Há quatro anos, em 13 de novembro de 2020, a organização política Frente Polisário, que defende a autodeterminação do povo da República Árabe Saarauí Democrática (RASD), retomava as armas contra o Exército marroquino. O regresso à luta armada foi motivado após um ataque do Marrocos na zona-tampão de Guerguerat, sul do Saara Ocidental, que tinha objetivo de expulsar um grupo de rebeldes saarauis que bloqueava uma rota para a vizinha Mauritânia.
Na ocasião, o grupo de resistência saaraui acusou o Marrocos de romper um acordo de cessar-fogo de quase 30 anos. “Estamos em guerra desde então. Fazemos a política de desgaste até que aceitem negociar”, afirmou o representante da Frente Polisário no Brasil, Ahmed Mulay, em entrevista a Opera Mundi, na sede da organização em Brasília.
“Marrocos mantém-se como fator fundamental para França usar de suas antigas colônias. É um país pobre, e precisa acabar com o povo saaraui para se apropriar de nossas riquezas, influenciado pelo neocolonialismo francês”, acrescentou o diplomata.
O antropólogo e escritor saaraui Bahia Mahmud Awah, da Universidade Autônoma de Madrid, defendeu à reportagem que há quatros anos o povo do Saara “decidiu, através da organização, voltar às armas, vendo que a ONU não estava fazendo nada”.
Segundo princípios da Carta Magna da Organização das Nações Unidas, acrescenta ele, “todo povo oprimido tem direito de conquistar autodeterminação”.
No início desta semana, o embaixador francês no Marrocos, Christophe Lecourtir, iniciou uma visita oficial para Laâyoune e Dakhla, cidades do Saara ocupadas pelo Exército marroquino, para se aproximar da população e autoridades locais. O país europeu pretende “avaliar os desafios e necessidades” e identificar “maneiras de apoiar o desenvolvimento econômico e social em benefício da população”, de acordo com comunicado da embaixada da França.
Para o professor Mahmud Awah, a visita francesa é uma “provocação” contra a autodeterminação do povo saaraui, sendo a França um país “colonizador por natureza” e Marrocos o “único feudo” onde Paris exerce hoje uma política colonizadora.
Isso porque o território do Saara Ocidental detém as maiores jazidas de fosfato do mundo, além de reservas de cobre, urânio e ferro. Também é abastecido por uma costa rica em frutos do mar. “São esses recursos que estão atraindo o Marrocos, França e também o Estado sionista [Israel] ao território”, protestou o antropólogo.
Israel reconhece a soberania do Marrocos sobre o Saara Ocidental após um acordo de normalização das relações entre os países em dezembro de 2020. O então presidente dos Estados Unidos, e agora reeleito, Donald Trump, também concordou com parte do acordo em reconhecer a soberania marroquina sobre os territórios ocupados.
Por outro lado, no início de outubro, a luta por autodeterminação do povo saaraui acumulou vitória depois que o Tribunal de Justiça Europeu anulou dois acordos comerciais firmados em 2019 com o Reino de Marrocos nas áreas de agricultura e pesca. Na decisão, a Corte decidiu que a Comissão Europeia violou o direito das pessoas no Saara Ocidental ao não consultá-las sobre acordos comerciais com o Marrocos.
Brasil e o BRICS
O Brasil é um dos três países da América do Sul que não reconhecem a soberania da República Árabe Saaraui Democrática, ao lado da Argentina e do Chile. Por esse motivo, o Itamaraty não mantém relações diplomáticas com o Saara Ocidental, mas reconhece a Frente Polisário como o único e legítimo representante do povo saaraui.
Na tentativa de reverter essa posição, em 2023, a deputada federal Erika Kokay (PT), do Distrito Federal, começou um movimento de articulação para a criação do Grupo Parlamentar Brasil-Saara Ocidental, com objetivo de pressionar o governo brasileiro a estabelecer relações diplomáticas com a República Saaraui.
Já em maio de 2024, a Câmara Legislativa do Distrito Federal sediou uma sessão solene em comemoração aos 51 anos da Frente Polisário. Na ocasião, representantes da Associação de Solidariedade e Pela Autodeterminação do Saara Ocidental (ASAHARA), fundada na capital brasileira em 2018, e parlamentares reivindicaram a criação de uma embaixada do país no Brasil.
A própria presença do representante da Frente Polisário em Brasília é um indicativo da incidência política no governo federal pelo reconhecimento da RASD. Atualmente, 82 países reconhecem a independência do Saara Ocidental.
“O Saara tem muita esperança que o governo atual do Brasil reconheça o direito do povo saaraui. Acreditamos que o Brasil deve abraçar a causa saaraui, pois não pode contradizer interesses e princípios das Nações Unidas”, disse o professor Mahmud Awah, destacando que o Brasília é signatário de resoluções do Comitê da ONU pela autodeterminação dos povos.
Ele destacou ainda a Opera Mundi que deposita esperança nos países do agrupamento político BRICS para as causas do Sul Global, sendo que a articulação tem postura favorável à causa do povo saaraui. “Será bem defendida, sobretudo por África do Sul, Rússia, Índia e China, que são países fundamentais no bloco. O Brasil deve estar à altura desses países e de outros presidentes”, defendeu.
Para ele, o mundo está em uma nova configuração, “não mais hegemonizada pelos Estados Unidos e pela OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], mas divido em dois polos, com o bloco do BRICS mais forte e preparado para representar o mundo silenciado pelas potências ocidentais”.
“A ONU fracassou em seus princípios, sem poder resolver os problemas da Palestina e do Saara Ocidental”, exemplificou.
Ainda de acordo com o especialista, os saarauis estão se preparando para uma “batalha muito dura contra o Marrocos” e para uma nova “guerra de tecnologia”. Segundo ele, a Frente Polisário chegou a difundir um comunicado para colonos marroquinos e empresas estrangeiras que abandonem o Saara Ocidental, “porque a guerra vai tomar todo o território”.
Na mesma linha, Mulay, que representa diplomaticamente a Frente Polisário no Brasil, declarou que “colonizadores não sabem negociar”, argumentando que Marrocos quer o mesmo para o Saara Ocidental que Israel quer para os palestinos: “que o povo se torne mártir pela independência ou perca cultura e território”.
No diagnóstico dele, o mundo enfrenta uma “séria crise do capitalismo”, em que os povos lutam por justiça e para recuperar direitos e riquezas”. Para o representante, as grandes potências do Ocidente não têm respeitado isso, além de estarem acabando com a terra e com a natureza.
“É preciso eleger a estabilidade mundial antes de pensar em ganhar. A terra oferece riquezas para todo o mundo, mas infelizmente o Ocidente não tem essa filosofia. É uma nova forma de escravidão, goste você ou não. E apenas a união dos povos pode reverter isso.”
Contexto histórico
O Saara Ocidental é um território desértico de 266 mil km² ao norte da África, dos quais dois terços, incluindo a parte banhada pela Costa Atlântica, são controlados pelo Marrocos. Um muro de 2.700 km de extensão, chamado de Muro da Vergonha, delimita a porção governada pela Frente Polisário, representando o povo saaraui.
A população é formada por cerca de 600 mil habitantes, sendo 260 mil nos acampamentos de refugiados na Argélia, cerca de 200 mil no território liberado e outros 100 mil no exílio.
Marcado pela colonização, o território do Saara Ocidental foi dominado pela Espanha a partir de 1884. A resistência saaraui se estabelece, dificultando o processo colonizatório espanhol. Um período de pacificação se dará 50 anos mais tarde, na década de 1930, perdurando até os processos de independência de países no norte da África, que reacendem os desejos de autodeterminação do povo saaraui.
O Saara Ocidental deixou de ser considerado colônia em 1950, quando a Espanha transformou o território na 53ª província espanhola.
Em 1975, em meio à crise política na Espanha, após a morte do ditador Francisco Franco, o país europeu assinou o acordo de independência e divide a administração do Saara Ocidental entre Mauritânia e Marrocos, firmado nos “Acordos de Madrid”. Em outubro daquele ano, a Corte Internacional de Justiça (CJJ) sentencia a ausência de lastro legal para a decisão espanhola.
A Espanha se retirou do território em 1976, iniciando um conflito da resistência saaraui contra Marrocos e Mauritânia. Nesse momento, a Frente Polisário funda a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), na cidade de Bir Lehlou.
No mesmo ano, a “Marcha Verde”, conduzida pelo rei marroquino Hassan II, estabeleceu uma invasão e colonização do Saara Ocidental com 350 mil pessoas, entre civis e militares.
Quatro anos depois, em 1979, a Mauritânia se retirou do conflito após ser derrotada pelo Exército de Libertação da Frente Polisário. Contra o Exército marroquino, o confronto permanece até 1991, quando um cessar-fogo é assinado em 6 de setembro. O número de mortos já somava 10 mil pessoas até aquele momento.
Ainda naquele ano, a ONU cria a Missão de Paz para o Saara (Minurso), para convocar um referendo sobre independência e autodeterminação do povo saaraui, compromisso firmado no cessar-fogo e que nunca saiu do papel.
Atualmente o Saara Ocidental configura em uma lista de 17 territórios não-autônomos, a maioria remanescentes da colonização britânica sobre países da África.
Para o professor Awah, o conflito do Saara Ocidental é “originado por uma má descolonização” por parte da Espanha, que não seguiu os preceitos sobre autodeterminação dos povos estabelecidos na década de 1960 pela Organização das Nações Unidas.