orçamos e a estimativa de custo total é de R$ 3 milhões, o que não é muito para uma obra deste tamanho e para o orçamento da Universidade de São Paulo. Temos esse prédio magnífico, acervos deslumbrantes, e tudo o que queríamos era expor tudo isso. Aqui seria o ponto final para o acesso do público”, afirma a diretora do IEB ao afirmar que deseja inaugurar o local antes de finalizar seu mandato, daqui a um ano e meio.

Duda Blumer
Futura sala de exposição no IEB precisa de reforma para receber acervos