Em 27 de julho de 1953, os combatentes da Coreia do Norte e os da Coreia do Sul deixavam as suas armas e retornavam aos seus lares. Era o “mais ou menos” fim de um dos conflitos mais sangrentos da Guerra Fria movida por potências estrangeiras, durante o qual coreanos matavam coreanos.
Depois da perda de três milhões de vidas com a Guerra da Coreia, ou o “Yúg-i-oh” (“Seis-dois-cinco”, na tradução em português) como os coreanos popularmente se referem à data de 25 de junho de 1950, quando iniciou-se o conflito, a Organização das Nações Unidas (ONU), comandada pelos Estados Unidos, e o governo da China haviam assinado um armistício.
Sabemos, entretanto, que o armistício não significa o fim definitivo de uma guerra. Ela apenas decreta a cessação de ações militares (no caso da península coreana, na delimitação do Paralelo 38, fronteira divisória das nações). É por isso que até nos dias atuais, mesmo depois de mais de sete décadas de trégua, as “ameaças norte-coreanas” e “provocações sul-coreanas” se tornam manchetes “urgentes” nos noticiários locais: porque tudo pode voltar.
A guerra não parou e a relação diplomática entre as Coreias continua tensa. Ela pode melhorar ou piorar a depender de quem administra o Sul e que tipo de diálogo estabelece com a governança norte-coreana — o presidente afastado Yoon Suk Yeol, do Partido do Poder Popular de extrema direita, por exemplo, conseguiu tornar o seu país no “inimigo número 1” de Pyongyang.
A guerra também continua nas relações sociais, porque a história foi contada de geração para geração. Na Coreia do Sul, pelo menos, a guerra com a Coreia do Norte é papo de cafeteria. E se, com todo o respeito, espiar a conversa da mesa do lado, pode ter certeza de que ouvirá uma opinião hostil, ou por vezes carregada de estereótipos, do país vizinho.
Esse assunto tão presente no cotidiano das pessoas me despertou curiosidade. Ao acessar o portal do Ministério da Unificação — sim, a Coreia do Sul tem uma pasta específica para o assunto — vi que até setembro de 2024, haviam quase 35 mil norte-coreanos no país. Apesar de um número muito pequeno, pensei: “por que não tentar bater um papo com eles?”
Foi assim que conheci Pak Yu Sung, o criador de conteúdo norte-coreano de 35 anos. Encontrei o seu perfil em redes sociais e enviei uma mensagem perguntando se poderia ouvir um pouco sobre a sua vida em Seul. Combinamos, em 6 de janeiro, de nos encontrarmos em uma cafeteria com uma vista bonita do Rio Han.
Chegando ao local por volta das 15h, Yu Sung já estava lá. Enquanto eu, empacotada de roupas grossas e nitidamente desacostumada com o frio do leste asiático, ele vestia trajes descolados, como os típicos jovens dos bairros badalados de Hongdae, Itaewon, Gangnam, enfim. Ou seja, “muito sul-coreano”, pensei.
Então começamos a conversar.
Yu Sung nasceu em Hoeryung, uma cidade que fica na província de Hamgyong, na Coreia do Norte. Em 2008, aos 19 anos, ele e sua mãe decidiram migrar para o Sul e morar junto do pai, que dois anos antes já havia se estabelecido no país após ser enviado pelo governo norte-coreano. Não podendo cruzar o Paralelo 38 até chegar ao destino final, tiveram que realizar uma viagem mais trabalhosa em um trajeto China-Laos-Tailândia.
Preconceito
Eu encontrei o perfil de Yu Sung pela plataforma de vídeos Youtube. Além de gerir o seu próprio canal com conteúdos autorais, percebi que ele havia participado de programas televisivos para contar sobre suas experiências como um norte-coreano na Coreia do Sul. Quando questionei o que o levou a produzir conteúdos e documentários em plataformas digitais, respondeu que foi uma alternativa que surgiu da necessidade que sentiu de contar tudo o que pudesse a respeito de seu país de origem.
“Se nós, norte-coreanos, tivermos hoje a oportunidade de passar informações reais (sobre a Coreia do Norte) e não fizermos isso, ninguém mais o fará. É por isso que eu trabalho retratando a Coreia do Norte”, disse.
Foi com esse espírito que, em 2011, Yu Sung ingressou em uma universidade de Seul para cursar cinema e teatro. No entanto, o caminho que percorreu até se formar cineasta não foi nada fácil. Os obstáculos começaram na sala de aula. As dificuldades, para além do ritmo em que se eram lecionadas as matérias, foi justamente o fato dele ser um norte-coreano.
“No começo, eu escondia a minha identidade. Isso porque, caso as relações entre as duas Coreias piorassem, os sul-coreanos poderiam passar a me hostilizar. Então pensei que seria melhor esconder isso. Meus pais também tiveram dificuldades de conseguir empregos porque tinham mais de 40 anos e, por serem norte-coreanos, os recrutadores não queriam contratá-los”, revelou.

O norte-coreano Pak Yu Sung, de 35 anos, reside em Seul e trabalha para o instituto Voices of North Korean Youths
Mais uma vez, pensei como os reflexos da Guerra da Coreia continuam tão presentes nas relações sociais. Será que os 35 mil norte-coreanos na Coreia do Sul vivem com o mesmo temor de Yu Sung? A preocupação que o então universitário tinha com relação à sua identidade era algo que evidentemente nunca se passaria na cabeça de um sul-coreano.
“Não era fácil fazer amizades. E, por isso, passei dois anos na faculdade isolado”, revelou.
Entretanto, foi por conta de um episódio específico que o destino de Yu Sung mudou. Segundo ele, um dos momentos “mais espantosos” da vida: quando seus colegas de sala finalmente descobriram que ele não era sul-coreano, mas sim um norte-coreano.
“Quando você é bolsista na faculdade, você precisa assinar uma folha que contém suas informações escritas nela, incluindo o motivo pelo qual você está recebendo o auxílio. Só que outros colegas bolsistas também precisam assinar essa mesma folha. Foi aí que eles leram a minha história e descobriram que vim da Coreia do Norte”, explicou.
A partir daquele momento, Yu Sung se tornou uma das pautas centrais da turma: enquanto alguns estudantes passaram a destratá-lo, muitos outros, pelo contrário, começaram a demonstrar maior interesse em suas origens.
“Aqueles que souberam (que eu vim da Coreia do Norte) e não gostaram desse fato costumavam se reunir em bares e falavam sobre mim. Diziam que ‘eles (norte-coreanos) são o nosso maior inimigo’, que ‘eles (norte-coreanos) vivem à base dos impostos que saem do nosso bolso’ e que ‘Seul já é muito populoso e ainda por cima esses caras (norte-coreanos) vêm aqui’. Eles não me cumprimentavam, aliás, me ignoravam. Eu fiquei sabendo que eles falavam dessas coisas por trás graças aos meus amigos. Senti essa hostilidade durante uns três a quatro anos”, contou.
Vozes dos norte-coreanos
Foram todas essas experiências, tanto as boas quanto as desagradáveis, que o motivaram ainda mais a querer falar abertamente sobre a Coreia do Norte, publicando documentários em plataformas digitais.
O recorte da vida universitária de Yu Sung havia me confirmado que o preconceito com relação aos norte-coreanos continuava, inclusive, muito presente nos jovens. Repito: são valores repassados de pai para filho. Das gerações pós-guerra que foram introduzidas aos regimes autoritários e ditatoriais da Coreia do Sul — fortemente influenciadas pelos EUA —, produzindo repúdio e medo em possíveis ameaças do Norte.
Yu Sung passou um período de sua vida dirigindo seus próprios filmes. Em 2019, foi chamado para integrar a equipe do Departamento de Unificação da principal agência de notícias sul-coreana Yon Hap como criador de conteúdo. Já no ano seguinte, com a eclosão do coronavírus, aproveitou para realizar um mestrado em estudos da Coreia do Norte.
Seguindo o seu ramo, atualmente, Yu Sung trabalha para o Voices of North Korean Youths (“Vozes dos Jovens Norte-coreanos”, na tradução em português), um instituto fundado em 1971 que, por meio de divulgação de estudos e pesquisas, visa contribuir para uma “coexistência pacífica” e “unificação democrática” entre ambos os países asiáticos.
“Falamos sobre a Coreia do Norte com credibilidade. Ao longo do tempo que passamos na Coreia do Sul, percebemos que havia muita propagação de informações incorretas e notícias falsas sobre o Norte. Só se falavam de coisas que as pessoas queriam ouvir”, relatou.
Como documentarista, Yu Sung também criticou a forma como a renomada indústria do audiovisual sul-coreano romantiza a realidade da Coreia do Norte. Ele exemplificou a crítica citando a obra Pousando no Amor, um k-drama que foi lançado em 2019 e fez um sucesso global — inclusive, entre os meus amigos no Brasil. Segundo ele, a trama era frequentemente utilizada para atacar os norte-coreanos.
“Recentemente são criadas muitas obras estereotipadas sobre a Coreia do Norte. São k-dramas, então logicamente as realidades podem ser retratadas de um jeito mais belo. Mas nesse caso (Pousando no Amor), os sul-coreanos pensavam: ‘ah, então quer dizer que a Coreia do Norte parece ser mesmo um ótimo lugar para viver’. E aí, usavam isso contra nós. Diziam: ‘então por que eles não vão embora para a Coreia do Norte, se lá é um lugar tão bom assim?’”, explicou.
Confesso que nunca tinha pensado por esse lado. Fiquei surpresa.
Unificação das Coreias
Diferentemente da opinião de grande parte dos sul-coreanos, Yu Sung revelou desejar as negociações de paz para uma possível reunificação das Coreias. No entanto, desde que isso seja feito apenas “se, antes, a Coreia do Norte mudar a sua realidade”.
O cineasta trouxe um panorama do Norte atrelado a desigualdades sociais e “erros do passado”.
“Essa é uma questão que tem que ser resolvida antes para que seja possível alguma paz entre as Coreias. Ela (Coreia do Norte) deve se reconciliar e, a partir daí, criar um novo capítulo”, afirmou.
E eu, ainda muito imersa com o ápice da crise política na Coreia do Sul, joguei uma pergunta mais avaliativa. A postura mais “confrontante” e “provocativa” do atual governo sul-coreano de Yoon Suk Yeol desgastou as relações entre os países vizinhos e interferiu em possíveis negociações de paz? Yu Sung negou.
“Não creio que pelo que aconteceu um ou dois anos atrás (período do mandato de Yoon Suk Yeol), ou até mesmo pela decretação da lei marcial (em 3 de dezembro), as relações entre as Coreias tenham sido criticamente afetadas”, sustentou o norte-coreano. Ou seja, apesar das relações evidentemente mais conturbadas quando comparadas com a gestão anterior de Moon Jae In, do Partido Democrático da Coreia de centro, o comportamento do atual mandato havia sido recebido com certa “indiferença” pelo líder Kim Jong Un.
“Dependendo de quem está no poder, se é um governo de esquerda ou de direita, o posicionamento da Coreia do Norte muda bastante. Por exemplo, quando o Sul é liderado por uma gestão conservadora, o Norte simplesmente suspende qualquer tipo de comunicação. Então, mesmo antes da decretação da lei marcial, já havia uma limitação no diálogo”, pontuou.
Pois é. Lembrei que quando Yoon decretou a lei marcial e, em seu discurso golpista, acusou a Coreia do Norte mencionando supostas “ameaças” das “forças comunistas” contra o seu país, Kim não se pronunciou logo de cara. Demorou dias. E quando finalmente o fez, disse apenas que o presidente sul-coreano havia tentado impor uma “ditadura fascista”. Sem mais.
No fim da conversa, o sol já se punha pelo Rio Han e o café que tinha esquecido de tomar estava um gelo. Yu Sung agradeceu por estar relatando parte da sua história na mídia brasileira.